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Chora, menino
Ainda bem que eu não falava isso em voz alta.
Um grande ponto de interrogação montado com pedras, cortadas geometricamente, como pequenos tijolos. Logo abaixo da lápide. Era a parte superior, exposta, de uma sepultura que ele lembrava ter visto em algum cemitério da região, alguma cidade menor, onde ainda tinham parentes. Era menino. Nunca mais voltara àquele lugar. Ou ninguém mais fora sepultado por lá. Ou os parentes se afastaram. Ou as duas coisas – provavelmente só a última. Não tinha certeza sobre a cidade, mas isso não importava, não era o caso. Aquela interrogação valia para todas as cidades do mundo. Na vertical: nome, datas. No chão, na pedra tumular, aquele sinal sólido e conciso, aquela grande interrogação eloquente, provocante, dramática.
“… por todo o sempre. Amém.”
Os adultos persignaram-se, murmurando os últimos versos de alguma prece.
“Vem, dá a mão. Vamos voltar.”
Por si só, aquela singularidade tornava o morto em questão interessante para esse menino. Quem teria tido coragem de assumir e expressar assim, de maneira tão criativa e intensa, sua dúvida? Uma atitude humana e bela. Quase tinha certeza de que teria sido alguém de boa índole, pois mais tarde entendeu que os canalhas sempre estão de bem com as religiões: nunca se expõem, não pensam em legar algo aos outros, não pensam nos que podem vir a conhecê-los e saber sobre eles no futuro. Esse menino intrigado e atento gostaria que um dia copiassem aquilo em seu próprio túmulo. Mas isso foi antes de considerar uma alternativa, planejando sua morte mítica. Antes também de pensar que poderiam dispersar suas cinzas nas águas sujas do rio de sua cidade. Como o universo lhe parecia pequeno! Que mentalidade medíocre, dentro dos limites urbanos. Ele não tinha nada com aquele rio, afinal.
Queria voltar àquele cemitério, rever a interrogação de pedra. Mas não encontrava um pretexto para falar nisso. Só desejava, depois esquecia. Era um menino. Anos mais tarde, lembrou-se novamente daquele túmulo e perguntou à mãe onde ficava o tal cemitério, palavra que ela às vezes substituía por campo santo. “Lembra, mãe, uma vez que…?” Mas ela não se lembrava. Para ajudá-lo, a mãe passou a enumerar três ou quatro cidades onde morriam parentes, mesmo assim ela não sabia com certeza. É que, provavelmente, nenhum desses adultos que o cercavam dava atenção a coisas assim: tantos túmulos e ornatos e arquiteturas e alvenarias e estilos que…
“Não lembra mesmo?”
“Não. Um dia morre alguém, a gente vai e encontra.”
Correu à avó, como pedindo socorro, a um passo de irromper em prantos e em pânico, a garganta afogada, porque vira na televisão alguma coisa sobre esqueletos, ossadas humanas, nem se lembrava ao certo do que se tratava. (Isso tinha sido antes daquela interrogação no túmulo, ele era menor ainda, um menino pequeno.) Horrorizou-se muito mais quando a irmã, perseguindo-o pela casa até a cozinha, disse-lhe, rindo e animada pelo sarcasmo, como rogando uma praga: “Você também vai virar esqueleto! Ahahah!”, apontando-lhe o dedo, divertida, agora cantarolando: “Vai vi-rar es-que-le-to!”
“Vó, fala pra ela! Fala, fala! Fala pra ela!”
“Larga seu irmão, menina! Ora!”, colher de pau remexendo algo em uma panela escura. “Não vai virar esqueleto nada não! Ora! Vem cá, olha: acabei de fazer essas bolachinhas de chocolate.”
Isso o tranquilizava. Por enquanto. Mas como ter certeza da imunidade, se era naquilo que se transformavam os outros? E o que acontecia a todos nós, depois de virarmos esqueletos? Da última vez que a irmã lhe pregara uma peça, trocando os pés dos sapatos sob a cama, para que ele os calçasse errado e, portanto, se transformasse em um sapo, correra à avó como fazia agora. (A avó costumava resolver questões dessas facilmente: “Não vai virar sapo nada não! Ora!”.) Seria horrível tornar-se um sapo. Imagine só. Mas parecia ser muito pior acabar como um esqueleto. Isso tinha o poder de preocupá-lo de verdade, perturbando-lhe incisivamente o sono. Aliás, já havia esquecido quase completamente aquilo de virar sapo.
Mas a avó não o ajudava sempre. Também lhe mostrava a Bíblia, o Inferno, o Apocalipse, e tudo isso lhe inspirava muito medo. Por que Deus não se decidia de uma vez a alterar o rumo das coisas e não poupava a todos nós de tantos horrores? Bem, a avó não sabia. E ele era só um menino.
“Vamos fazer outra oração, pedindo que Deus nos livre de tanta coisa ruim, vamos.” (Esse ruim é invariavelmente pronunciado rúim. Bem mais bonito, é claro.)
Não adianta. E as profecias? E as tantas predições pregadas por homens antigos, abençoados e sábios? Ele imaginava, sem contar a ninguém, a calçada da frente de casa trincando, o cimento craquelando-se em placas irregulares, rachando-se ruidosamente, o abismo sem fundo tragando seus pais, sua avó, os meninos e meninas da rua, até o homem bonzinho da quitanda. Tudo isso desfilava por seus olhos para, então, com um último golpe da terra, perceber que ele próprio despencava também. Não entendia como as pessoas não se preocupavam muito com aquilo e repetiam entre si, tão serenamente, previsões sobre o fim dos tempos. Afinal, nada poderia ser pior. (Ainda não estava valendo o calendário maia, 2012.)
Os adultos riam-se, com algum carinho e piedade, de outras ideias dele, inquietações mais ou menos semelhantes, por isso ele evitava contá-las todas. Resistia, resguardava-se ao máximo. Quando não aguentava mais, perguntava. E ganhava um sorriso carinhoso. Mas continuava sem compreender: se aquilo tudo era verdade, se as profecias haveriam mesmo de se cumprir, por que ele não deveria sentir medo? Agiam como se aquilo fosse apenas uma mentirinha qualquer, mas não podia ser. Quando voltavam à igreja, ficavam todos sérios de novo. A Bíblia tinha razão. Cabeças baixas, amenidades, orações. E todos os horrores de volta.
Por que então não levavam tudo a sério? Ou só ele levava tudo a sério? Por que era apenas um menino? Sim. Mais tarde compreendeu, entristecido e reconhecendo-se o maior dos tolos, que só ele levava a sério aquelas bobagens todas que a Bíblia solenemente enumerava. Os adultos (e as outras crianças também) rezavam, sorriam, dormiam em paz, aquilo só servia mesmo para a missa, imagine, a calçada rachando, engolindo os vizinhos, esse menino…
A avó ainda o alertava sobre os riscos de uma eventual condenação ao Inferno. Parecia muito grave, já que não havia como sair de lá.
“Imagina, vó…”
Considerar a eternidade era, por si só, um tormento para ele. Pior ainda num lugar pavoroso daqueles. Receava não perceber ao certo quando cometia ou não um pecado e com que gravidade, por isso as dúvidas sobre seu próprio julgamento o impediam, por vezes, de realizar desejos muito simples. Adulto, ele ainda identificava tal gênero de desejos. Mas agora não era mais aquele menino, que alívio. Porque o menino que levava as coisas a sério tinha medo até da polícia. Tinha medo de ser preso. Ficava sozinho, assistindo às partículas de poeira subindo por um fio de sol, pensando no futuro, com medo de ser preso por engano. Pensava mesmo que, com sua ingenuidade e sua insegurança, por nunca ter certeza de estar pecando ou não, pudesse ser preso por dois anos, acusado de algo que não compreendesse muito bem. Ou por algo que houvesse cometido mesmo, mas sem perceber. Tinha quase certeza de que no futuro lhe aconteceria um deslize assim. Também não sabia por que pensava naqueles dois anos.
O sonho era este (se conveniente, reclassificá-lo como pesadelo): homens da polícia, altos e fortes, como uma tropa de choque, todos idênticos, sem rosto, uniforme escuro, escudos e capacetes (imagens não tão definidas assim, mas irregulares, duvidosas), entravam em sua casa, passando facilmente pelo portãozinho da rua, dividiam-se em dois grupos coordenados, enveredavam por cada lateral da casa, passos rápidos e sincronizados, como via nos filmes da TV. A imagem seguinte era sua visão do assoalho, ele escondido sob a cama, aterrorizado. Então, um dos homens se abaixava e o descobria ali. Ao mesmo tempo, atrás dos policiais, entre as botas que se aglomeravam naquele pequeno quarto, via chegando mansamente os pés da avó, numas pantufas de inverno. Aquele era o quarto dela. Alguma associação misteriosa o fazia pensar em dois anos, tempo estimado de sua condenação.
Mais tarde, lendo versos de Rimbaud, entenderia melhor seu medo: Jovem ligeireza a tudo rendida, por delicadeza, perdi minha vida. A delicadeza. A ingenuidade. Os que não percebem que vivem cercados por perigos invisíveis. Os que se confessam e se entregam. Pensava sobre os que aderiram a causas e ideais, sobre os que por acaso ou mesmo com boas intenções, foram presos ou morreram, inicialmente sem querer. Não, mas nada disso é sem querer. O mártir vive um sonho. Se ele tem razão ou não, fica para outros lamentarem. Ainda assim, acautelava-se: não poderia jamais deixar-se prender por engano, não poderia descuidar de seus gestos, não poderia nunca errar.
A mãe contava-lhe histórias de fantasmas, que em princípio lhe interessavam, para depois lhe obscurecerem as noites, que poderiam antes ter-se aberto em confusas maravilhas. Isso o conduzia a aprender sempre novas orações, já que as conhecidas pareciam não surtir efeito quando se tratava de espantar as sombras, os vultos furtivos, as vozes do além. Pensava em pedir perdão por não haver se empenhado muito, mesmo não conseguindo atinar com o que lhe faltava. Um menino não tem ainda a complexidade de conceituar. Não entende ainda como está sendo enganado. Era apenas um menino.
O pai ensinava-lhe que era preciso respeitar seus amigos adultos, cumprimentando-os formalmente, entre os quais os agiotas que mais tarde haveriam de causar sua ruína. Era preciso obedecer. Renunciar, sob ordens. Sacrificar-se, quando preciso. Não era bom, para um menino, que crescesse sem assimilar tais procedimentos de conduta e de bons costumes.
Um dia, distraído no jardim, ele acompanhava com atenção um inseto colorido que naturalmente passeava por entre ervas e raízes, quando se deu conta de que estava sorrindo. Estava sozinho. Sorria, sem que soubessem. Era apenas um menino.
Tinha vontade de procurar sozinho aquele cemitério. Mas não valia a pena. Agora é adulto, e pensa duas vezes antes de fazer qualquer coisa aparentemente tola – nem sempre consegue. Isso demandaria viagens, tempo, explicações para os outros. Tiraria uma foto, talvez. E daí? Não, não vale a pena.
Mas ele ainda rumina umas coisas estranhas. Se tudo terminava ali, naqueles estreitos espaços retangulares, os cemitérios deveriam ser mais importantes do que aparentavam. Deveríamos frequentá-los muito mais, como se fôssemos a uma praça, a um parque. Era preciso considerar com mais atenção aquele lugar, porque, afinal, depois de tudo o que vivemos… Não sabe continuar. Que estranho caminho para um pensamento. Que bobagem. Ainda bem que não fala isso em voz alta.
A vida é só o que importa. Se não pudermos falar dela, estaremos apenas fantasiando. Se eu puder contar tudo, investigar tudo, compreender tudo o que puder, isso será uma conquista e um legado. Do contrário, serei mais um poetinha ingênuo, carente de agradar, sonhando através de falsos sentimentos, transferindo ideais confusos, talvez até doentios, às novas gerações (isso se não passar a lançar mão de palavras como ilusões, quimeras…) enquanto continuo escrevendo e escrevendo.
Precisamos saber da vida. A morte não é nada, e não temos como evitá-la. As religiões, é claro, pregam sempres e glórias, mas não há nada. Só a vida. Essa singularidade é o que há de mais importante (primeiro por ser uma singularidade), pois tudo se faz e se realiza unicamente por meio dela – inclusive acreditar em tudo o que as religiões pregam de maneira contínua, aliás, sem fim.
Mas ficar filosofando sobre a vida e sobre a morte sempre custa alguma coisa. Atinge, perigosamente, as bases de nosso instinto de sobrevivência – podemos questioná-lo e até mesmo sentir (como um ator representa um personagem e se imagina outro) que podemos dispensá-lo, a esse instinto, imaginando-nos mortos. Algumas vezes, isso causa uma agonia insuportável, tão decantada por pensadores e poetas entre os séculos, por violentar duramente nossos sentimentos mais frágeis ou por falta de uma melhor compreensão da nossa existência. Deve ser daí aquela vontade opressiva de cair num pranto incontrolável e reparador, vontade da qual ele, esse pensador astuto, entre alamedas de um velho cemitério em sua cidade, sempre dá um jeitinho de escapar.
Chora, menino. Não. Para quê? Não resolve nada. E daí? As mulheres já choram por nós, elas têm outro sistema de articulações sensíveis, ele declara, clínico. Cemitério Municipal Chora Menino, lera por acaso em um dos mapas urbanos, quando procurava aquela maldita Rua Rocha, em São Paulo. Que nome inspirador. Adoraria conhecer a origem daquilo. De cara, visualizava um menino, obviamente chorando. Mas via-o também caminhando entre as ruas estreitas do cemitério, com um graveto na mão, tocando em sequência algumas grades, batendo levemente nas estátuas e nas quinas, num resto de infância que não condizia com a expressão de seu rosto muito triste. Um menino que houvesse presenciado, sentido, vivido uma grande perda, uma grande tragédia. Via-o sozinho, sentado no chão, pernas dobradas até o queixo, rosto entre os joelhos, quando todos já tivessem ido embora. Que vontade de ser aquele menino naquele tempo qualquer. Naquele fim de tarde penosamente triste. Como a tristeza é necessária e bela. Que vontade de ficar sentado ali, distante das cidades e dos dias da história, distante de tudo o que existe. Que vontade de ser um menino, ao máximo. E chorar.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
40. Às voltas pelas ruas do centro: Ana Lúcia jaz em movimento – sequência
38. O que fez com ela? – com o corpo dela? – anterior
Imagem: Piet Mondrian. Fazenda perto de Duivendrecht. 1916.
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Comentários
Uma resposta para “Chora, menino”
Passei por aqui e estou levando comigo um pensamento para desdobrar…
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