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Quita, a estrela distorcida. Bruno, mal resgatado.
Eu sim, revi seu rosto em sonhos que me fizeram sofrer.
Estela, desde o início, me lembrava Quita – a expressão de seus olhos atentos, ela que talvez fosse minha primeira namorada se de minha parte se houvesse consumado o beijo que seu rosto infantil aproximava de minha boca, quando eu mal despertava de um breve cochilo na relva. Tínhamos doze anos, uma excursão da escola a um parque fora da cidade. Vínhamos estudando juntos desde crianças, e nossos colegas acreditavam que, de certa forma, nos pertencíamos veladamente, como se tudo só dependesse de tempo para cristalizar-se. Eu, nessa fase, julgava-me um cientista ou pensador, orgulhava-me de minha racionalidade e de minhas boas notas, só comparáveis justamente às de minha colega, Quita. Tinha pela frente uma carreira comprometida com as grandes causas do gênero humano, tal como as absorvia dos chamados grandes vultos da história, entre gênios e generais. Então notei, na fronteira de meu sono com o dia claro, entre o murmúrio de muitas vozes alegres e o silêncio do qual eu emergia, o rosto quase sorridente de Quita, olhos vivazes como em toda a sua vigília, minha única rival de primeiras notas e secreta admiradora, a criatura especial com quem eu podia dividir a atenção dos professores e a inveja dos companheiros de classe. Estávamos à parte do grupo, sobre a mesma relva, sozinhos à sombra, sob esse domínio claro, o dia de sono, o silêncio alegre de muitos rumores próximos. Lembram-me com espantosa minúcia uns fios de cabelo escapando da presilha, que era uma estrela distorcida, a maneira como fingi que ainda cochilava para em seguida desviar-me, dissimulando cada gesto como se de nada suspeitasse, Quita desistindo de inclinar-se e também disfarçando uma expressão de constrangimento, e como tudo sempre havia ficado entre nós, que estávamos sozinhos, ela menos do que eu, que acreditava incrustar-me na história à custa de renunciar ao amor, imaginando dizer-lhe: “Não posso fazer isso, Quita. Não sou um como os outros, entenda. Tenho um compromisso com o futuro, com a ciência e com o destino da humanidade.”. Com o tempo, nós nos perdemos de vista. Até nunca mais nos vermos. Eu sim, revi seu rosto em sonhos que me fizeram sofrer. Aproximava-se como daquela vez. Tentava alcançar-me a boca. A estrela distorcida deixando escapar esses fios de cabelo, quase invisíveis, sob a luz reveladora do dia. Tudo, tudo exatamente como naquela manhã de relva: o beijo frustrado, seu rosto infantil e insinuante, meu sonho de engrandecer a humanidade. Outra vez, como naquela manhã. O mesmo pesadelo.
Em minha história, Augusto, também sua, não há o que seja meu, o que não seja de todos. Em outra história, seríamos outros. Sempre os mesmos, penso eu. Júlio Dias? Sim, meu nome. Meu verdadeiro rosto.
“Júlio, eu estou dizendo: elas são umas taradinhas!”
Ele não sabia de que mangas saíam essas garotas que Bruno parecia arranjar quando quisesse, por exemplo, sua ex-colega de classe, cujo telefone mal rabiscado ressurgira miraculosamente, em meio à sua desordem íntima.
“E a outra?”
“Chega de perguntas!” – tendo sido “E a outra?” a única pergunta feita por mim. “Anda, vai pegar uma camisa…”
Bruno não se parecia nada comigo. Mas não que isso me incomodasse. Um tipo desinteressado, embora inteligente (e talvez por isso mesmo), que não me causava aborrecimentos, exceto quando me forçava a viver, arrastando-me ao encontro de mulheres que arranjava, digamos, com certa frequência, eis um bom termo. Tinha um talento especial com as fêmeas, além de ser um belo exemplar por sua vez. Sua indisfarçável beleza, aliás, naturalmente me fazia mais feio. Onde estava? Ah, sim: Bruno, um idealista insaciável: não podia ver uma bundinha, um par de seios. Achava engraçado que alguém pensasse em qualquer outra coisa, mas quem entende um sujeito assim? Se lhe dissessem que o mundo iria acabar no dia seguinte, ele provavelmente estaria envolvido na neblina de seu cigarro ordinário, tramando uma garota para a noite, enquanto faria repetir que o resto se fodesse. Quem entende isso, não é?
Certo, amava a vida a seu modo. E não posso negar que aprendi alguma coisa com ele: sua descontração me fazia ver que o mundo não dava motivos para ser levado a sério, talvez nem tanto, e ele me contagiou com esse amor espontâneo pela vida, até morrer daquela maneira curiosa e trágica, num único instante. (Bruno costumava dizer que “a gente morre num dia qualquer, de um jeito qualquer, e ninguém pode outra coisa”. Quem entende, não é?) Assim perdi meu colega de quarto. Um amigo, não foi o que eu disse? Foi o que eu disse.
O apartamento: pequeno, velho. Mas o quarto, espaçoso, como só antigamente se concebiam nas plantas, quando ainda cabia gente no mundo. Também não se havia descoberto a ilimitada capacidade de clausura dos humanos, que hoje suportam, sem espanto, uma cela qualquer. Não só isso. Uma condição. Uma vida qualquer. Morávamos no segundo andar. O último.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
5. Dona Norma e o último Coelho – sequência
3. Caminhavam mais lentamente… – anterior
Imagem: Odilon Redon. Vegetação na primavera. 1890.
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