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Cores, sombras: aquarela de passagem
Meus desenhos já não respondem sequer a um fragmento de tais indagações.
Nenhuma pintura pode narrar porque nenhuma transcorre.
Narrar é transcorrer, ir de um lado a outro, passar.
– Octavio Paz, O mono gramático
Calçamentos de pedra, ladeira acentuada, minha mãe levando-me pela mão. De novo, a entrada estreita da loja de molduras, o cão da oficina, o papagaio da quitanda: é apenas o caminho de volta. Minha lancheira encardida, ela com seus cadernos de classe empoeirados pelas quadras de terra que afastam a pequena escola, um galpão tosco e sem recursos, que fica para mim tão longe, longe… É apenas o caminho de volta. Mas, aos seis anos, tudo é fascinante em qualquer caminho.
Monstruoso, o cão da oficina. Inteiramente negro, preso por uma corrente, os caninos amarelos, latindo aos que passam. É, por si só, o demônio sombrio que toma corpo em meus pesadelos, pondo-me a procurar a cama protetora de meus pais.
O papagaio habita o poleiro da casa junto à quitanda. Há uma argola de ferro para suas acrobacias e caixotes de maçã sobre os quais ele ama passear. Silencioso e pouco alegre, ele me atrai. Mamãe explica que é uma ave muito velha. Talvez viva assim infeliz por não poder morrer. Por não saber morrer quando deseja.
O toldo desbotado da casa de molduras, a modesta exposição de temas vulgares que me enche de cores. Memorizo os quadros junto à entrada, os maiores na parede encardida, outros simplesmente na calçada, ao pé da única porta. Tanto eu os conheço que posso notar qualquer mudança em sua sequência e disposição: um quadro recolhido, acrescentado ou substituído.
Entre as reproduções, uma em especial encanta-me por parecer mais alegre que as outras: o jovem casal dos tempos do Império, ela sentada nos degraus do jardim, ele a cortejá-la do alto de seu cavalo. Sorriem, belos. Não tenho noção de épocas, mal imagino que estejam mortos há mais de um século, que sua juventude é apenas memória de um tempo desmantelado, uma fase perdida para sempre. Hoje sei que aqueles jovens retratados no jardim não são duas pessoas, mas uma representação, rostos de beleza acadêmica, demasiado evidente. À parte isso, houve um dia jovens como eles, com suas roupas e costumes, sentados em um degrau ou chegando a cavalo, houve certa vez essa juventude. A tela, desprovida de maior apuração artística, enuncia apenas um momento, o maneirismo dos gestos, por trás de tudo a tentativa do pintor empenhado em eternizar, se não a memória, a ideia pouco verdadeira de um casal, um jardim na tarde de outro tempo, hoje não mais. Casal, jardim, tarde, tempo. Pintor. Não mais.
Subindo com minha mãe, o que vejo é o mesmo quadro. Ela me compra cadernos de desenho, lápis de cor, escasso material que uma criança demanda e que seu dinheiro pode comprar. Passo as tardes em meu quarto, distraído do mundo, se é que se possa dizer assim, copiando de memória o que tenho visto na casa de molduras, principalmente o cavaleiro bonito e a moça sorrindo no jardim. Preencho o papagaio da quitanda, aplicando-lhe verdes muito vivos, com isso sonhando ajudá-lo de alguma forma, ao emprestar-lhe as cores fortes e bem definidas de minha infância. Atrevo-me a gravar em cores escuras o focinho medonho do cão, destruo tudo em seguida, assustado com ele e comigo mesmo, por haver tentado reproduzi-lo. Que estranho prazer me atraía a engendrar o desconhecido de meu terror, a desafiar-me com ele?
Em um dos filmes mágicos que me serviram à infância, havia um artista de rua que pintava paisagens improvisadas no chão de uma praça. Ele dispunha de velhos pincéis amarrados a varetas, tinta ordinária, panos imundos, estendia um boné aos que passavam, e assim ganhava a vida. Essa praça era também o caminho diário de uma jovem garçonete que ele cortejava e a quem dedicava algumas de suas precárias maravilhas, sabendo que ela lhe admirava o talento e mantinha com ele uma discreta relação, entre breves e simpáticos diálogos. Certa vez, enquanto ele lhe mostrava algumas de suas novas criações, começou a chover, e todos assistiram desconsolados à dissolução das vivas paisagens, tornadas borrões de tinta sem sentido. As pessoas rapidamente se dispersam, e a moça então lhe diz, solidária: “Oh, Pierre… A chuva desmanchou teus lindos desenhos.”. Ele move os ombros, não sem alguma tristeza. “Não tem importância. Faço outros.” Nossos nomes eram de alguma forma parecidos, o que despertava minha atenção e me fazia menos sozinho. O que mais eu queria, como ele, era desenhar.
Desenhar, interpretar meu pequeno mundo. Desejo de compreender sentimentos ainda primitivos, mas controversos. Ato de manipular imagens, desde observá-las até recriá-las no papel, cada fragmento de vida, cenas avulsas e cotidianas, à luz dos dias mais claros, dos que não fazem crer que tudo, que qualquer coisa é impregnada de mistério.
O que é ter nascido em certa cidade e viver uma infância? Ter-me acostumado ao caminho de casa e à mão morna da mulher que gerou cada um de meus sentidos em seu ventre, ser alguém e assim estar preso a um tempo, a uma época, ter sido alimentado e aquecido no inverno, para que um dia pudesse sentir a luminosidade dos dias, começando por rastrear pequenas respostas, desfazendo-me em desenhos e separando cada lápis do estojo, cores escolhidas para contar de pequenas vidas, contar sobre mim, contar de meus olhos. Antes de aprender a escrever, desenhar me parecia ser tudo. A chuva não havia ainda diluído meus desenhos, não os meus, que os firmava sobre papéis bem guardados em meu quarto, cada traço espesso e nítido garantido pelos lápis de cor que os preservariam para além de meus dias.
Outra casa, outro bairro. Vou ao colégio. Minha mãe se aposenta. Já não subimos a ladeira de pedras nem preciso ser conduzido pela mão. A morte finalmente encontra o velho papagaio. O cão ainda está lá, truculento e irredutível. O quadro, o mesmo quadro: mesmo passado, mesma eternidade, mesma extinção, ao pé da entrada, à sombra do toldo. (Não é um original, mas uma cópia multiplicada nos depósitos das galerias, e tem sido comprado muitas vezes.) A imagem, sempre a mesma.
Aprendo a lidar com pincéis e tintas, passo a frequentar um curso de pintura, e alguns preconizam que serei um grande artista, embora não saiba ainda lidar com o jardim antigo do quadro que recordo. A morte do papagaio triste. O medo do cão acorrentado.
Trabalho para custear a faculdade, e desenhar passa a segundo plano, o que me entretém eventualmente ou me distrai nas férias. A loja de molduras é vendida, alguém monta ali um escritório de seguros. O cão ainda rosna por seus limites. Eu o vejo, e ele está longe de amedrontar-me: não é mais o personagem de um pesadelo, não da mesma maneira, exceto como variação do mesmo sonho de ser agora. Sua velhice latente, a força diminuída causam pena. Perto da morte, não parece suspeitar dos últimos estágios rumo à metamorfose que culminará com sua desintegração, sua desaparição, mais tarde seu completo esquecimento, e o que me passa: a ausência de significado e propósito que é ter sido ele, ele próprio todo o tempo, sua vida para lugar nenhum. Mas o que é uma outra vida, outro que não seja ele? Eu próprio, minha própria vida marcha para o que seja algum fim diferente, oculta algum sentido maior apenas porque eu o vejo com olhos de ser o que sou? Porque me movimento e me expresso, e ele vive atado a uma corrente, a mesma natureza nos reservará destinos diversos? Tenho alguma justificativa para a condenação dos seres em face da morte e da constante diluição do tempo? Qual a importância de cada vida? Sou um adulto. Meus desenhos já não respondem sequer a um fragmento de tais indagações.
Deixo minha cidade, berço de minhas impressões, a mão envelhecida de minha mãe. Acontece-me encontrar, no cerne dessa nova fase, ao dobrar uma esquina, o quadro do cavaleiro e sua noiva no jardim: o mesmo quadro! O que é ter passado o tempo? Que tempo? O que é esse mesmo quadro? Carente de valores subjetivos, ali está ele, esquecido entre outras tantas reproduções estendidas na calçada. São mais de vinte anos desde que o vi pela primeira vez, sob o toldo encardido. Não há mais a loja. A morte do papagaio já se afasta de mim. O perigoso cão negro certamente não mais respira sobre a Terra. A situação aristocrática que pressupõe o casal do jardim, antes inofensiva, incomoda-me por sua discrepância, sua condição de privilégio, alicerçada, hoje sei, na mesma capacidade de manipulação dos povos, não mais o que eu supunha ser a felicidade despreocupada daquelas tardes. Hoje, tal imagem me atormenta, fere e arrebata, torna-me à íntima necessidade de justiçar e justificar as vidas, hoje me agride como nunca pensei que pudesse. E é apenas o mesmo quadro.
Durante todo o longo dia que é a soma de todos os dias, as pessoas vão sendo substituídas, carregadas e sepultadas, e não nos damos conta, não podemos percebê-lo, e estranho seria se o pudéssemos. Olhamos ao redor e dizemos: “O tempo. O dia.”. E não nos atrevemos a criar outras palavras. Assim, tais imagens foram substituídas, como sempre o faz o vasto mecanismo dos dias. Do cão, nada me resta de medonho ou ameaçador. Recordo suas feições, os dentes amarelados, seu aspecto de mastim tartárico, a cor escura, seus repentes de agressão, mas não me lembro de meu medo. Esqueceu-se o outro que eu era, e sou o mesmo. Nas duas cidades e em cada parte do trajeto, onde trabalho ou estudo, bares e lugares a que pertenço temporariamente, tenho conhecido homens tão nocivos que mal se comparam à ferocidade instintiva do guardião acorrentado. Com esses, é diferente: estão soltos. E rapidamente se alojam no alto das hierarquias, fora do alcance da justiça, em nome de sua desmedida ambição de interesse mundano, seu egoísmo doentio. Ao meu redor e acima de mim, vestidos da mais cotidiana hipocrisia, abrem-se em expressões e rostos tão mais belos que o focinho do animal decrépito. E agora me defronto com outra dimensão de meu medo: o cão (como era pequeno!) guardou-se em minha memória uma criatura velha e impotente, enquanto homens furtivos se movem por toda parte, dizendo-se gente de bem e planejando seus caminhos pelo mundo. Bem-educados, apertam minha mão e sorriem, falam em comunidade e vida. Cristãos e ateus, têm filhos para respeitá-los, uns mais famosos discursam em público, juram pelo povo em seus ternos, outros pela pátria em suas fardas. Pobre cão.
Mas a lembrança do papagaio triste, sentimento só comparável ao bem que se deseja a uma pessoa querida, a quem chamamos pelo nome, ou a um amigo que nos sorri unicamente pelo prazer do encontro, é de uma rara e profunda sinceridade, desde os dias claros da infância, a ladeira com minha mãe, o primeiro caminho de casa. Posso associá-lo ao amor, ainda que ilusório, com que sonhei a namorada perdida. Ao carinho com que pronunciei o nome da imaginada mais distante de meu tímido alcance, ou da mais próxima. Daquelas que possuí ou das que jamais estiveram junto a mim, por força de seus segredos. Não ter dado um nome ao pequeno papagaio, uma simples palavra, e não poder chamá-lo com doçura… Em meu íntimo, ele passeia ainda sobre os engradados de maçãs sua humildade, seu silêncio. Seu segredo.
O mesmo quadro cruza-me a rotina dos dias adultos, dias tão menos fascinantes que os caminhos de um garoto que apenas gosta de desenhar e torna a copiá-lo em seu minúsculo universo de imagens e mistério, buscando o que não sabe, o que certamente jamais saberá: o tempo. Seu, o de todas as vidas, a continuidade do que parece real, a aquarela perdida que é o mesmo quadro.
Rever o que já existe é um trabalho infinito. Imaginei pintar o caminho de pedras, a escola onde minha mãe lecionava, as ruas de terra do bairro distante, o cão da oficina, o papagaio solitário. Mas lembram-me a ladeira, o portão de casa? Reconheço as mãos de minha mãe ou o caminho de volta? Posso recordar com pincéis o que tanto foi meu, o que ainda me incomoda e encanta como aos seis anos de agora? Não há respostas. E isso não são perguntas.
Resta-me a certeza de que não quero pintar. Não há mérito artístico nas poucas telas e carvões que, por algum motivo, ainda guardo – e não espero mais do que ser esquecido por isso. Pareceu-me, nessa ocasião, rever a jovem do filme, desta vez dirigindo-se a mim: “Oh, Pierre… O tempo desmanchou teus lindos desenhos…”. E não a consolo. Nem lhe respondo.
O que hoje se faz maior do que minha obstinada busca não são propriamente as lembranças. Não é o caso de se reviver o medo e a ternura de meu pequeno mundo ou pintar o mesmo quadro outra vez. Mas o que, aos poucos, pressinto e compreendo, o que me adianta o tempo com sua amostra de vinte anos, minha jovem mãe e a ladeira da infância, longamente perdida, tudo o que sempre passa por mim. Ter à frente de meus olhos, à frente de meus dias, o mesmo quadro. E acreditar que o que sou ainda sou eu, e não outro.
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
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Imagem: Vincent van Gogh. A ponte Trinquetaille em Arles. 1888.
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Comentários
Uma resposta para “Cores, sombras: aquarela de passagem”
Adorei reler. Subi contigo a ladeira, onde nossos olhos viram as mesmas coisas e tivemos os mesmos sentimentos.
Ah, as coisas que vimos ontem e nos pareciam tão imensas, tão diversas. São os sonhos que habitam nossa mente e coração de crianças. É triste quando não permanecem as mesmas, embora nos metessem medo. A figura forte, ou a frágil, a preta, a repleta de cores e os tamanhos e importâncias…
Crescemos e eles se tornam desimportantes? Menores? Impossíveis de serem descritos em sua verdadeira forma, por nossas lembranças? Ah! Quantas saudades eu sinto junto das tuas.
Um grande abraço por mais este texto que me toca a alma.
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