Office in a Small City por Edward Hopper

Era ela, a minha maior inimiga

O jogo maior deriva do plano inapreensível que os homens menosprezam e evitam, mas que os vencerá a todos: o tempo.
E o tempo, queira ou não, tudo atravessa.

Ao que interessa. Minha incontida necessidade de expressão decorre de minha tremenda dificuldade em compreender as coisas. Não só isso. Algumas vezes não se tem ainda a pergunta, e já se ergue lentamente a resposta. Eu é que me pego sempre atrasado, embora creia compreender algo, à minha maneira. O mesmo motivo que faz um homem abrir, com seu ego, um café como este, ou um bar em qualquer outra esquina do mundo, força-me também aos papéis e ao registro, sim, parece uma comparação ridícula. Mas o proprietário do estabelecimento lutará com todas as suas forças para mantê-lo em seu lugar. Quanto a mim, não lamento o possível romance não realizado, para ser mais simples e direto, o romance que não pretendo escrever. O que me ocorre é outra coisa. Parece notável que tantos não se incomodem com a própria existência. Vê o que digo? A mim, tudo convida e desafia. Já lhe disse isso, sei. Que seja. Nada me obriga a não me repetir. A não me excitar. E me perder.

Embora o vácuo seja o estado natural da maior parte do universo, a última criatura que habita o fundo do oceano, atrás de um grão de areia, deseja, com todas as suas forças, permanecer viva. Há algum sentido no que conto? Sim, aqui estamos nós, as mesas que são este café, nossa presença já é uma fuga em si mesma, uma fuga sem rumo. Se lido com vácuos e oceanos, Augusto, é porque não me impressionam as longitudes, os mapas, a bússola. Ainda assim, você verá, não posso evitar essa tendência de perspectivas, de retas convergentes, alguma alusão à poética cartesiana e outras duras recaídas. Moro atrás de um grão de areia, está bem. E quero desvendar o oceano.

Logo que vim para cá, na busca de assimilar, gradualmente e da melhor maneira, a desordem, a insensatez do que me cercava, eu me consolava com mornas esperanças que na verdade não passavam de frágeis cristaizinhos ofuscados pela penumbra fibrosa de uma trama inextricável. Um colega aprovou minha chegada, lembrando que era esta uma “cidade de muitos recursos”. Assim, quando sentia aproximar-se a sombra furtiva do que pudesse me esmagar em meio aos dias, eu me dizia e me repetia: moro em uma cidade de muitos recursos. Acredite, isso alguma vez funcionou. Eu tinha meu lado prático.

Por vezes, sentia nascer o que se expandia e me dominava, não como resultado de questões que frequentemente me ocorriam, mas a que poderia chamar uma ideia inacessível às palavras, uma sensação principalmente reveladora, que sempre terminava por fazer-me acreditar em novas descobertas, também intuitivas. Pensava em capturar tais descobertas, servindo-me da arte. Pensava também que pudesse decifrá-las com a ciência. Mas a ciência é clara. E a arte é cega. Nenhuma das duas parecia adequada ao meu propósito. Logo compreendi que era ela, aquela estranha sensação, a minha maior inimiga: a causadora de meus tormentos, base de minha dor aparentemente absurda, porta para minhas solidões. Eu a chamava grosseiramente minha loucura. Carinhosamente, às vezes. Vamos, vamos, estamos nos tornando inadequadamente sérios. Mas quero que saiba: eu me debatia com a aproximação de tais crises. Elas me assaltavam nos locais e momentos mais incertos, com isso dificultando-me as tentativas de detectar suas verdadeiras causas. Ruas, escritório. Terça, sábado, segunda. Faiscavam em minha mente como um relâmpago (por favor, não misture nada disso com as ideias fantasiosas que confundem os místicos, os magos e os espiritualistas), legando-me instantes de desespero e ansiedade incontroláveis. Isso é orgânico, você dirá. Pode ser. Talvez sim. Mas suas causas, tenho certeza, não são. Nesses instantes, era como se o tempo me oprimisse e cobrasse de mim a realização de um trabalho que não me cabia decodificar com a razão, mas que, de alguma forma, serviria a redimir-me de tudo o que tinha deixado de fazer (que era justamente apenas viver, justamente a ausência desse trabalho), como se não houvesse mais um minuto a perder e a minha vida fosse acabar na mesma semana, no dia seguinte. À tarde. À noite. A qualquer momento.

Na confusão de meu diário, tudo ia convergindo em direção ao meu trabalho maior, desde os mecanismos do interesse humano aos horizontes que se perdem no fundo de nossos desejos. Você ri? Não, não é isso que vejo em seu rosto. Quem sabe eu houvesse feito algo de mais útil se fosse um cientista, não é? Talvez um… Ora, vá lá: foi o que me coube fazer. Não quero parecer solene, na verdade não sou assim. Mas é certo que muitas vezes me sinto seduzido por espelhos nos quais possa rever minha loucura, e isso faz parte do jogo. Somos todos uma única pessoa, refletida interminavelmente, tanto que nos sentimos milhões sobre a Terra. O jogo maior deriva do plano inapreensível que os homens menosprezam e evitam, mas que os vencerá a todos: o tempo. E o tempo, queira ou não, tudo atravessa.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

7. Não são fotos como as outras. 1 – sequência

5. Dona Norma e o último Coelho – anterior

Imagem: Michael Alford. Savoy 1.

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