Office in a Small City por Edward Hopper

Anabel em seu dia de luz

Concluí apenas que sofremos todos nós um grande sonho enquanto o tempo nos desafia.
Viver inclui tudo o que houve. Tudo o que há. Tudo o que se supõe sendo.

Nenhuma referência ao poema de Poe, além da sonoridade que tanto nos agradava. Fazíamos um casal jovem, éramos ativos e entusiasmados quando escolhemos o nome de nossa filha. Admito que todo pai, inicialmente, vê sua futura filha como uma princesa, uma ninfa ou beldade que o valha, e eu, naquela fase, também me rendia a tais encantadoras influências. Em meus lapsos de maior empolgação, costumava parodiar e corromper uns versos de Neruda quando brincava com minha jovem esposa grávida, dirigindo-me àquela que nos acompanhava de seu ventre: “Anabel, Anabel! De onde saiu teu nome ao sol? Por que a luz tilinteia no teu nome? Por que, pela manhã, teu nome, como um aro, sai soando das ferrarias?”. “Para com isso!”, ela ria. “Deixa Anabel crescer livre das tuas trapalhadas poéticas.”

Minha jovem esposa – mais tarde minha ex-esposa, cujo nome não me sinto no direito de revelar – era bonita e alegre, por isso poucos percebiam um raro dom: ela parecia iluminar ou ofuscar determinados momentos ao expor afirmações que se confirmavam logo em seguida, o que nem ela própria podia explicar. Tratava-se de manifestações provindas de uma região secreta, essencial, algo que não se encontra à nossa disposição nem se revela rotineiramente. E dela partiam, em meio a uma situação qualquer, frases concisas, pronunciadas com naturalidade, como quando ao cumprimentarmos um casal numa festa. “Nossa amiga está sendo traída.” Ou como quando ouviu de alguém sobre a desesperadora crise de endividamento de um parente. “Ele não vai suportar”, declarando quase de imediato, dias antes do suicídio da pessoa em questão.

No primeiro ano de faculdade, um de nossos colegas viu falecer o pai, e contava com a solidariedade dos mais próximos. Na volta do ritual de sepultamento, enquanto nos despedíamos, ela o confortou com um último abraço e, para estranhamento de todos, disse-lhe com carinho: “Ele morreu na hora certa pra você.”. Não se passou muito até que soubéssemos que seu pai mantinha uma doentia relação de rivalidade com ele, que sutilmente o humilhava, por meio de inúmeros procedimentos, inclusive ironizando o fato de financiar-lhe os estudos, julgando-o incompetente para conquistar alguma independência futura, tanto baseado na natureza do curso escolhido por ele quanto em sua capacidade individual – mas nenhum de nós sabia de nada disso ainda.

Muitas vezes eu a observei sem que ela me percebesse. Assistia a inúmeros seus gestos cotidianos sem atinar com qualquer variação significativa. Se, por um momento, considerava o tom suave de sua expressão facial enquanto ela dormia, imaginava também uma atividade invisível por trás de seus olhos, uma profundeza dinâmica que seria uma propriedade sua, mas não sob seu controle. Ela não procurava compreender. Apenas convivia com essa peculiaridade, essa ferramenta de fio aguçado, que era a lâmina benigna de sua extrema intuição. De minha parte, mesmo durante seu sono, como pudesse bater três vezes com a aldrava de uma porta secreta, buscando-lhe o íntimo arcano, delirante e exato, não assimilava a ideia de que, ao menos enquanto dormimos, todos somos iguais.

Por isso, impressionou-me de maneira assustadora que, a alguns dias do nascimento de Anabel, pouco antes de adormecer, ela me dissesse, como entorpecida por alguma droga e com voz quase perdida nos confins do sono que a vencia: “Anabel não vai ser nossa.”.

Anabel foi o nosso centro, o nosso sol, tendo sido embalada por nossa alegria de viver e agitada por minhas declamações improvisadas. Nossos amigos não tinham filhos, e fizeram-se todos padrinhos e madrinhas naturais de Anabel, fora de qualquer tradição social ou religiosa, como rendendo-se aos encantos de uma criança incomum – e não que fosse mais especial do que outra criança de sua idade: apenas chamava a atenção que ela sorrisse muito e chorasse pouco.

Antes que nossa filha de um ano tivesse seus sintomas diagnosticados pelo primeiro médico, lembro-me de que, apenas alguns instantes a que se abrisse a porta para a sala onde aguardávamos, minha esposa disse com surpreendente espontaneidade: “Anabel está muito doente. Não vai sobreviver.”. Enquanto eu, também espontaneamente, reagia irritado, repreendendo-a pelo pessimismo e pela frieza, o médico sugeriu que o acompanhássemos a outra sala, onde nos revelou, tanto quanto lhe facultava sua diplomacia, algo sobre o vírus.

Naquele tempo, a epidemia parecia invencível, e as vítimas confirmadas sucumbiam por falta de qualquer tratamento eficaz. Em meio à onda de choque, nós nos abraçamos como nunca antes, e passamos a viver uma fase de nuvens que o sorriso de Anabel não podia dissipar. Esgotadas as rotinas de exames, testes complementares e tratamentos alternativos que em nada resultaram, optamos por trazê-la conosco em seus últimos dias, conscientes de que só um milagre poderia reverter sua condenação.

Anabel dormia ao lado de nossa cama. Não apresentava sinais de sofrimento, o que quase me fazia desconfiar de que tudo não passava de um engano, e que ela era apenas uma criança saudável como qualquer outra. Mas tudo configurava um pesadelo invisível, do qual não podíamos despertar. Costumávamos, minha esposa e eu, revezar nossa vigília, o que muitas vezes nem se fazia necessário, pois Anabel parecia não reagir, além de movimentos mínimos e instintivos, como quando era amamentada.

Numa dessas noites, abatido pelo cansaço de muitos compromissos que exigiam de mim o trabalho, as responsabilidades rotineiras e a doença de minha filha, adormeci entorpecido por minha própria exaustão e tive um sonho muito intenso, cujos aspectos provinham do que de mais fulgurante se pudesse ver num dia claro. Nele, reconheci Anabel, uma menina crescida, quase uma adolescente, cabelos soltos entre uma fina brisa, sorrindo-me muito tranquila, apenas de pé à minha frente. Parecia haver outras crianças ou jovens por perto, não identificáveis além de meras presenças. Era um dia muito claro e agradável, de uma luz como não se vê. E essa imagem devastadora atravessou-me como com os vidros pode o sol.

Em outras condições, entusiasmado ou aturdido por certos sonhos, eu costumava considerar, dentro de minhas limitações, os elementos com que meu inconsciente forjava imagens e sequências de imagens, criando ansiedades e compensações. Mas dessa vez ocorreu-me que não havia mais do que uma imagem, um retrato, uma única visão. Levantei-me na cama, como interrompido por um pesadelo. Acordei minha esposa, que prontamente se desfez de um sono leve.

“Eu a vi”, disse a ela com a voz trêmula, muito surpreso com o que havia visto e com o que acabava de dizer, impulsivamente e sem me preocupar em ser compreendido. “Acho que ela nos deixou.”

Minha esposa, antes mesmo de abrir os olhos, respondeu com habitual segurança: “Não. Ela ainda está aqui.”.

Levantou-se, seguida por mim, aproximou-se de nossa filha, tocou-lhe o rosto. Anabel ainda respirava.

“Ela ainda está conosco”, disse eu num misto de alívio e de tristeza, confirmando as palavras de minha esposa. E nisso, num desses momentos em que exercia sua misteriosa intuição, ela disse com admirável e terrível certeza: “Ela estava esperando por nós. Para se despedir.”.

Fiquei paralisado. Não queria me mover, como se um mínimo gesto meu pudesse trincar alguma coisa no ar. Por pouco, não reagi com irritação, como fizera algumas vezes antes, ao ouvir de minha esposa o que não me agradava ouvir. Em silêncio e cuidadosamente, passei à frente dela, toquei por minha vez a testa e o peito frágil de Anabel.

“Eu vi você”, disse-lhe bem perto de seu rosto. “Vi que havia outros com você. E que eu não precisava me preocupar. Vi um dia como nunca vi antes. E vi você nesse dia.”

Senti as duas mãos de minha esposa comprimindo meus braços. Toquei de leve a fronte de minha filha e os finos fios de seus cabelos. Rosto ao meu lado, por sobre meu ombro, a voz rouca e sussurrante de minha companheira, alterada por uma controlada emoção, dirigiu-se a ela.

“Anabel… Você pode ir agora.”

Nossa filha inspirou profundamente. Reteve o ar por um infinito instante. Quando o libertou, ela já havia se transformado em brisa. Parecia aliviada, quase feliz. Ficou inerte sob nossas carícias. Depois de mim, minha esposa beijou-lhe o rosto, a testa e os cabelos antes de se abraçar a ela pela última vez.

Os primeiros telefonemas buscaram nossos amigos mais próximos. Depois, procedimentos indispensáveis. Amanhecia, tudo era real. Não houve milagre algum. Nem eu tenho qualquer dom. Pode-se dizer que sofri um sonho. E Anabel fez parte dele. Minha ex-esposa foi parte dele. Eu não sabia nada sobre aquela sua capacidade de dizer o que dizia, como e quando dizia. Apresentavam-se questões burocráticas para as próximas horas, e não sabíamos nada sobre isso. Em meio a tudo, concluí apenas que sofremos todos nós um grande sonho, enquanto o tempo nos desafia. Viver inclui tudo o que houve. Tudo o que há. Tudo o que se supõe sendo. Alguns vizinhos também nos confortaram. Auxiliaram-nos com pequenas e importantes ações entre variados compromissos. Deu-se uma manhã de nuvens, e não sabíamos nada sobre possíveis chuvas.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

Invasão (busca e apreensão) para nosso bem – anterior

Relógios – posterior

Imagem: Sheila Vaughan. Perdida no mar.

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Comentários

Uma resposta para “Anabel em seu dia de luz”

  1. Avatar de Weiner Assis Gonçalves
    Weiner Assis Gonçalves

    Mesmo sabendo que me encontro numa fase, que conscientemente, me diz será hoje o meu último dia? Não sei, só sei que, mesmo em um conto, me emociono diante de cenas em que crianças deixam para sempre o nosso convívio. Não há como evitar em trazer para o nosso cotidiano, esse tipo drama que vivenciamos no dia a dia. Essa é sem dúvida a faceta mais extraordinária de um escrito, atingir o amago de seus leitores. Valeu Perce Polegatto.

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