Office in a Small City por Edward Hopper

Espirais desnecessárias

Predadores e presas, um jogo de forças, mesmo que não o percebam.
Mesmo que não o admitam – e mesmo que usem tantas vezes a palavra amor.

“Depois eles encontraram a Ana. Digo, encontraram o corpo dela. Eu contei tudo: disse onde tinha jogado, por que tinha jogado…”

“Por quê? O que você disse a eles?”, Liana disfarçando ao máximo sua expectativa.

“A verdade. Porque fiquei com medo.”

“Ahn… Certo”, ela um pouco decepcionada. Desarmada. E também mais calma.

Outro silêncio agradável, tempo suspenso. O motel é de fato bem tranquilo. As paredes do quarto, revestidas por um tipo de feltro, em grandes trechos contínuos, interrompidos por espelhos, parecem isolar o som do exterior, e só se ouvem, ao longe, portas de carro batendo, motores suaves aproximando-se da guarita frontal, entrando ou saindo. Entrando e saindo. Entrando, depois saindo. Todos os dias. Gente se pegando o tempo todo. Predadores e presas, um jogo de forças, mesmo que não o percebam. Mesmo que não o admitam – e mesmo que usem tantas vezes a palavra amor.

“Você conta tudo isso: sobre essa chateação toda, essa burocracia…”, recomeça Liana. “Mas parece que não se comoveu muito com a morte dela. Não é? Só se sente aliviado porque tudo acabou, porque tudo se resolveu. Porque tudo deu certo. É assim que eu entendo.”

Ele ouve um carro acelerando, rumo à estrada. Uma vibração mínima, logo desaparecendo. Sempre mais suave do que o previsto.

“Hoje sim. Hoje. Não é, minha querida? Hoje eu consigo pensar calmamente, contar tudo isso sem me afetar. É o tempo, é a vida. Naqueles dias, eu chorava quase todas as noites. Todas. Primeiro, com medo de ser preso – uma coisa que nunca, mas nunca, tinha me passado pela cabeça. Depois, porque eu poderia, quem sabe, ter ficado com ela, poderia mesmo, aos poucos, ter conquistado a Ana Lúcia, ela poderia se apegar a mim, até mesmo se apaixonar por mim, não era tão impossível, afinal eu tinha chegado até ali, com ela, não é?”

O som do carro desaparece de todo. Mais suave do que o previsto. Alguém foi embora. Deixando para trás o tempo, de que já se vai esquecendo. Tendo antes realizado, talvez, algum modesto capricho ou algum desejo inominável. Ou vai levando dali, daquele momento íntimo, entre inofensivas leviandades, o germe de um novo pesadelo em andamento.

“Eu via, a partir daquela primeira noite, uma possibilidade real de que tudo continuasse. De que ela pudesse concordar em sair comigo mais vezes. Talvez ela acabasse se acostumando, me conhecendo melhor. Talvez aprendesse a gostar de mim.”

“Um-hum. É, podia ser. Nada impossível, claro. Mesmo assim…”

Outra vez o arrepio. Danilo se incomoda com esses mínimos imprevistos. Por que ela faz isso? – essas pausas.

“Ainda assim… Você não lamenta a morte dela. Você lamenta a perda de sua possível amante. Lamenta a sua própria esperança perdida. Você não lamenta por ela, pela vida dela.”

“Não hoje, como eu disse. Mas lamentei sim. Lamentei, juro. Porque o tempo passou, por isso. A gente se acostuma com a ideia, a lamentação não faz mais sentido. Claro que você entende, não é?”

“Não, não. O que eu digo é sobre você ter lamentado a sua perda, a sua possível namorada futura, o seu interesse, é isso que eu quero dizer. Mas ela, o que ela era, a vida dela, enfim…”

“Bom, não sei por que você vê assim. Não sei mesmo. De quantas formas se pode lamentar uma tragédia dessas?”

Liana percebe que ele está se desviando, provavelmente porque não entende mesmo.

“Depois que eu encontrei a Ana manchada de sangue, depois que eu vi que não tinha mais jeito, depois que eu vi que ela não respirava, quando meu susto nem tinha passado ainda, quando fui assimilando o fato em si mesmo, o eco do tiro ainda na minha cabeça…”

“Então o quê? Você já disse: lavou tudo, arrastou o corpo…”

“Não, mas antes disso… Enquanto eu pensava que logo chegaria alguém… Antes disso… Eu cheguei a olhar muito pra ela. Fiquei olhando o rosto dela, pensando absurdamente que ela talvez pudesse estar viva, apenas… desacordada.”

“Sério?”, Liana murmura quase sem pronunciar os fonemas, um som sumido.

Ali, parecem sempre isolados de tudo. O motel na estrada, unicamente povoado por ruídos incertos e sons distantes, serve como terra de ninguém. Ali, os problemas do mundo ficarão sublimados. Ali, os desejos mais excêntricos reinarão, secretamente consumados. Ali, os crimes acabarão impunes.

“Ela estava linda. A pele muito lisa. O queixo bonito, o nariz bonito, a boca bonita… Como se pudesse despertar a qualquer momento, abrir a boca de sono, olhar pra mim e… sorrir.”

O quê?! Liana olha para ele com especial atenção e pensa: só porque é bonita merece despertar? Critérios diferentes para o valor de cada vida? Sempre um resquício de contos de fadas nesses homens, não é possível!

“Puxa. Que triste.”

“Sim. Como uma boneca triste.”

“Não, eu… Continua.”

“Lembrei, num instante, da primeira vez que dei carona pra ela, quando ela me beijou sob aquela árvore escura, quando eu vi o rosto dela de perto, ainda na penumbra. Essas coisas se completavam, como uma espiral que voltasse ao ponto de partida. Fechavam um ciclo sinistro, uma breve sucessão de acontecimentos, durante umas poucas semanas. Que me levavam do sonho à desgraça.”

“Estranho…”

“Da árvore escura ao brilho da arma. Da vasta sombra fosca, ao nosso redor, até os momentos cintilantes da automática nas mãos dela – a Walther PPK, lembra?”

“Lembro, lembro…”

“Uma esperança minha, seja como for, que se interrompia ali. Com um ruído estrondoso. E assustador.”

Liana se distrai com as associações forçadas de Danilo. Ela dá mais atenção às afetações dele do que propriamente ao conteúdo do relato. Aliás, que relato é esse? Ele não está contando nada.

“A engrenagem toda parecia ter sido ativada por mim. As máquinas eram minhas. O convite para ver a arma. O Chevette da primeira carona. E a Walther PPK.”

“Não me fala mais nesse nome, por favor.”

“O Chevette. Eu ainda não lhe falei do Chevette.”

“Não, por favor…”

Além disso, Liana se aborrece com essas metáforas baratas – a engrenagem, a espiral… Ela tem uma racionalidade mais objetiva e não se atrai por essas digressões desnecessárias que vão fluindo das memórias descontinuadas dele. A personagem real Ana Lúcia retorna de um passado desfeito, alimentada pela sequência de imagens que Danilo vislumbra em si mesmo, como com os mortos do antigo Egito, que se supunha pudessem conservar-se vivos enquanto houvesse alguém que os alimentasse, e desenha-se cada vez mais intensa e palpável na imaginação de Liana, que não esperava acabar envolvida com essa história toda com tal nível de interesse. O que ela entende é que, se deixar Danilo falando e falando, ele é que entrará em uma espiral cada vez mais destoante e insensata. Terá de conduzi-lo, de alguma maneira, se quiser saber tudo. Com equilíbrio. Com paciência.

“Você ficou olhando pra ela então. Que situação…”

“E também lembrei (como é que a gente lembra dessas coisas nos momentos mais incertos, não?) de ela ter me contado, quando me deu aquelas conchinhas, que tinha dez anos, que gritava e cantava de frente para o mar, de cabelos soltos, que a voz dela se perdia, e ninguém ouvia, que ela podia gritar quanto quisesse, à vontade, e ninguém… ninguém… Desculpe, eu… Não, tudo bem. Ela devia ter sido uma criança linda. E que o mar era grande e se movia em conjunto, ao mesmo tempo, que quando alguma porção de água se movia, todas as outras se moviam também… E a morte dela, tão longe do mar, mas que horrível ironia! Ela podia gritar mesmo, e ninguém iria ouvir. Naquela penumbra, um lugar sem luz do dia, pouco espaço. Um tiro seco, um dia seco…”

“Tudo bem, querido. Eu entendo.” Liana, amigável. Se ela não o interromper…

“Ela estava tão bonita, tão tranquila. Não podia estar morta, eu pensava, lutando contra o mundo. Talvez, se eu esperasse um pouco mais, alguma chance de a circulação sanguínea retomar seu curso, e o coração…”

“Tudo bem, querido. Calma…” Mão de leve no rosto dele, um afago.

“Uma chance impossível, mas…”

“Mas ela estava morta mesmo”, Liana retórica, quase interrogativa, como se isso fosse necessário para corrigir o incipiente delírio do namorado. “Não estava?”

Um motor discreto, lá longe, parece se distanciar do portão principal. Mais alguém deixa o motel. Algum outro, alguma outra. Outras memórias.

“Estava. Estava morta sim”, ele diz.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

37. Sem adeus – sequência

35. Você era puro e não sabia – anterior

Imagem: Anna Uhr Delia. Gravetos e pedras.

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Comentários

Uma resposta para “Espirais desnecessárias”

  1. Avatar de Camila

    Sagaz, intrigante e extremamente chamativo, não consegui parar de ler nem se quer um segundo. Meus cumprimentos, por conseguir utilizar tão sabiamente as palavras.

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