Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 1512. A clínica e o funeral

Receio que, talvez, magicamente, aqueles cobertores o façam desaparecer.
Ou o transportem a um subterrâneo simetricamente oposto às moradas dos deuses, geralmente no alto das montanhas enevoadas.

Próximo aos dois degraus da entrada, no jardinzinho malcuidado de uma casa modesta e antiga, alugada para servir de clínica psiquiátrica ou de repouso, algo desse gênero, eu apenas espero. Então aproxima-se, vindo da rua, um padre alto e enérgico, rosto anguloso, lábios finos e nariz reto, olhos azuis e intensos, de alguma etnia nórdica ou germânica. Trajes inteiramente negros, botas negras. Ele se detém ao meu lado, pega-me pelo braço e mostra-me, no chão à nossa frente, bem perto dos degraus, uma pedra escura e disforme na qual se firmam duas velas brancas: uma mais alta e acesa (ou plantada em uma parte mais elevada da pedra), outra apagada, com o pavio queimado.

“Venha, vamos fazer uma oração”, ele ordena.

A pedra escurecida é toda manchada de cera, dos muitos círios que as pessoas crentes teriam acendido ali, eu entendo que por muitos séculos, estendendo-se até mesmo a milênios.

“Vamos, vamos rezar juntos”, reitera, muito sério e imperativo, agitando-me como se quisesse arrastar-me para alguma outra parte, mas sem tirar-me do lugar.

Ponho-me de cabeça baixa, fingindo humildade, sentindo sua mão firme em meu braço. Ele parece estar usando toda a força de seus músculos. Faço que rezo, deixando escapar algumas sílabas, num murmúrio quase perdido, para parecer real. Mas o que me ocorre são uns versos de Neruda, mal resgatados, dos quais eu recito: … o Sol, leão central… – imaginando que o padre não vá perceber, pois um poema também dito em voz baixa passa muito bem por uma oração.

No instante seguinte, não está mais ali o padre obscuro e determinado. Ouço uma voz de criança, uma menina que pede a alguém que lhe soltem os pés, amarrados a alguma haste, no jardim ali perto. “Pode me soltar agora?”, ela pergunta. “Posso ir agora?” Essa menina então passa por mim, sem me perceber. Há marcas das amarras em seus tornozelos, e ela usa umas sapatilhas com pequenos brilhantes, lembrando uma princesinha de ilustrações de livros.

Também passa por mim alguém com um chaveiro oscilando na mão direita, querendo mostrar-me esse minúsculo objeto, com inexplicável orgulho – é um avião em miniatura.

Dentro da sala de espera, um cômodo pequeno, com pouca luz, teto alto, tudo ali mal arrumado, e mesmo em considerável desordem, vejo e ouço pessoas passando, entrando e saindo, conversando entre si o que mal compreendo, ocupando-se com um funeral que estaria sendo preparado por todos. Olho para o balcão perto da porta. A recepcionista, de roupa branca, uma jovem simpática, cabelos presos e pele bem tratada, sorri e aponta um dos quartos, logo na entrada de um corredor estreito, como se eu houvesse lhe perguntado alguma coisa. Há manchas nas paredes.

Nesse quarto, sobre um colchão baixo, estendido no piso desgastado e irregular, encontro meu irmão, sentado, encostado à parede. Ele está nu. Ajoelhadas de frente a ele, ou sentadas sobre as próprias pernas, há duas garotas discretas que parecem ser suas amigas. As garotas estão vestidas, camisetas e calças jeans, e isso tudo me parece ultrajante. Uma delas, de óculos e cabelos num rabo de cavalo, dá sinais de ser particularmente muito bonita. (Não posso vê-las de onde estou, apenas percebo partes incompletas de seus rostos.) A outra, uma morena clara, de cabelos mais curtos, tão tranquila como sua colega, também inspira uma forte impressão de beleza, mesmo que não se faça contemplar satisfatoriamente, e parece estar em harmonia com toda essa cena que eu, intrigado e a contragosto, presencio. A garota de óculos, agora nua da cintura para baixo, abre as pernas, enquanto meu irmão se inclina, cheira seu sexo com delicadeza e volta a encostar-se à parede, como aspirando algum poderoso aroma numa máscara cirúrgica que agora se prende ao seu rosto.

Não há cama nem outros móveis. É tudo improvisado, como o interior de uma casa mal habitada ou prestes a ser abandonada. Vejo que a morena faz o mesmo: expõe ao meu irmão sua nudez de pernas abertas, erguendo com uma das mãos a camiseta que agora prende sob os seios, e também se submete a ele com silencioso contentamento, fornecendo-lhe mais daqueles odores mágicos com os quais ele se narcotiza.

Entre um gesto e outro, meu irmão percebe minha presença (elas não), solta ao queixo a máscara cirúrgica e me dirige, com muita serenidade, um sorriso de boca fechada. Eu o repreendo por isso, surpreso com seu estado, com sua condição.“Pelo menos, vista alguma coisa”, eu lhe digo – e por um instante tenho medo de ficar parecido com o padre que me forçou a rezar. Penso em lhe dizer mais alguma coisa, mas agora ele está oculto por muitos cobertores que as garotas sobrepõem uns aos outros, carinhosamente, envolvendo todo o seu corpo, cobrindo-lhe inclusive a cabeça. Com isso, ele parece estar me evitando, fugindo de mim. Receio que, talvez, magicamente, aqueles cobertores o façam desaparecer. Ou o transportem a um subterrâneo simetricamente oposto às moradas dos deuses, geralmente no alto das montanhas enevoadas. Tais são as impressões que me ocorrem na agonia de um único instante – ou nem isso.

Abaixo-me, aflito, agacho-me ao lado de meu irmão, como se tivesse de agir contra o tempo, para não perdê-lo. E vou retirando, camada após camada, todos esses tecidos pesados que se estendem sobre ele, até encontrar novamente seu rosto. Ele parece feliz, de olhos fechados, embriagado com os fluidos encantadores do sexo.

“Não faça isso”, eu o agito, tentando despertá-lo. “Pelo menos, me responda se vai ao enterro. Vamos! Me diga se vai ao enterro.”

Alguém toca meu ombro gentilmente. Um rapaz de cabelos compridos e despenteados, lábios grossos e queixo largo, que muito me lembra Jim Morrison.

“Claro que ele não vai ao enterro”, explica o rapaz. “Não vê que ele está feliz?”

Fico constrangido com isso. Não posso desejar que ele não seja feliz. Não é justo que o force a presenciar coisas ruins, como um enterro. Olho para Jim Morrison, ele também me olha de frente, move a cabeça em tom de negativa, com um sorriso mal iniciado, parecendo querer dizer-me: “Deixe disso. Esqueça o enterro. Deixe que ele seja feliz.”.

Olho para meu irmão, ainda deitado com uma expressão de tranquilidade, outra vez sob as carícias de suas amigas seminuas.

“Ele não vai ao enterro. Não entendeu isso ainda?”, ensina Jim Morrison com paciência.

“Mas eu quero ouvir isso dele”, insisto. “Quero ouvir isso com as palavras dele.”

Deixo o quarto, volto ao balcão de entrada. Explico à recepcionista que estou devendo um mês de aluguel à proprietária da clínica, que passe o recado a ela, por favor, e que logo eu voltarei para acertar tudo. Estendo-lhe a mão para me despedir.

“Obrigado”, eu lhe digo. “Pode ter certeza de que vou voltar e acertar tudo.”

Mas então, inesperadamente, ela me beija – um beijo breve, mas intenso. E se abraça fortemente a mim, agora no centro da saleta, não mais atrás do balcão.

“Eu esperei tanto por esse beijo, por esse abraço…”, ela me diz, com a boca meio afogada em meu colarinho, num misto de alegria e tristeza.

De repente, vejo seus ombros nus, vejo que a recepcionista está nua. Ela me abraça novamente, e então está como antes, em seu uniforme branco. Isso não faz sentido, porque a clínica serve a pessoas que necessitam de tratamento psiquiátrico, portanto essa garota não pode agir assim, supondo-se que ela deva ser, em primeiro lugar, um exemplo de sensatez e de autocontrole.

“Ninguém é de verdade”, ela explica em voz baixa, ainda triste, como se me revelasse um segredo ao ouvido e como se pudesse ler meus pensamentos sobre ela. “Ninguém é de verdade.” Esfrega sua boca em meu pescoço, em meu colarinho, pressionando-se contra mim. “Estou tão sozinha…”, e essas últimas palavras já se prejudicam em sua pronúncia, afetadas por uma emoção muito forte, quando ela inicia um pranto melancólico e contido, sufocado, quase silencioso.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

Sonho 1448. O ancestral pré-histórico – anterior

Sonho 1664. Hotel em outro lugar – posterior

Imagem: Carolyn Pyfrom. Ateliê. 2003.

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Comentários

2 respostas para “Sonho 1512. A clínica e o funeral”

  1. Avatar de Francine Martin
    Francine Martin

    Esse texto me passou a mesma sensação do livro “a ilha do medo”, que você não sabe o que é real ou o que verdadeiramente aconteceu!! Da vontade de ler até o fim!!!! Muito bom.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Obrigado, Francine. Interessante a comparação. Sim, são textos com base em sonhos. É isso que os torna surpreendentes, imprevisíveis.

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