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Queremos o fim do Quixote
E não necessitasse de loucos idealistas.
Minha vida tem poucos atrativos, quase nada acontece, e só me é permitido escrever isto, dizer o que penso e assim expressar-me, porque sou inofensivo. Um jovem solitário, pouco atraente, sem assunto, os que me conhecem às vezes deixam escapar que sou maçante e desagradável. Durante os dias úteis, trabalho como um idiota qualquer. Nos feriados, sinto-me um idiota maior. Em dias assim, entre minhas limitadas perspectivas, uma das que me agradam é caminhar pelo centro da cidade, observando o escasso movimento, as bancas de jornais, as choperias e o discreto rumor dos cafés. Evito ficar muito em meu bairro, pois já conheço por ali uns tipos com os quais não gosto de me encontrar. Na verdade, eu os detesto.
Mesmo caminhando sem qualquer compromisso, não posso evitar um trejeito de nervosismo, alguma ligeira ansiedade, aparentemente sem razão, como se nenhuma calma me bastasse e nenhum domingo fosse senão outra amostra perturbadora do tempo que em breve não mais será meu. Sempre me impressionou muito que as pessoas andassem com calma – mesmo entre conhecidos e em suas próprias cidades. Também muitas vezes acreditei que a maneira de andar, assim como alguns gestos viciados ou cacoetes, fosse a sugestão de que a natureza orgânica começasse por eles a apresentação dos sinais de alguma desarmonia mais profunda. Mas nada disso eu via entre as ótimas pessoas que andavam por toda parte. Mesmo que as observasse o tempo todo.
Costumo sair em calças velhas, mesmo porque não disponho de nenhuma calça nova. Nesse domingo, usava também uns tênis tão gastos que a joanete do pé direito já quase despontava rompendo a napa ordinária. Talvez tenha esquecido de borrifar-me desodorante antes de sair, de onde provinha a incômoda sensação de estar exalando odores mornos e acre-doces, embora não tão intensos. Como andava sozinho, e como nunca me acontecia encontrar alguém, isso pouco me importava.
Como todo jovem iludido pelas propostas de nossa cruel sociedade, um dia também eu acreditei que pudesse ser alguém na vida. Ser alguém na vida: eis por fim uma expressão detestável, digna de coléricas reações. Alguns a repetem até hoje, como se em princípio não fôssemos ninguém. Mas isso de eu acreditar foi no tempo em que era um estudante de ensino médio, e tinha lá meus tristes quinze ou dezesseis anos.
Naquele tempo, o nível de ensino nas instituições estaduais atraía estudantes de diversas camadas. Os cofres públicos não haviam sido esgotados por nossos governantes mais hábeis, e alguma verba ainda era destinada à educação. Assim, era normal verem-se crianças descalças à hora da saída, outras sendo aguardadas por automóveis estrangeiros que admirávamos. Desde os primeiros anos de escola, todos nós éramos acostumados ao que parecia mais certo e natural: a extrema desigualdade entre as classes. Algo como se o mundo houvesse sido repartido assim, desde o início, por um deus disforme e sinistro cujo senso de justiça hoje nos parece duvidoso. Nossa consciência era subvertida de maneira a aceitar a naturalidade dessas diferenças, alheia ao fato de que a economia tem como base a matemática, não o destino.
Às vezes até acredito que eu possa vir a ser uma pessoa de bem. Talvez eu tenha sido, a princípio. Antes (antes do quê?), cuidava de meus cadernos e livros, meu material de estudo, às vezes com a certeza de que poderia salvar-me, aperfeiçoar-me. Mas eu era apenas um entre milhões. E não poderia afirmar que alcançaria esse êxito. Pensamentos homicidas como os que me permeavam nessa tarde pareciam-me inconcebíveis há pouco mais de dez anos, quando ainda era um estudante. Não sei ao certo o que me aconteceu. E só não fui ainda condenado a algum gênero de execução porque não digo a ninguém o que penso, porque não sabem sequer que eu existo. E não deixarei que o descubram, não revelarei o que só eu aprendi, hei de continuar fingindo sempre que o mundo é justo, que Deus existe, que cada um tem o que merece.
Eu ainda associava as pessoas, as coisas, à literatura, um dos pegajosos demônios que não me deixavam. Eu queria o fim dos quixotes. Queria que o mundo fosse, de fato, melhor. Com fatos e feitos melhores. E não necessitasse de loucos idealistas. Também me perguntava se meus semelhantes haviam lido algo do que eu lera, se na infância lhes acontecia o universo das histórias em quadrinhos, o que bem me lembra ter-me levado de alguma forma aos livros e aos rascunhos de minha fase adulta. Eu juntava restos das revistas em quadrinhos que os outros garotos desprezavam. Queria ler tudo. Ia à feira semanal com escassas moedinhas, buscando na banca de revistas usadas o que meus recursos, tão avessos à urgência de minha sede, permitissem, não raro um título escolhido com minúcia, entre outros tantos diamantes. Frustrava-me descobrir, mais tarde, lacunas nas histórias, exemplares a que faltavam as páginas centrais, por vezes o desfecho das aventuras mais criativas, sem contar os palavrões e obscenidades que algum desapegado leitor houvera por bem garatujar sobre certas imagens que eu gostaria de ver intactas. Via-me hoje sentado entre tantos que conversavam, riam e por vezes ruidosamente gargalhavam, sem saberem de minha busca, eu no fundo tentando juntar restos de um mundo perdido. Um mundo que os outros garotos ainda desprezam e usurpam.
A conspiração dos felizes – Guia de leitura
38. Chegadas partidas – sequência
36. Entre fetiches e delírios, tudo muito secreto – anterior
Imagem: Gustave Doré. Dom Quixote e Sancho Pança. 1863.
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Comentários
Uma resposta para “Queremos o fim do Quixote”
Caro Perê:
Que perfeição! Um texto ao mesmo tempo cruel e delicado, profundo e bem-humorado. E já tinha lido há anos “A Conspiração dos Felizes”. Parabéns.
Edson.
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