Office in a Small City por Edward Hopper

Não são fotos como as outras. 2

Afinal, todos nós nos consideramos especiais e eternos, só o tempo sabe que não o somos.
Viver é difícil, velha novidade. E aqui estamos todos.

Arautos do fim dos tempos

O mulato de bigodinho grisalho, terno escuro, bem passado, agourento, discursa agitando a bíblia que reabre periodicamente, vociferando, entre aleluias, ameaças e pragas coletivas. Parece alucinado com a eloquente profusão de seus disparates e não se envergonha de afirmar, bem perto da cega e dos inválidos, que Deus é misericordioso, justo e bom.

Por falta de qualquer reflexão, como é pregado pelas religiões em geral, costuma-se tagarelar de maneira edificante, sem se perceber que já se tomou um desvio das ideias mais sensatas, desprezando-se contradições em si mesmas, e não se atenta mais às tolices de que são feitas essas pegajosas teias enredadas de palavras, das quais nos sentimos culpados apenas por querermos sair. Acreditei que não teria outra chance de presenciar ironias tão embaraçosas. Mas era muito jovem.

Outro caminho, o da praça. Homens de cabelos muito curtos e mulheres de cabelos muito compridos movem-se discretamente. Doutrinas evangélicas subdivididas em muitas facções, nomes com variantes, por vezes até derivando a logomarcas, embora cada congregação, cada grupo entenda ser o seu o “escolhido”. Pregam aos passantes, mostrando-lhes livros e folhetos ilustrados com anjos.

“Posso falar com você um minutinho?”, sorriem à presa.

Explicam com paciência os planos devastadores de Deus para a humanidade, entre epidemias incontroláveis e catástrofes sem precedentes, o milagre da ressurreição da carne e outras histórias antigas de homens antigos com ideias antigas, que eles leem nos Testamentos e recitam de cor.

“Diante de Deus, tudo o mais é insignificante. E nada pode desanimar um homem de fé!”

Exceto a chuva. A praça fica vazia, mas não os censuro. Esses chuvisqueiros são mesmo muito incômodos.

Sei que tudo isso é apenas sofismático, poderia dispensar tais referências em meio ao que conto. Mas que importa? Esse é também o jogo deles. Falam e falam, pregam e aconselham. Mas Deus, como qualquer um de nós sabe, nunca diz nada.

Poderia continuar contando de outros alienados sem a pretensão de ironizá-los. Mas a lembrança de um inconveniente hare krishna, com seu costume de agitar um cordão de incenso no nariz dos cidadãos que, como eu, não sabem por que eles têm de pelar a cabeça daquele jeito, impede que eu prossiga. Uma pena.

Uma pena, não? Não. Não é.

A sorte segundo um periquito

Vêm de um passado cinzento o pitoresco, a melancolia das canções. O homem do realejo usa um boné por causa do sol e também tem que viver. As crianças chegam com os pais, o periquito condenado surge à entrada da gaiola, tira com o bico o cartão no qual é escrita a sorte dos que passam. Por isso ele está ali, com seu trabalho insignificante – falo do periquito –, torturado pela música diária, ruidosa, dissonante. De resto, ninguém lhe presta atenção. São todos gente, não pensam senão em suas vidas.

Graças à ignorância, à crença e ao amor fraterno que os ambulantes têm assimilado em seu caráter simplista é que tratam com simpatia os filhos dos mais ricos, sem suspeitar, ao agradecer-lhes o troco dispensado, que mil vezes mais são roubados por mecanismos inacessíveis ao seu entendimento. Que isso vem do tempo dos realejos e persistirá ainda nas mãos de novas e sucessivas gerações, articuladoras do destino – e também fora de seu alcance.

O sol de março parece consumir mais intensamente os cidadãos. O homem de boné gira a manivela, mecanismo que lhe é conhecido, a música soa indiferente e antiga. Na gaiola que lhe é destinada, sorte que não pôde escolher, o periquito tem que separar os cartões da fortuna, suportar o sol, a música e a vida dos homens.

Um réprobo

Trinta anos talvez, precocemente envelhecido. Põe-se a gritar:

“Olha, gente! Que que eu faço?!”

Cabelos lisos, de um loiro encardido, repartidos de lado e formando aneizinhos desgrenhados na nuca. Um ombro mais baixo que o outro, um braço pendente, sem ação.

“’Tão vendo isso aqui?!”, ele grita, girando os olhos ao redor, apontando o braço paralisado. “É derrame! Derrame, ’tão ouvindo? Já tive dois derrames!”

Tenta encarar as pessoas, elas passam ao largo, evidentemente. Continua intimando a todos, grita para que o escutem, camisa aberta, calças muito gastas, sapatos como recobertos de areia. “Três meses que ’tou nessa cidade! E não consigo emprego! ’Tão ouvindo? Três meses! Já tive dois derrames. Meu dinheiro acabou, não tenho onde dormir hoje à noite! Que que eu faço? Gente, olha!”

A cidade comporta figuras à margem de tudo, gente em busca de uma vida nova. Vida nova, sem dúvida. Não propriamente melhor que a anterior. Afinal, todos nós nos consideramos especiais e eternos, só o tempo sabe que não o somos. De longe, observo como esse homem se esforça para ser ouvido. E como o público, do qual faço parte, prossegue passando com indiferença. Viver é difícil, velha novidade. E aqui estamos todos.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

 9. Não são fotos como as outras. 3 – sequência

7. Não são fotos como as outras. 1 – anterior

Imagem: Willem de Kooning. Meio-dia. 1947.

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Comentários

Uma resposta para “Não são fotos como as outras. 2”

  1. Avatar de Jady Alves

    Meu caro professor e Senhor das Letras Perce Polegatto!
    …E assim a vida segue; entre a ignorância e a hipocrisia humana neste palco, onde somos meros expectadores de nós mesmos buscando a compreensão e tropeçando entre as pedras do caminho, sujeitos a toda artimanha e malefícios do que o homem julga ser capaz de pregar… E assim seguimos meu amigo, refletindo e tirando as lições que o “Mestre” sempre atento nos expõe, em “Aventuras do Dia Comum” Tão comum!!! Beijos e carinhos com meus parabéns por tuas justas explanações sobre a vida.

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