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O dia e a noite sobre as estações
E impressionei-me com um homem baixo e franzino que fechava a última porta da história, dizendo: “Acabou.”.
Para iludir minha desgraça, estudo. Intimamente, sei que não me iludo.
– Augusto dos Anjos, Poema negro
1
Três horas. Está certo. Está sempre certo. Seu silêncio eletrônico não me perturba com pancadas cor de cobre nem lembra a morte, pela sucessão dos segundos – conhecidos mecanismos que desejamos esquecer. Mas o digital é sinistro assim mesmo, e o torna pungente, opressivo como qualquer relógio. Está sempre certo. E eu me esqueci de dizer que são três da manhã.
Há dois anos não durmo, pouco mais. Ou menos. Por causa da experiência a que me submeti com dois colegas, também estudantes de Medicina na época, tornamo-nos todos o que não julgávamos possível no futuro de nossas vidas: espectros de nós mesmos. Eugênio encontra-se em um hospital psiquiátrico de onde dificilmente sairá. Da última vez que nos vimos, ele já apresentava sintomas furtivos, porém claros, de perturbações que o levariam ao estado de alienação incurável. Era o mais frágil entre nós, de limites delicados, e alguma ingenuidade atípica fazia dele um entusiasmado voluntário. Sônia resistiu por mais tempo, e suicidou-se somente no ano passado. Lembro-me disso com certeza porque seu sepultamento deu-se na primavera (como também estranhamente me incomoda o capricho, a lembrança de haver assistido a tudo como um espião silencioso, auxiliado por anjos e ciprestes, sem que ninguém desse por minha presença), e agora mesmo a primavera traz de volta seus primeiros brotos, seu verde ancestral e essa conhecida e traiçoeira sugestão de infinito. De que serve a continuidade dos ciclos, se não são mais as mesmas flores? Aquelas, de outro dia antigo, perderam-se para sempre. Sônia. Eugênio. Eles não resistiram. Mas eu estou aqui.
2
Sexagenário de poucas aulas, o professor Anésio era reconhecido principalmente por suas pesquisas no campo dos estudos do sono. Modesto mas carismático, tornara-se requisitado e famoso em nosso meio, embora alguns de seus hábitos permanecessem inalterados, como o de frequentar a cantina da escola, onde era visto mascando sanduíches de mortadela.
Ele já havia sido processado por conseguir de um paciente o estado de imobilidade absoluta, induzindo-o a sonhar todas as noites um mesmo sonho, cujo desfecho era adiado sempre que despertava. Uma convulsão nervosa repuxou-lhe o grande artelho, fulminando-o com um ataque cardíaco, e o professor tornou-se ainda mais famoso por meio da imprensa que o fustigava. (O paciente contava estar diante de um tribunal aparentemente sem propósito. Sempre que o juiz se preparava para ler a sentença, ele tornava abruptamente à vigília. Não era possível ver claramente o rosto do juiz, mas ele pressentia que se tratava de si mesmo, de seu próprio rosto, de alguma maneira. E quase adivinhava sua condenação.)
Entre as inúmeras empresas que, no início de sua carreira, ao contrário de torná-lo célebre, faziam-no cada vez mais esquecido, algumas não eram menos patéticas do que paradoxais. Quando jovem, demitira-se de seu primeiro emprego ao descobrir que as galáxias estavam se afastando. Seu superior imediato, encarregado de repassar o pedido (e o incrível argumento) à direção, indagando-lhe se era aquela uma decisão de ordem pessoal, teria ouvido em troca: “Não. Diga-lhe que é universal e à sua revelia.”. Por algum tempo, foi visto carregando uma luneta por toda parte. Abandonou os projetos de um dicionário de sânscrito na letra R, outro de inglês na letra A. Quando compreendeu que não existia a alma, publicou um artigo, de teor apenas especulativo, no qual fazia do chavão corpo e alma um sofisma comparável ao som dos objetos: “O som não lhes é intrínseco, mas decorre deles, da mesma forma como a alma só pode ser imaginada por nós enquanto vivos.”. Como esperado, ninguém aceitou isso (a comparação, entenda-se), e ele amargou novas acusações de charlatanismo. Na mesma fase, idealizou um arquivo eletrônico em que se armazenassem, dia por dia, todos os fatos da história, além de uma criteriosa linha do tempo que recuava à formação do planeta e se perdia no caos. Releu as Escrituras, os Evangelhos inclusive, em função das teorias fantasiosas de Erich von Däniken, o que não pareceu ter afetado sua lucidez.
Tanto quanto o criacionista Owen se recusara a admitir as ideias darwinianas, e o poeta Goethe se eternizara por haver fracassado em todas as suas conclusões no campo da ciência, o professor Anésio não deixava de ser um grande homem, melhor dizendo, um profissional brilhante em sua especialidade. Não fosse a inclinação para a Medicina – o que mais tarde despertara seu interesse pelas peculiaridades do sono –, teria sido um amador em tudo, talvez terminando seus dias atrelado a convicções equivocadas, a exemplo do netunista Werner, e isso sem mencionar a figura contraditória de Eugène Dubois. (Menciona-se: em idade avançada, Eugène Dubois, que descobrira em Java o Pithecanthropus erectus, com isso convencendo a todos de que havia encontrado o Elo Perdido, refutou suas próprias afirmações, alegando que seu homem era apenas um macaco fóssil adiantado. A essa altura, ele não pôde mais persuadir a comunidade científica a voltar atrás. Sua primeira teoria, como demonstrado posteriormente, era a verdadeira.)
Assim como a ciência da Antiguidade gradualmente transferira-se de Atenas para Alexandria, nossa universidade vivia seu apogeu, atraindo estudantes de todo o país, e o que sucedia ali era motivo de atenção por parte dos jornais. Em pouco que triunfássemos, teríamos garantidas nossas carreiras. No quarto ano, correu a notícia de que o professor Anésio andava à procura de voluntários para seu novo trabalho. Era o bastante. Fomos os três primeiros a encontrá-lo na cantina. Ele nos aceitou com um sorriso simplório de ignorante, boca cheia e metade do sanduíche na mão. Um mito.
3
O apartamento. O primeiro dia, apenas agradável. O professor Anésio expôs seu plano de trabalho e objetivos: desejava provar que o homem poderia libertar-se do sono, aumentando assim seu tempo de vida dentro de seu mesmo tempo de vida. Isso, segundo ele, aceleraria a evolução da história e do conhecimento humano, a ciência, a arte e as guerras, na proporção de um século para cada dois, talvez três – ele próprio esquivando-se, porém, de tocar no mérito questionável das vantagens de tal processo de precipitações. Aprendemos sobre casos complexos e extremos que ainda desafiavam os especialistas, como o do menino que reproduzia, num desenho à mão livre e com notável precisão, fachadas de rebuscada arquitetura, após tê-las observado uma única vez. Um surdo-mudo compunha como Schubert, e um autista em parte recuperado podia dizer de pronto o dia da semana correspondente a qualquer data do passado ou do futuro, a qualquer distância, configurando assim a encarnação absurda de um calendário infinito, instantâneo e inútil. Discutimos os conceitos que separam da genialidade as anomalias. Foram citadas a engenhosidade de Edison, a memória prodigiosa de Mozart. À noite, vimos projeções. Elogiamos as conquistas da ciência. Rimos, bocejamos e, por fim, adormecemos.
Dormíamos em três períodos diferentes, de tal forma que dois de nós cuidavam de vigiar o terceiro, aplicando-lhe técnicas para a redução progressiva de suas horas de sono. Na segunda semana, o professor Anésio deixou-nos com instruções para que prosseguíssemos sem ele, passando a visitar-nos de dois em dois dias para avaliar os resultados de seu método – também para saber de nós se pretendíamos ou não desistir.
Fomos treinados a ocupar todo o tempo da vigília com atividades mentais e de relaxamento, o que substituía aos poucos a necessidade do sono. Como parte dos testes, digitávamos um mesmo texto até a exaustão e até incorrermos em tantos erros que o alterávamos quase inteiramente. (O texto final assemelhava-se a um ensaio filosófico, e nenhum de nós se lembrava de havê-lo escrito.) Drogas também específicas facilitavam-nos os exercícios e tornavam tudo mais leve. Estávamos felizes.
Entre um cigarro e outro, Sônia e eu trocávamos algo sobre nossa virtual condição de insones crônicos. Comentamos o fato de o professor Anésio não ter vindo no segundo dia, e soubemos, pelo jornal, que ele havia falecido da ruptura de um aneurisma enquanto jogava xadrez com sua esposa.
4
Três e meia. Às vezes ouço pancadas no andar de cima, mas não tenho certeza. O edifício é cheio de ruídos. Há também longos períodos de silêncio, o que mais me assusta. Há pouco descobriu-se uma aranha graúda que ocupara, com a neblina de todas as suas teias, o apartamento de uma anciã cujo corpo só foi encontrado no último Natal. A família que não sai da janela em frente é apenas uma silhueta, hoje sei, contornos de um anúncio publicitário voltado para fora, figuras bem recortadas em resistente papelão. Há mais o que dizer sobre o prédio, mas nem tudo é significativo. Sons que ouço, vindos de meu quarto, muitas vezes não são mais do que o vento de outubro entrando.
Assim como tenho perdido a noção das horas e dos dias, parece-me cada vez mais difícil discernir entre o bem e o bem, o certo e o errado (aqui não me referindo às virtudes, e sim à matemática), a dor e o prazer, o fim, o início, as vantagens de se viver neste mundo. Vitoriosos e fracassados nutrem-se da mesma ilusão. Não há heróis sobre a Terra. Vencedores são perdedores, ao longo do tempo. O tempo é a sombra de sua própria muralha. Os mestres da universidade e os faxineiros que percorrem os corredores inspiraram-me a renunciar: ser alguém é o mesmo que ser ninguém entre tantos alguéns. Parece loucura. Não é. À sombra do tempo que me consome, tornei-me também uma sombra.
A morte e a vida pouco diferem, pouco me importam. Não posso negar que já experimentei sensações de horror por sentir-me alheio à condenação dos ciclos, tanto no que se refere à rotina dos homens quanto à dificuldade de perceber a vida além do momento presente. O fato é que já não posso ser outro. Penso que sonho, estando acordado, e desperto de realidades nas quais acreditava ser eu, mas que eram falsas.
A vida noturna, a boêmia cansaram-me. Nunca houve nada a extrair daí senão novas ilusões, embora os maus sonhadores acreditem estar envelhecendo da melhor maneira. (Em contrapartida, no âmbito da mesma escala de ilusões, não faz sentido, por qualquer motivo, orgulhar-se por não ser boêmio.) Conheci a noite breve dos mais jovens, de luzes artificiais, nos mesmos lugares homens e mulheres procurando-se. Assisti à volta dos sozinhos e à solidão dos que se encontraram. Eu os ouvi repetindo os nomes de seus ídolos, outros como eles, mas cuja sugestão de similaridade os animava a imitá-los e lhes devolvia estranhas esperanças. Em tudo, o mesmo abismo de fugacidade e fascínio. Em tudo, o mesmo tempo ativo, corroendo a si mesmo. As pessoas voltando, numa noite qualquer. Os dias, o câncer.
Desde que deixei o curso, já me mudei para um hotel, um pensionato e um porão, onde fiquei por mais tempo. Não me lembro dos que me atenderam, dos que me estranharam, dos que de nada desconfiaram. Estive em muitos lugares e enganei a todos, fazendo-me passar por um deles. À noite, eu os ouvia dormindo ou copulando (minha audição é hoje muito aguçada), mas, pela manhã, não distinguia seus sonhos. Por minha vez, não sabia mais de meu próprio delírio enquanto incursionava por tais ambientes, tão destoantes à minha fuga. E basta estar num quarto estranho para vivenciar sonhos atormentados – falo de meu próprio quarto quando volto.
Sei que o vazio é uma dimensão da mente, e toda pessoa se confronta alguma vez com sua própria ausência. Mas eu o sinto o tempo todo, e isso faz constatar-me mais verdadeiro. Um pressentimento incômodo revela-me que a história encontrará seu fim quando o homem puder desvendá-la completamente, com isso dando o golpe de misericórdia no cosmo que o compreende. Ou tudo o que existe são variações de um mesmo sonho que, como as cores combinadas resultam em infinitos matizes, teria originado a multiplicidade calidoscópica do que preenche o universo, as formas da natureza e os tipos humanos, e se encontraria em sua fase de exaustão, esmaecendo em últimos lampejos. Quando ouço música, pressinto que vou morrer em poucos minutos. Depois, é como se não morresse jamais e, quanto a mim, morrer significa o que sempre e só significou: deixar de viver. Mas a vida, quero-a até o fim. Agrada-me desafiar a loucura, pois ninguém sabe ao certo o que vale a pena. Já não me ocupo de meus fantasmas, convivo com eles. Também já matei uma pessoa – tenho certeza de que não foi um sonho.
Há noites que passam muito depressa, como se eu não estivesse aqui. Mas (Sônia, Eugênio…) eu estou aqui. Outras torturam-me com sua amostra de eternidade. Deixo as drogas, volto a elas com a mesma indiferença. O tempo demora a passar, mesmo sem drogas. Tenho afixado inúmeros lembretes na parede em frente à minha escrivaninha. Um deles provoca-me um calafrio de surpresa toda vez que o releio:
NÃO SE ESQUEÇA DE QUE VOCÊ ESTÁ VIVO.
Entre os muitos passatempos com que tenho me iludido desde que rompi com o mundo das certezas, atraíram-me principalmente os que me permitiam especular sobre as mais diversas e desnecessárias questões, como, por exemplo, o dilema de admitir-se uma chance contra o infinito: há o infinito e há também uma chance. Ou a penosa tentativa de se encontrar uma ilustração para o número zero. Entre lapsos de cansaço, julguei ter sonhado com a fórmula
(Vo) 2c = GM
Δo
que mais tarde encontrei por acaso num manual de astrofísica – é usada para o lançamento de satélites. Também estive prestes a concluir um conjunto de equações que, por combinação, explicava as origens genéticas de todas as espécies. Rasguei tudo a tempo, desconsolado por constatar que tudo podia ser reduzido à matemática, inclusive a vida. Numa só noite desvendei a identidade do Jack de Whitechapel com argumentos que detalhei em uma carta (sem resposta) à New Scotland Yard. Na gramática, descobri uma quarta pessoa dos tempos verbais, inserida entre a segunda do singular e a primeira do plural, mas que não é a terceira. Não me pareceu sensato revelá-la aos linguistas: uma vez descoberta, torna-se imprescindível. E quase pude decifrar o que tanto me atraía à visão de uma fachada salitrosa no Centro Velho, especialmente em dias de chuva ou neblina. Por sorte, não consegui.
Imaginei confessar numa carta póstuma tudo o que há de miserável e vergonhoso na alma humana, servindo-me de minhas próprias tentações e desejos secretos, pois, como todo homem de bem, trago adormecido o demônio. A clandestinidade de tais papéis, que só seriam conhecidos após a minha morte, não poderia me impedir de contar tudo, ainda que exagerasse e mentisse, ainda que dissesse violentamente a verdade. Assim mesmo, faltou-me coragem – talvez o demônio seja também o que não se pode confessar de maneira alguma.
De qualquer forma, tenho resistido às investidas da demência, entre um café que preparo para me distrair e as muitas vezes em que me embriaguei sozinho. Vodca gelada no verão, conhaque no inverno… Talvez Eugênio esteja melhor do que eu, alienado. O fato é que terminamos todos mais ou menos parecidos: meio mortos, meio vivos, furtivos, subterrâneos, inimigos de espelhos. Sônia… Não vou negar que imaginei situações, tendo-a como centro e inspiração, tendo-a como mulher, sim, com alguma esperança. Mas ela tinha razão. Correríamos o risco de gerar filhos insones.
5
“Soube que Eugênio foi internado.”
“Não tenho medo.”
“Você foi lá?”
“Fui. O filho mostrou-me o gabinete. Vasculhei as anotações, fui à biblioteca da escola, tudo inútil. Acho que nem ele sabia como eliminar os efeitos de seu método.”
“Me dê outro cigarro. Viu o jornal de hoje?”
“Pouca coisa. Publicaram depoimentos de professores inexperientes dizendo que ele não morreu, que continuará para sempre vivo no coração de todos nós.”
“E nós?”
“Também gosto quando você aperta minha mão.”
“Não tente me distrair. Tenho a impressão de que o mundo está desmoronando.”
“O mundo está sempre desmoronando.”
“Você entendeu o que eu disse.”
“Era isso o que queríamos, não era?”
“É como se a vida não coubesse em mim. Estou confusa, não sei mais.”
“Estamos sem sono, só isso.”
“Não pensei que fosse assim. E você? Você… ”
“Não sinto medo, se é o que quer saber. Mas não sei se isso é bom. Não sei mais o que é bom.”
“Você acredita em Deus?”
“Que diferença isso faz? Nunca fez.”
“Acredita ou não?”
“Não. Por quê?”
“Só queria lhe perguntar isso.”
“Quer mudar de assunto?”
“Não.”
“Me ajude…”
6
Quatro e… Quase cinco. Acho que faz cinco anos que não durmo. Pensei que fossem três, como disse, não tenho certeza. Falta pouco para amanhecer. Som de uma campainha em outro andar. Cães latindo a certa distância. Uma criança acordou chorando. Tenho certeza de que tudo isso não é um sonho. Não me esqueço de que estou vivo. Tenho certeza. De tudo o que vejo e tenho visto. Ontem mesmo, vi uma garota silenciosa, de cabelos verdes, sendo apedrejada por muitos homens, ao passar pelo local onde se embriagavam. Vi, não me lembro quando, um cartaz de propaganda militar – e quando o arranquei do extenso muro, ele continuava ali. Visitei, num quarto amanhecido, um bebê de olhos amarelos, senti essa substância densa e pegajosa (era o tempo) e pude ver sua cor ao meu redor. Conheci um velho camponês que se multiplicava em milhões para que nunca faltassem escravos aos que incentivavam a vida. Tenho na memória, como um turista, o esqueleto de uma freira em sua sepultura, a ossada das mãos ainda em posição de prece. Testemunhei pessoas tentando delicadamente salvar uma vida, e uma multidão perseguindo alguém até a morte. Vi um homem transparente – dentro dele havia uma mulher. Em minhas mãos, cartas de baralho, moedas. Por uma noite, acreditei em Deus e pensei tê-lo visto. Encontrei-me sete vezes com o demônio. Sim, tenho certeza. Esqueci meu nome muitas vezes. Fui outros e todos eu outra vez. Vi meus próprios olhos olhando-se a si próprios, por dentro e de frente. E impressionei-me com um homem baixo e franzino que fechava a última porta da história, dizendo: “Acabou.”. Pareceu-me espantosa a impressão de que o presente fosse apenas uma gama de reajustes e variações de fatos que tentavam compensar o que… o que… Não menos, detectei as formas geométricas do tempo e concluí que ele poderia ser horizontal ou diagonal, nunca circular ou espiralado, pois isso pressuporia um início (a espiral) ou o seu próprio limite (o círculo). Vi a atualidade, uma linha horizontal, como se vê o mundo pelas ruas, e o infinito, uma linha vertical que cruzava o presente entre o passado e o futuro. Sei da inata capacidade do homem para descobrir-se, a sede de respostas que guiou esse persistente animal, mesmo nos períodos mais obscuros. Mas por que desejamos saber quem somos e de onde viemos, enfim, por que estamos aqui? Não seria essa uma abstração, de certa forma, premonitória? Por que buscamos uma resposta, se não intuíssemos de antemão que a encontraríamos um dia? Por que nascemos ávidos de voo, se não acreditássemos involuntariamente que seria possível voar? Seríamos capazes de fazer perguntas sem respostas? – esta é, também, uma pergunta.
Conheço todos os matizes da aurora. Em cada estação do ano, cada temporada, em relação a todos os fenômenos. Tenho certeza. Quando se compreende que tudo está preso ao mundo, torna-se indiferente acreditar. Enquanto isso, outras vidas nascem da terra para reinventar o tempo e os símbolos. A morte tem para mim um efeito retroativo e é o que me faz viver. O desafio está em toda parte. Por isso, Eugênio perdeu-se para sempre. Por isso, Sônia está morta. Por isso, eu estou aqui. E para mim não há mais a verdade ou a mentira, o preto e o branco, fantasias, coisas que são. Lá embaixo, uma criança rega o jardim. Uma criança, tenho certeza. Pensei que fosse uma jovem oriental. Também não é inteiramente branca ou negra. Ela me vê à janela, acena e sorri. Uma adolescente, tenho certeza. Observo seus movimentos, seios e pernas, ela toda me atrai, o que há muito não reencontro com tal intensidade. Tenho certeza de que não é um sonho. E sinto vontade de chorar. Já é manhã. Aceno à mestiça, ela própria alvo do delírio sem fronteiras de onde parte o sorriso nem triste nem alegre com que a sinto a distância – ela que não é o Ocidente nem o Oriente, o dia ou a noite, enquanto estou aqui.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
Paixões e fugas (A paixão segundo três estudos) – anterior
O beija-flor de Ruschi – posterior
Imagem: Paul Klee. Ad marginem. 1930 (editado).
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Comentários
2 respostas para “O dia e a noite sobre as estações”
Paro e ouço a voz de meu inconsciente, certamente tem voz, a mesma voz que encontro aqui.
É realmente o que chamamos VIDA é um maya… um passeio Essencial, numa colcha de retalhos, que classificamos como realidade. Ao menos que possamos exercer nosso livre arbítrio, escolhendo conscientemente, quais “retalhos” desejamos experenciar…
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