Office in a Small City por Edward Hopper

Júnia

 
O caso era o mais antigo do mundo: a atração entre um homem e uma mulher.
O caso eram eles.

Encontros são carências. Júnia é o estopim de uma bomba. Mas Danilo não sabe disso. E segue, como todos. Não pode prever o futuro. Tem de se arriscar. Se quiser encontrar o amor. Se quiser, ao menos (e por enquanto), um pouco de sexo.

Júnia abre-lhe a porta. Ao primeiro passo, Danilo compreende que está cercado por um corredor tão curto quanto estreito quanto baixo, que, por algum hábito doentio de fineza, as pessoas chamam hall.

“Júnia?”, ele sempre se dirige a ela em tom interrogativo.

Sorriso, beijo. Camiseta sem mangas, calça jeans larga, descalça. Ele aproveita para passar uns dedos sobre os seios dela.

“O que é isso escrito aqui?”

Ideograma chinês.

“Ah… Pensei que você já tivesse visto. Significa liberdade.”

Decide beijá-la mais uma vez, com força, apertá-la contra seu corpo, num lance rápido. Que bom.

“E como você sabe disso? Hein? Que significa liberdade?”

“Me solta, ai! Eu sei. Eu só sei. Eu acredito.”

“Ah, mas que droga…” ele resmunga, sem perder o humor, deixando-a livre. Tudo bem, tome sua liberdade de volta. No que se baseia? Por que acredita? Como assim, acredita? Tanta consciência política, e quando chega a isso…

Júnia o conduz pela mão até a cozinha, café que vai preparar em seguida. Suas colegas de faculdade costumam viajar nos finais de semana, e eles se movem à vontade pelo apartamento. Ela, moreninha clara, cintura de menina, quadris estreitos, mais baixa que Danilo, sempre fica bem ao seu colo, quase uma adolescente. Mas basta levantar-se, sair do colo dele, volta a ser a adulta intelectualizada, envolvida com as crises do mundo e com os problemas da nação, num momento em que poucos se interessam por isso. Ele não sabe se a admira por isso ou se ela lhe inspira algo parecido com trabalho extra e tédio. Fisicamente, Júnia não é bem o que ele projeta para si mesmo em um futuro próximo – afinal, ninguém é, que não nasceu ainda uma mulher pronta a escapar às críticas desse conquistador exigente. Mas vale a pena ficar com ela, é o que parece. Gostosinha, simpática. E ela se atrai por ele, se entende com ele, quais sejam seus motivos, mesmo conhecendo tão pouco sobre sua origem, sobre os passados remoto e recente dele.

“De onde você está vindo?”, enquanto escolhe canecas, utensílios, abre e fecha armários.

“Fui enterrar um amigo.”

“O quê? Um amigo?”, ela ri. “Me conta. A culpa foi sua?”

“Não. Que eu saiba, não. Espero que não.”

“Que tipo de gíria é essa de vocês agora?”

“Não, não é. E não sou eu, é o Morghini quem vive inventando essas coisas.”

“Palavras, você quer dizer. Neologismos.”

“Não. Coisas mesmo. As palavras já existem. Outro dia ele falou em diploma do padre. Acho que é algo espontâneo nele, parece que surge no meio da conversa.”

“Diploma do padre.”

“Quer dizer casamento. Não é bem empregado, admito. A gente acaba se acostumando e entendendo.”

Danilo acompanhando, observando os movimentos dela enquanto ferve a água, enquanto o tempo passa, enquanto esses pequenos tempos passam. Que coisa, como vim parar aqui? A memória de Alan morto, uns poucos desvios de pensamento lógico, ele tomando café na casa dessa garota agora, alguém que há duas semanas nem existia. Quando pela primeira vez se beijaram, supunham ser invisíveis – apesar dos largos relâmpagos. Outra noite tempestuosa no outono. Dentro do carro dele, protegidos pela forte chuva que parecia a alguns golpes de espedaçar todos os vidros, olhando-se de tão perto, sentiram, cada um a seu modo, sufocar suavemente com a própria saliva, aquele momento intenso e mágico quando os dois já se desejam claramente, mas precisam ainda de um primeiro gesto, como se dá com todo estranho ritual humano. Estavam muito próximos, mas certamente não era isso o que servia de pretexto. Não havia pretexto. O caso era o mais antigo do mundo: a atração entre um homem e uma mulher. O caso eram eles. Apesar dos largos relâmpagos. Danilo não sabia o que dizer. O rosto de Júnia repousava e apertava-se contra o seu, enquanto ele respirava agradecido o cheiro dela, mais forte no pescoço, um aroma natural, sem artificialismos, cheiro de chuva e roupa molhada, ao mesmo tempo o contato de uns fios de cabelo provocando-lhe cócegas na ponta do nariz. “Ai!”, ela gritou. Que susto, outro trovão. Pretexto para protegê-la ainda mais. Mas não havia pretexto, lembra? Demoraram-se num contato lento, trocando lábios e línguas que se apresentavam como delícias vindas de longe, como algo que não conhecessem ainda, pois conheciam com outros, não entre eles, apenas isso. Só que isso fazia toda a diferença. Duas outras pessoas. Outra vez, uma primeira vez. Mais uma vez, outra primeira vez. Os vidros estourariam o espaço a qualquer momento, e todo o carro explodiria em seguida. Danilo viveu uma sensação de grande felicidade porque aquilo parecia não ter fim. Até então, aquele prazer inocente e encantado, aquele vértice de lentas circunstâncias sob a poderosa tormenta pareciam ser o que de mais fascinante lhe havia acontecido em um longo período de tempo, em meio à sequência de tudo o que se engrenava tranquila e logicamente em sua vida. Só não imaginava que fosse durar tão pouco. A luta política dela não significava muito para ele. Foi preciso escolher. Foi ela quem escolheu. A tempestade o surpreendeu. A tempestade que, da outra vez, os protegera.

“Bom, quem morreu afinal?”

“Um da nossa equipe. O Alan.”

“Oh… Que chato… Do quê?”

“Não entendi muito bem. Parece que fígado, um tratamento que ele vinha fazendo. Estava proibido de beber. Mas, como você pode imaginar, ele não se proibia de nada.”

“Muito triste perder um amigo, eu sei. Me passa essa pazinha.”

“Não era bem um amigo. Era um colega. Eu não falava muito com ele.”

Danilo a conheceu há pouco tempo, por isso tenta parecer bonito e sensato para admiração dela. Se for preciso, dirá que era um amigo e pronto. Elas se sensibilizam com essas coisas. Também toma cuidado para não cometer gafes e não cair em alguma situação ridícula, o que nem sempre consegue. Com Maria Elisa, isso não funcionava mais: ela o chamava de paranoico por qualquer coisinha.

“Está se sentindo bem?”

“Claro”, ele sorri para tranquilizá-la. “Só pensando…”

Ele ainda a olha e pensa nela com certa preocupação. Quer sentá-la em seu colo depois do café. Claro que irá fazer isso. Uma vontade avulsa, em meio a seus questionamentos tolos. Instinto masculino, acima de tudo.

“Pensando se vai ou não dormir aqui hoje à noite”, ela inicia um sorriso agora, olhando-o sem piscar.

Mas não é nada parecido, não. Não é uma inquietação desse tipo o que o põe a pensar desse jeito. O problema é não poder definir com clareza os possíveis desdobramentos de alguns incômodos que ela lhe inspira. Que cara complicado você é, Danilo. Pega a menina e vai vivendo, é tudo tão bom, é o que ela espera de você. Mas essa mínima, ridícula impressão não decifrada é o bastante para imobilizar-lhe os olhos, como se um nevoeiro lhe embaçasse a vista. Lembra do vapor no carro fechado, sob a tempestade: você e ela se agarrando como dois adolescentes famintos. E daí? Aquela tempestade já passou. Que mais agora? No fim, vai querer escrever sobre isso tudo, aposto.

“Fica comigo hoje, diz que sim…”, mãos em torno do rosto dele, sorriso de boca pequena, café fumegando lá atrás.

Recordação recente e ainda perturbadora: logo após o primeiro beijo, tendo a respiração declinado ao seu ritmo normal, ficaram observando os rostos um do outro, em detalhes. Danilo, agradavelmente (e literalmente) embriagado, declarou-se a ela, de maneira irresistível, movido apenas pela felicidade presente. Na manhã seguinte, acordou com o ruído do chuveiro. Júnia demorava-se no banho. Ele fechou os olhos enquanto lentamente arranhava, de cima para baixo, o rosto mal barbeado, com as duas mãos. Não tinha planejado começar nada. Sentia-se preguiçoso, entediado, naquele apartamento. Não se familiarizava com aquilo – nem com o lugar nem com a intimidade que ia crescendo com Júnia. Ela lhe aconteceu fácil. Conhece muitas pessoas, parece confiar naturalmente em todo mundo, algo que, para ele, soa incompreensível. E não perguntava muito sobre ele, o que poderia ser bom. Mas não era. E, mais uma vez, ele não fazia ideia do que teria pela frente.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

34. Você ainda tem essa arma? – sequência

32. A Walther PPK – anterior

Leia mais histórias com mulheres: Vanda pela manhã

Imagem: Pierre Bonnard. Jovem se calçando. 1810.

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Comentários

3 respostas para “Júnia”

  1. Avatar de Vania Costa

    Boa noite!!!

    Esta cada dia mais interessante, esta historia Perce!!!

    Parabens!!!
    Abraços.

  2. Avatar de Weiner Assis Gonçalv
    Weiner Assis Gonçalv

    Oi Amigão, diminui sensivelmente meus comentários, pois, estou parando muito pouco aqui, minha rapa do tacho passou no vestibular, medicina, no Rio, assim, fiquei dividido entre lá e cá. Um abração.

  3. Avatar de Sandra Amorim
    Sandra Amorim

    Gostei perce polegatto, tenho o habito de ler e ameiii seu blog !!!

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