Office in a Small City por Edward Hopper

Registro de ciclos e movimentos

A Terra gira e recicla seus ossos.
Há escombros impalpáveis, fendas na memória.

Acima e para além de nosso muro, o cone imenso e ameaçador do Asama. A manhã feita noite de resíduos e cinzas, o céu que precede as tormentas, hoje encobrindo um surdo silêncio de ruídos escusos, abissais e ainda sufocados nas vastas entranhas da terra, reina sobre os que se juntam na vigília, eu entre os de minha casa, crianças de vizinhança e escola, unidos nem tanto pelos sinos da pequena igreja, mas pela aura de apreensão que não podem dissipar suas notas de bronze, tão familiares aos da aldeia como o foi sempre a silhueta do monte que aspira a despertar. Observo meu pequeno cão, também sua variação de medo, quando um vago tremor e um tilintar de vidros dentro das casas arranja-se ao grave alerta dos sinos. Um lento e indefinido hálito de vapor sobe do cone, manchando a faixa de cinza uniforme. Um estrondo maior, agora contínuo, e o fogo e as pedras destroem o céu. Com meu cãozinho ao colo, perco-me entre a multidão em pânico, ninguém mais faz vibrar os sinos ante o poderoso rugido do Asama, a um tempo as torrentes de lava que se aproximam, minha casa açoitada, gritos das mulheres com seus filhos, o terror no rosto de meu avô e em homens parecidos com meu avô, até que eu me perca também entre vigas, pedras, fuligem, manchas, escombros.

Outra volta da roleta azul, também vista por nós com o singelo nome de borboleta. Recentemente lubrificada, responde rápido ao impulso inicial de minha perna esquerda, antes que eu suba também na barra inferior para aproveitar seu giro. E o sorriso calmo de meu avô, seu fundo o canto dos pássaros, a brisa matinal em arbustos mais próximos, seguido de um breve aceno, sinal de que devemos voltar. A roleta, que antes contava os visitantes do Jardim Botânico, tem hoje o eixo livre, à disposição de crianças ociosas como eu. Meu avô, umas vezes, caminha sozinho pela porção do bosque à margem do orquidário, onde sabe que estou seguro; outras vezes, senta-se ao meu lado no banco de pedra, junto ao chafariz, lugar que geralmente escolhe para falar-me, como falando a si mesmo: “Não se prenda a nenhuma lembrança, meu pequeno Pepo. Lançando um olhar a tudo o que existe, você pode ver que nada nos pertence como dizem.”. E quando prefere dirigir-se às árvores, sem olhar-me de frente: “Pequeno Pepo… Quero lhe confessar um antigo pecado…”. Seu mundo é um grande mistério para mim. Mas não me tenta desvendá-lo. Aqui, em sua companhia e integrado às manhãs de madeira, brisa e cristais de água, dissipam-se pesadelos como o do vulcão Asama, contrapõem-se outras sombras à leve lembrança de visões mais pitorescas, como a do intrépido aventureiro que busca circum-navegar o mundo e dá com sua embarcação na bacia de pedra do primeiro chafariz da infância. A sequência de pérgulas e caramanchões que compõem o caminho de volta, os canteiros malcuidados, semidestruídos, das casas, contam que os moradores se substituem, fenecem ou renovam-se os jardins, sim, não se pode viver sempre. Ainda as paredes e muretas úmidas de tempo, sinais que se associam à sua infância e à minha velhice, tão longe do dia seguinte, quando a feira livre, por onde amo vagabundear, instala-se, para meu delírio, na rua de casa e sob minha janela, pregões e o ranger de rodas gastas, o aroma intenso e o colorido das frutas provando, à sua maneira, que a vida sempre continua.

“Não exatamente a temperatura, mas o movimento das placas tectônicas.”

“Discordo”, argumenta Plínio. “O que causa o movimento é justamente a temperatura em que se funde o magma.”

Oshima entra na conversa.

“Os terremotos e maremotos também podem ser causados pelo choque das placas.”

“Acho que estamos perdidos outra vez, dizendo todos a mesma coisa.”

Plínio torna a recordar estatísticas comparativas, mortos e desabrigados.

“Não é das vítimas que estamos falando”, diz Oshima algo irritado. “Todos morrem de uma maneira ou de outra. Erupções e abalos sísmicos são mostras da vitalidade do planeta e uma maneira magnífica de reciclar matéria essencial à vida.”

Magnífica? Sem trocadilhos, por favor. Estamos a dois dias do exame.”

Plínio parece disperso com o silêncio seguinte. Não há silêncio, se prossegue o vento nas amoreiras a alguns passos de nosso alcance, o pequeno pomar abrindo-se à porta do quarto de estudos, última fronteira da casa. Vejo que ele se detém por mais tempo tempo a contemplar a grande deusa nua, entre as mais desejadas por nós, que Oshima tem conquistada por inteiro na parede maior, uma das ninfas que habitam o reino distante dos empresários de moda e editores de revistas masculinas, a quem nos acostumamos e da qual dizemos sempre as mesmas coisas, elegendo as mesmas curvas e porções do corpo, os mesmos arranjos espreitados por nossa volúpia. Plínio é o único que conhece o gosto de uma namorada. Nós o apoiamos e o invejamos, à espera de nossas chances. Oshima concentra-se numa apostila, só desviando os olhos à enciclopédia e aos recortes de nosso arquivo. Vejo-o como em transe, ele, por vezes mordendo os lábios enquanto lê. Tem os atributos de um grande profissional, tudo o que faz é revestido de responsabilidade, a convicção que sempre me falta: a de que o futuro pode ser vencido com o esforço próprio e o desenvolvimento intelectual. A discussão sobre as causas dos sismos leva-nos às ilustrações, fotos e pinturas, que revelam Pompeia e Herculano, entre os escombros de um presente mal resgatado. Os moldes que tornaram as estranhas fendas na lava petrificada réplicas das verdadeiras vítimas do Vesúvio contam das expressões de horror e pânico com que foram flagradas pela terra: crianças no que seriam seus berços, casais no instante da cópula, homens como em posição de ataque ou defesa, uma guerra perdida desde o primeiro tremor sob o solo, pessoas mumificadas em gesso, que não tiveram a sorte de ser esquecidas (por certo, eu é que as desejaria esquecer) e ficaram, como ficaram os retratos e os mosaicos de pastilhas dos artistas locais, eternizando homens e mulheres num daqueles momentos de calma e beleza em que todos se suportam, assim concedendo seus rostos ao observador imaginário, o momento de harmonia entre as cores, cosmo contra o caos que engendraria as estátuas agonizantes, testemunhas de um dia de terror, um momento imperioso, sem chances reais. Oshima menciona com ironia a antiga tese do catastrofismo defendida por Charles Bonnet, entre outros, inclusive para explicar os fósseis antediluvianos, cuja ideia principal centrava-se sobre a periodicidade das grandes catástrofes no passado, envolvendo a totalidade da Terra. Bonnet acreditava que, após cada um desses eventos, as formas vivas subiam um degrau na escala da vida. Previu também um vasto cataclismo futuro que faria dos símios homens e dos homens, anjos. Oshima, o primeiro da turma, persegue ser um grande cientista: atraem-no a Física e a Geologia, o estudo é seu estado de graça, sua religião de ateu, sua senda para a perfeição. Plínio, o apaixonado, envolve-se com a brisa no pomar, traz nua a namorada para dar-lhe essa tarde sob as amoreiras. Por minha vez, eu os observo. Eu apenas vejo.

O quarto agora traz a noite passada, uma claridade neutra que não cria sombras. E prenuncia algo que mal pressinto, mas que não é a manhã como a aprendi. Deixo a cama sem tocar essa que ainda dorme. Observo sua nudez, seu silêncio, procuro os cigarros. Dois corpos jovens, ilesos, apesar da noite em que se consumiram, o momento em que se sentiu invadida por uma sensação vertiginosa e fora de seu controle, o momento em que eu, tendo-a sentada sobre mim, constatei todo o sangue subindo em direção à cratera vermelha, a erupção irrefreável que recicla matéria essencial à vida futura. Sinais de vitalidade da Terra, movimentos necessários, atos de seus filhos estranhos. Sigo a fumaça do cigarro. Há pouco, impressionaram-me, não como antes, não com o mesmo fascínio, imagens de gigantescas avalanches provocadas pelo derretimento das geleiras. Os ambientalistas explicam tudo, é bastante simples. Mas não é o que vejo. O erro também me atrai. O netunista Werner não acreditava na importância geológica dos vulcões, ainda que grandes porções da própria Europa revelassem sua gênese sobre campos de lava. Eu, que não sou cientista, imagino os sismos devastadores ou lentos que teriam formado o Himalaia ou os escarpados picos em Kueilin. Sou livre para arranjar nomes que antes pareciam temíveis, como os do Mayon e do Taal. Nyos, Lemington, Krakatoa, sob a calma da manhã que nasce. Chamo Santa Maria a um seio, Nevado del Ruiz é o outro. E não morarmos, eu e minha companheira, em Pompeia, não haver o que possa eternizar-nos contra o dia que somos… O que eu mal pressentia, fenômeno de equilíbrio, forma intermédia entre as grandes inundações e a água necessária às sementes, arranha com seus primeiros ruídos meu silêncio sem sono, o que tem sido sempre meu falso silêncio, atravessado de tumultos, outra vez o rumor contínuo dos ciclos.

“A chuva outra vez?”, ela desperta, move-se na cama.

“Outra vez a chuva”, digo.

A Terra gira e recicla seus ossos. Há escombros impalpáveis, fendas na memória. Tantas vezes restaurada e ainda assim, na junção das hastes, o oliva-ferrugem, óxido de azuis na roleta que hoje conta os mortos. Junto ao orquidário, junto ao chafariz e ao banco de pedra, aqui onde me sentia seguro, sem considerar o verdadeiro giro do remoinho silencioso, o ciclone que me trouxe à velhice, eu às vezes tremendo, outras explodindo, inundado em êxtase ou sozinho, soterrado entre deslizamentos, algo tão à margem das grandes catástrofes, mas violento à sua maneira, carregando-me, sem defesa, da infância à adolescência, do homem ao que hoje sou, daqui à faixa espessa do que nem em sonhos entrevejo, do que na verdade ninguém vê, mas que certamente não dispensará as cinzas.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem: Jessica Siemens. Salton Sea. 2011.

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Comentários

2 respostas para “Registro de ciclos e movimentos”

  1. Avatar de Perce Polegatto
    Perce Polegatto

    Fellippe, quanto tempo, bom te ouvir, fico contente que tenha gostado. Essa uma das minhas “velharias”, coisas que escrevi no final dos meus vinte anos, fazem parte do meu segundo livro de contos, o ”Lisette Maris”. O bom da internet é que eu posso divulgar tudo agora, de outra maneira, com maior possibilidade de leitores.
    Abração.

  2. Avatar de FELLIPE KNOPP

    Esse último parágrafo está esplêndido, Perce. Já em seu primeiro verso imagens magníficas, elegantemente impactantes.

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