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Vanda vence a água e as nuvens
Mas, justiça seja feita, ele nunca se declarou forte.
Sim, antes que o tempo escorregue por nossos dedos. Antes que seja mais tarde do que imaginamos.
Mal podia vê-la, a roupa que fosse, eu chegando ao apartamento, já a desejava com toda a saliva a sufocar-me a garganta, essa sensação inconfundível que precede e já desencadeia os estados de grande excitação, e isso me cegava, impedia-me considerá-la ainda como pessoa, mal tinha tempo de pensar em qualquer outra coisa, caso ela não me refreasse algumas vezes, evitando que tudo se consumasse em alguns rápidos minutos e que acabássemos de certa forma dissimulando algum constrangimento por não termos nos comportado senão como dois carnívoros no cio, vencidos pela urgência de antigos impulsos. Sim, poderosa Afrodite: este mortal que se supõe filósofo acaba de se render. Mas, justiça seja feita, ele nunca se declarou forte.
Mal tinha tempo! Nunca uma palavra foi tão mal empregada, não importa. Os diários, por si só, subentendem necessidades emocionais, assim devem ser considerados. De fato, ela me cegava, a culpa era minha. Lembro-me da primeira vez em que a surpreendi na piscina do condomínio, entre uns escassos vizinhos, uma família com crianças e um homem mais velho, que se atreviam ao banho entre os ventos pouco convidativos da estação, o domingo de nuvens. Eu acompanhava sua mobilidade, sua harmoniosa relação com a água, enquanto ela atravessava a piscina, sem perceber minha presença recente, afastando-se do ponto onde eu me encontrava, disfarçado. O sol, quando raro se dava, refletia-se dançando sobre a superfície irregular. Acredite, nesse momento eu não a via como amante. Via uma estranha vencendo pequenas distâncias. Via uma mulher, quase um mito arquetípico, a forma desenvolvida pelo tempo para conduzir a vida mais adiante, e não podia deixar de associá-la outra vez à noção dos mares primitivos e à maneira como se havia domesticado a água em piscinas simétricas como aquela, próprias a essas criaturas quase indefesas que se tornaram os maiores predadores da Terra, dominaram todas as variações de ambiente e hoje apenas brincam de vencer. Poucas vezes vira algo tão belo quanto o corpo de Vanda sob a água. Belo como a oscilação dos reflexos agitando-se no fundo azulado e que o sol emprestado depois levava de volta. Refração modificando as faixas, estranhas relações de assimetria contra a perfeição dos azulejos. Vanda e seu complexo conjunto de movimentos outra vez alterando as faixas – e para mim, frente a tais sensações difusas que nasciam e cresciam apenas em meu silêncio, onde terminavam as faixas, começava o abismo. A vida, como o universo, é um acontecimento. Meu ser em trânsito, um processo. Vanda cruzando a piscina de nuvens. Era preciso livrar-me desses pensamentos, tão precários quanto óbvios, antes que minha mente se tornasse um obstinado tratado filosófico. Quase chego a pensar que acredito em algo. Mas não importa, não muito. A esperança, no meu caso, consiste em permanecer vivo. E tentar compreender.
Um braço e outro abrindo a superfície à frente. Pés criando um breve rastro de espuma. Ali está ela, atravessando as águas, atravessando o tempo, a seu modo. Lagarta aperfeiçoada. Pele pré-cambriana. Quadris silurianos, seios triássicos… – eu admitia e assimilava com tranquilidade minhas recaídas poéticas. Voltando à margem do terraço, por fim sorriu ao ver-me: “Oi!”, fez ela magicamente. “Pffffush…”, cuspindo e soprando água em seguida. Vanda cretácea, em águas quaternárias. (Que peste é a poesia. Que peste era a Vanda.) E meu sonho de seus olhos antediluvianos, se bem me lembrava. Ofegante, apoiando-se na borda. “Uau… Fffuuuu… Sinto como se todo o meu oxigênio… meu sangue todo se renovasse… como se… como se a minha vida estivesse começando agora…” Joguei-lhe água no rosto. “Não é a primeira vez que a vida começa na água.”
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
58. De intimidades e ousadias – sequência
56. Não foi tão ruim, mas foi ruim – anterior
Imagem: Anna Uhr Delia. Memórias sobrepostas.
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