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Constanza
Eles estão presos. Estão casados.
Constanza é a minha amiga imaginária. Mas é claro que ela existe. Não, não é nenhum fantasma ou coisa parecida. O que eu quis dizer (mas me expressei mal) é que ela provém de uma história imaginária, é isso. Por isso, também, ela é capaz de revisitar e atravessar com naturalidade todas as narrativas mágicas – porque escapou de uma, nunca saberei qual. Nunca saberei, por um motivo lógico: mesmo que eu pudesse ler todas as histórias do mundo, Constanza não estaria em nenhuma delas, como já se espera. Porque conseguiu escapar, como eu disse.
Não, não era meia-noite – e isto não é inventado. Mas nessa noite qualquer, uma noite tranquila, de chuva contínua, eu preparava uma série de textos avulsos tratando de interpretações de contos folclóricos de diversas culturas. (Constanza, é claro, sempre ali por perto, eu nem me atrevia a perguntar onde.) Rascunhei alguns, e me fixei um pouco mais neste que segue, talvez porque sempre tenha me atraído discretamente.
João e Maria
Por que não João e José? Ou uma criança só? Ou três? Ou duas irmãzinhas, Maria e Mariana? Eles são irmãos, são semelhantes, e tentam encontrar seu caminho de volta pela floresta, após terem sido abandonados por seus pais. O jovem casal encontra a casa de broa de gengibre, a conhecida casinha de doces, feita de guloseimas e de tudo o que pode nos despertar uma vontade enorme de comer e comer e comer. João e Maria não podem mais voltar à casa dos pais. (Não deve ser coincidência que o período de iniciação de um casal receba o nome adocicado de lua de mel. E mesmo em outras línguas: honeymoon, lune de miel etc.) No começo, prazeres, doces, só coisas boas. Quem não se lembra, com certa gula, também com certo carinho, de uma primeira refeição que se compunha de leite, panquecas com açúcar, maçãs e nozes? (Irresistível. Inspirador. Acrescente-se uma noite de chuva como esta. E tente não sorrir, com um arrepio de desejo.) Mas isso foi no primeiro dia. Na primeira fase. Depois, as agruras da vida, em forma de uma bruxa má, passam a alimentá-los dia após dia, só que de outra maneira: fazendo-os inchar e engordar, com a intenção declarada de devorá-los em breve. Eles estão presos. Estão casados. E serão mesmo devorados pela malvada rotina, um dia após o outro, se não tomarem alguma atitude. E os doces? As paredes não eram feitas de broa de gengibre? Não são mais? Por que eles agora não se comprazem com a mesma comilança do início, com essa casa uma vez deliciosa? Dia após dia…
“Espera aí, espera aí”, alerta Constanza. “O conto não diz nada sobre isso, isso do dia após dia.”
Eu a ignorei e prossegui.
Bem, o casal encontrou um meio de ludibriar a bruxa-rotina, esta que os alimenta, traiçoeira, motivada por más intenções. A solução foi tramar em conjunto. Confiar um no outro. Tiveram de apoiar-se em seu próprio companheirismo, em sua união. E somente uma atitude inovadora pode agora levá-los de volta à felicidade. Assim, eles escapam de ser devorados dentro de sua própria casa, inicialmente a casa mais gostosa do mundo. Sim, uma atitude inovadora, drástica. Uma mudança radical. Algo que nunca haviam feito antes: um plano. Um plano compartilhado. No plano consciente.
“Espera aí, de novo. O que foi tão consciente nisso? Olha, no século passado os estudiosos eram unânimes em considerar todas essas ações como manifestações do inconsciente.”
Onde ela teria lido isso? Não importa. Ela é nascida entre livros. Sempre leu alguma coisa, em algum lugar. Eu não me incomodo mais.
João e Maria. Vamos lá. Eles mostram um osso, no lugar de um dedo, à velha bruxa, que não enxerga bem. Isso foi inteligente. Foi racional. Foi planejado. Eis aí uma amostra do passado, dos mortos: um osso. A bruxa é tão velha que não distingue mais entre os vivos e os mortos. Para ela, o futuro quase não existe. Mas o passado, sim, deve ser muito forte. Assim, fingimos participar de seu teatrinho, para no fim vencê-la, aproveitando-nos convenientemente de sua convicção, sua miopia – pois ela não se lembra do quanto é velha e imprestável.
“Nós? Não eram eles? Não ficou bom”, critica minha amiga. “Está forçando tudo, não é possível levar isso a sério. Você não gosta de velhas, deve ser isso.”
Não gosto mesmo. Mas não é isso.
Agora, João e Maria reencontram os pais. Agora, está tudo bem. A casa de doces não existe mais para eles (ou existe de outra maneira), já que a bruxa está morta, bem morta – ou, como eu costumava dizer quando menino, bem matada. O jovem casal sabe que pode voltar a sua casa, que é praticamente igual à dos pais. Talvez não mais no meio da floresta. Mas num lugar menos perigoso, mais conhecido. Para onde possam ir e de onde possam voltar. Sem guloseimas deliciosas nem bruxas cruéis que os ameacem e que os aprisionem. Agora, eles têm outra consciência da vida. Agora, eles têm… outra consciência da vida. Isso mesmo. Fim.
“Não acaba aí. Você está omitindo o final. Essa seria uma interpretação mais ou menos válida se fosse aplicada a uma parte da história toda. Mesmo assim, já sabe: muito forçadinha.”
Não quero jogar tudo fora. Constanza pode estar errada, quem sabe. Ideias sempre podem servir. Mesmo uma ideia ruim pode despertar uma ideia boa em outra pessoa. O que está faltando então?
“Detalhes importantes, que todos os detalhes são importantes. Como ficam, por exemplo, a trilha de pedras brancas e depois a trilha de migalhas brancas? E os três pássaros? O que significa cada um?”
Eu encontro alguma coisa. Vou pensar. Essas pistas não podem estar aí por acaso, como nunca estão.
“E as joias da bruxa?”, Constanza tem o prazer de lembrar.
Maldita. Não perco a esperança de, um dia, entre minhas infinitas leituras, deparar-me com um desses contos mágicos no qual se pressinta alguma lacuna. Ou no qual se observe qualquer situação suspeita que demande a presença de alguém mais. Enfim, a que falte alguma personagem para dar sentido à trama. Então saberei de onde Constanza fugiu. E, quem sabe, com uma astuciosa armadilha, como as tantas que aprendi entre essas absurdas aventuras todas, eu não possa prendê-la de volta ao texto que a engendrou, de volta à página certa, do livro certo.
“E as joias da bruxa?”, ela insiste, pensando que não ouvi.
“Não pensei nisso ainda. Calma. Outro dia escrevo alguma outra coisa. Outro texto, outro equívoco. Considere isso um rascunho. Prometo que não o publicarei enquanto não encontrar uma melhor sustentação para minhas teorias. Melhor assim?”
Constanza parece ter se acalmado, e eu sei disso porque sumiu. Ela nunca some quanto está irritada.
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Algumas observações e perguntas de Constanza, que coletei ao longo de suas manifestações avulsas, sempre atravessadas por alguma melancolia pouco perceptível.
Perguntas de Constanza
Essas figuras de linguagem são mesmo interessantes, não são? Hipérbato e hipérbole fazem uma aliteração. Não é?
Os sumérios constam do sumário?
Se um gato é resgatado, um cachorro é rescachorrado?
O calendário maia tinha o mês de maio?
Escrever lúdico em vez de lúcido é uma brincadeira, não é?
Grandes obras encalhadas são grandes sobras?
Camões é maior que Caminha? Quem são esses? Fazem parte das suas leituras? Afinal, são tão parecidos, não é? Vaz de Camões, Vaz de Caminha…
Adolçante não seria muito mais doce?
Vizinha vadia, vidinha vazia: não é interessante?
Quantos minutos dura um minueto?
Você pode descartar Descartes?
Uma tempestade com tornado pode ser contornada?
O instrumento que sua amiga Mônica escolheu era a harmônica?
Um persa seria um bom personagem?
Se você escreve algo sobre cometas, deve esperar cometários?
Óculos rimam com séculos? Mais ou menos, não é? Faz tanto tempo assim que eles existem?
E essa contista que você tanto lê: será mesmo uma autora à altura?
Uma foca fofa é uma fofoca?
Você gosta de van Gogh? Vincent é mesmo convincente?
Por que dizemos faminto, sobre ter fome? Não é melhor fominto? Estou com fome, estou fominta.
Coisas de Constanza
Um novo livro, um ovo livro, um ovo livre.
Ovo… Livro… Livre… Acidentes linguísticos intraduzíveis.
Elogios aos relógios.
América do Sul, América do Sol – uma canção lhe inspirou isso.
Se um ponto-final encerra uma frase, três desses pontos em sequência (reticências, ela queria dizer) deveriam encerrá-la mais ainda.
Não dá para perder esta: Constanza apontou um erro de digitação em um de meus artigos, um verdadeiro achado. Faltou a letra M, e nosso célebre escritor se tornou… achado de Assis.
Um dia, ela observou: “Os sufixos não têm muita lógica em seus significados, não acha? Um mentiroso mulherengo poderia ser um mentirengo mulheroso, e não mudaria nada.”.
Ela tem razão. Em nossa língua, os sufixos são muito variados e provêm de misteriosas tendências geradas por um coloquialismo quase onomatopaico. Um breve período de sono é uma soneca; quem dorme muito é um dorminhoco; quem anda muito é um andarilho; quem come muito é um comilão; quem tem muito dinheiro é um milionário; quem sente muito frio é um friorento; quem defende a pátria é um patriota… – enfim, eles não parecem mesmo apontar para alguma lógica. Um sertanejo ribeirinho não poderia ser um sertaninho ribeirejo. Ou poderia?
Palavras que ela rabiscou à margem de meus rascunhos quando eu não estava por perto.
– Doois
– Erro de dgitação
* Constanza é uma personagem que escapou de um livro, de uma narrativa mágica, nunca saberei de qual. Imagino que estivesse sofrendo ou que teria um fim triste, porque ela não quer mais voltar para sua história. E eu não tenho como vasculhar centenas de livros para confirmar isso, para saber a qual deles está faltando uma personagem.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
O morro dos lobos – anterior
A sereia suicida – posterior
Imagem: Berhard Oberdieck. João e Maria e a bruxa. 2005.
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