Office in a Small City por Edward Hopper

A casa e a célula

As casas antigas nos parecem misteriosas não por abrigarem fantasmas.
Mas porque poderiam abrigá-los sem que soubéssemos. E ela sabia.

Subindo a escada rolante da última estação, rumo à saída, ela ainda me falava de células. Durante o percurso, entre momentos de vago interesse e dissimulada atenção de minha parte, viera me mostrando um capítulo sobre citologia no livro muito ilustrado e de atraente qualidade gráfica que lhe servia aos estudos.

“Uma célula é algo assustador para mim. Sei que só você me compreende”, ela repete.

Repete. Porque já havia dito isso enquanto estávamos no trem. A imagem de uma célula era algo que a fascinava, ao mesmo tempo imprimindo-lhe uma reação de medo – uma sensação pueril e desesperada que eu ainda não conseguira completamente decifrar. Segundo as palavras dela, temos sempre em mãos a imagem conhecida de uma célula, e isso é simplesmente tudo: nossa origem, o que somos, nossos pais e avós, qualquer ideia que façamos do universo contida ali. De resto, essas mesmas células nos lembram de que não existe o espírito imaginado em nós, nosso próprio espírito (se alguém ainda o imagina), mas somente a vida, o que nem sempre é pouco.

“O fato de imaginarmos esse espírito”, ela em sua habitual e sóbria racionalidade, “é resultado da organização de certas células, como, por exemplo, os neurônios, e depende do trabalho delas para formar-se em nossa fantasia. Isso nos ilude com a triste ideia de sermos nossos próprios fantasmas. Com o sonho terrível de nunca poder morrer.”

Claro que eu não poderia (nem deveria) aproximar-me de tal pensamento. Mesmo porque não o havia procurado, ele é que chegava até mim por meio das conclusões dela, que, por sua vez, pareciam ter-se originado de um sonho – para muitos, talvez, um pesadelo. Na verdade, preocupam-me tentações desse gênero, porque sei que sou capaz de experimentá-las. Ter um dia vivido certas experiências por minha própria vontade é o que mais sustenta meus receios secretos hoje.

Ela enfiou o livro na bolsa. Ao sairmos, eu a conduzi por outro caminho. Olhava-me com alguma desconfiança, mas dócil, enquanto eu a guiava pelo ombro.

“Aonde nós vamos?”

“Quero que veja algo.”

Seguíamos sem pressa, passos em harmonia, apenas meu pensamento pretendia assimilar o que até então ouvira dela: o que de fato somos reside no fundo de todas as terminações nervosas que se expõem até a superfície de nossa nudez. E, mesmo assim, de uma forma distante, pois, quando caminhamos, por exemplo, experimentamos a certeza de que tudo nos faz sentir vivos, sem atenuar a certeza de também não podermos contar tudo – além de nos confundirmos inutilmente com palavras, como se acaba de ver.

“Não é muito longe, é?”

“Não”, eu disse. “Aliás, está muito perto de nós.”

Conforme nos aproximávamos, como pressentisse alguma situação de sombra, ela tornou a olhar-me com curiosidade e inquieta.

“O que é? Aonde está me levando?”

“É logo ali. Na rua que desce. Vamos.”

“Mas… O que é?”

Fiz um gesto para que se tranquilizasse enquanto caminhávamos em direção a essa rua de casas muito velhas, entre as quais uma em especial, a que pretendia mostrar-lhe. Consegui distraí-la à custa de comentários avulsos (o céu de nuvens instáveis, o tom singular de vermelho num automóvel ali perto, uma notícia do dia, um gato que acabava de se esconder de nós, num jardim denso e escuro) até chegarmos à tal casa.

Pedi que parasse, tomei-a pelos ombros, pondo-nos um frente ao outro.

“O que eu quero lhe mostrar está aí, atrás de você.”

Ela virou-se para olhar, apreensiva, então voltou-se para mim com uma expressão de pânico.

“Não”, disse ela. “Você prometeu…”

“Não prometi. Mesmo assim, precisava que você visse.”

Não me importava que ela perdesse a calma. Meu objetivo era desvendar tudo e, diante de tal perspectiva, parecia ser esse um preço pequeno. Principalmente quando se considera que tantas vezes aparentamos calma, serenidade e equilíbrio, mesmo enquanto reprimimos conflitos aos quais não nos agradaria sequer nomear. Além disso, já havíamos chegado muito longe, para que não se tentasse qualquer recurso drástico.

“Não!”, ela gritou, levando as mãos à cabeça. Encarava-me de frente, com os olhos escancarados de seu medo. Como eu já previa, perdeu o controle rapidamente, por isso tive de segurá-la com firmeza pelos braços.

“Esse lugar! Esse lugar!…”

“O que tem o lugar?”, perguntei. “Você sempre me disse que os lugares estão fora de nós.”

“Não esse! Esse lugar está dentro de mim! Os lugares estão dentro de nós! Os lugares estão dentro de nós!”

Nesse instante, lembrei, não sendo o momento de dizer-lhe, que as casas antigas nos parecem misteriosas não por abrigarem fantasmas, mas porque poderiam abrigá-los sem que soubéssemos. E ela sabia.

“Os lugares não estão dentro de nós”, afirmei. “Você precisa compreender. E libertar-se.”

Como ela apenas se debatesse e parecia não me ouvir, tentei fixar seus olhos com severa insistência.

“Do que você se lembra? De seus avós? De seus pais? O parto de sua mãe ou o seu, a casa, as células? O quê?”

“Me leve embora deste lugar! Me leve embora daqui!”

Vi que ela não tinha mais condições de falar, tomei-lhe a bolsa e vasculhei seu interior, em busca dos comprimidos.

“Aqui. Mais um.”

Com isso, levei-a de volta à mesma estação de onde viéramos, tomando o metrô no sentido oposto. Sob efeito dos tranquilizantes, ela adormeceu em meu ombro. Fiquei olhando seu rosto. De minha parte, não pensei que um dia pudesse estar tão envolvido com seu caso, com sua surpreendente história, com ela própria. Eu pressentia, conforme se revelavam as fases do processo, que não sairia ileso dessa convivência, como aliás nunca saímos ilesos de nenhuma relação humana. Nunca nada esteve a salvo. E eu acabei, de certa forma, influenciado por suas associações no mínimo singulares, sua inusitada visão de mundo, enfim, o que se depreendia da precisão de suas palavras e que teria germinado em suas solidões.

Ainda no trem, passei a folhear seu livro, até encontrar a tal ilustração da célula. As pessoas ao nosso redor iam quietas, vibrando sutilmente com o movimento do vagão, o ruído abafado do comboio. Fiquei olhando aquela página, pensando em seu medo. Tentando compreendê-la em suas sensações de pesadelo, tendo à frente a simples imagem de uma célula sob o microscópio. Percebi que me sentia estranhamente alterado ao observar a vida ali mesmo, próxima a mim, as pessoas presentes, imaginando cada parto, cada casa no passado, cada corpo transitório que, fora de si mesmo, era apenas uma ausência, nem mesmo perturbadora. Durante o percurso, fui aos poucos despertando certos pensamentos que não me haviam ocorrido até então. Os passageiros, indiferentes, olhavam em diversas direções. Um ou outro olhava para mim. Para ela, adormecida ao meu lado. Os lugares estão dentro de nós. As células estão dentro de nós. O medo.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

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Imagem: Liam Mohan. Paradigma.

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