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Autorretrato 23 (conto)
Um espécime. Uma pessoa viva, de matéria vibrante. Uma mulher.
TRAÇO DEFINIDO
Castro atacava-me sem tréguas com os bispos. Se não debruçávamos nosso silêncio sobre o xadrez, na sala de jogos, caminhávamos ao longo da praia ou bebíamos na cantina ao ar livre da colônia, desfiando nossas conversas sem fim sobre a condição da arte, seus prazeres e maldições. Castro prometeu escrever-me. Sua estada terminava mais cedo. Despediu-se lembrando seu livro predileto, apelidava-me como um dos personagens, parodiando o arrogante irlandês e referindo-se às adolescentes. Afasta-te delas, Stephen. A beleza não está aí.
De seus trinta e dois e seu divórcio, do casamento que conturbara sua carreira de romancista, considerava-me, aos vinte e três, um colega à altura, embora eu absorvesse de seus autores-mestres mais do que podia proporcionar-lhe abrindo portas da pintura, em particular de minha especialidade, o desenho. Quase concordávamos em tudo. Em meio à agitação dos adolescentes, repetíamos que nada era maior ou mais importante do que a arte, nem mesmo nossa vida pessoal, menos ainda o sexo ou o amor. Castro: somos breves e mortais. O sexo é ocioso e momentâneo. O amor nos ilude por certo tempo. O artista deve renunciar ao que pode retê-lo ou desviá-lo de sua verdadeira busca. Eu, que havia me acostumado a prostitutas, tinha também que o sexo não passava de uma distração, quando muito uma necessidade orgânica facilmente saciável. Esse assunto, aliás, somente permeou nosso diálogo por causa da proximidade dos jovens que iam e vinham, garotas e rapazes procurando-se entre pretextos, brincadeiras e irrazoáveis sutilezas que a um tempo os desmascaravam e os afastavam uns dos outros, pois os grupos raro lhes franqueavam a solidão própria aos encontros.
Escadas continuadas em L davam-me o cavalo. O tabuleiro de lajes alternadas, pedra cor de musgo ou branca, sustentava meus passos simétricos. O largo corredor abria-se num T: acesso aos ascensores, à portaria de madeira fosca, outro braço conduzindo ao refeitório e à sala de leitura, que também frequentávamos, Castro e eu. O prédio, um precário labirinto, mostrava-se simples demais para homens como nós, enxadristas, adeptos do intrincado, da sutileza e do desafio. (Castro procurava, em vão, um desfecho para seu conto baseado nos movimentos do xadrez.) Eu vagava sozinho. Os adolescentes passaram por mim, dobraram o corredor do saguão, trajes leves e cores vivas, em sua trajetória de torres em direção ao mar.
AGUADA
O arquipélago de rochas que gradualmente se desgarravam da margem atraíra meus passos e meus esboços. Sentei-me ali para desenhar. Mas meu interesse se dispersava, ante o rumor cadenciado das ondas, num misto de excitação e indolência. Divisando, a distância, as aldeias de pescadores e fragmentos urbanos próximos a elas, eu tinha a forte impressão de que a frequência das ondas impunha um determinado ritmo ao pensamento dos habitantes costeiros, ou a ideia de que o espaço, como o tempo, engendrava o esquecimento, pois o mar, nesse caso, fazia pensar em nada. A brisa oceânica, ao contrário de aliviar-me, parecia soprar mais tédio. Eu havia esgotado meus estudos sobre a água, a irregularidade das rochas e das espumas. O resto da ilha pouco me despertava. Também não queria retomar a figura humana, o que havia dominado e trazido à perfeição entre creions e bicos de pena. Levantei-me e fiquei percorrendo ao acaso essa região limítrofe, de resto um cemitério de astérias e pequenos crustáceos, que não interessava aos banhistas. A areia ainda úmida conservava palavras riscadas a dedo que só a próxima preamar haveria de desfazer, com sua espuma e sua indiferença: Cissa e eu – um coração flechado, letra cuidadosa e lenta. Uns passos, o nome se repetia em maiúsculas, alguma agressividade. CISSA TESUDA! TE COMO!
ESTUDO COM FIGURA FEMININA
Doze, treze? Quinze, talvez? Não intuía a idade dos adolescentes. Famílias com crianças, um casal de meia-idade, três mulheres que andavam rindo por toda parte, como se fossem divorciadas e independentes, todos menos interessantes que os mais jovens, cujos corpos e movimentos tentavam-me ao exercício de apreendê-los no traço.
Passei a observá-los de meu ângulo, avaliando volumes e proporções. Neles, como as crianças têm olhos e orelhas notadamente maiores em relação ao rosto, a altura, como as mãos e os pés, já se encontra definida em corpos magros ou obesos. Rosto imberbe dos rapazes, alguma agilidade característica. Suas semelhantes, de seios em formação, destoavam daquelas que já os tinham acabados e oscilantes. Pelos, penugens. Pequenas nádegas deles, sendo as delas promissoras.
Uma das garotas também me observava. Detive-me em seus olhos, tentei captá-los a distância, ela os desviou. Ao surpreendê-la novamente, séria mas não constrangida, não me alterei, pois considero natural que uma mulher me procure com os olhos. Outras duas também o faziam, não ao mesmo tempo. Sou um tipo discreto, alto e bem proporcionado, rosto de traços precisos, olhos de cor indefinida, e em criança as pessoas confundiam-me com um anjo. Meu rosto foi a primeira razão de identificar-me com a beleza e com a arte, rendendo-me, desde cedo, inúmeros autorretratos movidos não pela vaidade comum mas pela febre ainda embrionária de tentar recriar a perfeição. Assim me recordo haver começado. No início, tudo o que desenhava se parecia com meu próprio rosto.
A desconhecida que me devassava atraiu-me também. Entre suas companheiras, outras não menos cativantes, não se destacava pela beleza. Eu via algo em sua figura e em seus gestos, uma vaga ansiedade. Olhos sonolentos – ou fingia tê-los. Mechas castanhas e loiras de sol ondulavam-se quase em caracóis, numa queda suave de fios muito definidos, à maneira das madonas de Botticelli, porém com mais desprendimento e expansão. Sua aparência subvertia datas que eu suspeitava, idade de certidões, e escondia, como a bruma atenua um rochedo, um sólido. Um espécime. Uma pessoa viva, de matéria vibrante. Uma mulher.
Bela, não menos frívola e superficial que as outras de seu grupo, a figura feminina que me inspirava ia se repetindo quase de maneira incômoda no bloco de rascunhos. Tornara-a meu modelo secreto. Sua imaginada nudez excitava-me não como a um animal masculino, mas como objeto de minha arte, minha busca subitamente revigorada. Tudo o que via nela impulsionava-me ao aprimoramento do traço, ao desafio, dada a dificuldade em captar seus movimentos, por realizar-se. Obra por nascer, que mais por nascer? Silêncio, como do papel em branco.
Como pressentindo sua sombra em meus esboços, essa figura a um tempo reservada e indócil, fugidia e próxima, passou a perscrutar-me furtivamente. Seus amigos, entretidos com os jogos da conquista e da vaidade, nada notavam. Eu a surpreendia quase sempre. Embora me oferecesse, a praia, seu corpo rígido e de certa forma elástico, perfeito a meu propósito, encantavam-me, à sombra dos interiores, as poses mais negligentes: coçando o tornozelo, sentada no braço do sofá ou num balcão, balançando os pés. Concluído o traço que lhe fechava a coxa, voltei-me em sua direção: ela me estranhava outra vez, acomodada e ajustada ao colo de uma amiga.
DETALHE EM CINZA
Céu de nuvens. Volto ao extremo da praia. Subo e desço cansativos degraus de pedra. Leio na areia: Cissa e eu. Cissa não me ataca com o bispo. Cissa prefere o cavalo. Cissa tesuda. Cissa não sabe jogar xadrez. Uma onda rasteira e suave leva tudo, entre espuma e indiferença.
ESTUDO COM FIGURA FEMININA
A manhã muito clara dissipou, como a fina lâmina de espuma, o sonho de areia. A claridade intensa facilitava-me definir os traços de meu modelo. Conhecia cada linha e músculo de seu corpo; até seu andar tornava-se, aos poucos, especial para mim. Ágil mas indolente. Fria mas pulsante. Que fazia essa corça junto ao mar? Copiei sua maneira de ajoelhar-se, de inclinar-se na areia. De soltar e prender os cabelos. De observar os próprios pés, os seios e as nádegas, torcendo-se sobre si mesma. Por mais que me esforçasse em transcrever seu rosto, algo o fazia outro no papel, escapava-me. Faltava-lhe o sorriso, como se nunca sorrisse. Os olhos lânguidos mas aguçados traziam outra adolescência e iniciação: seu rosto tornava-se sempre mais o meu rosto, e tudo se parecia com ele. Voltei-me surpreso, um impulso, vê-la outra vez: o exato momento (alguém a chamava) em que erguia a cabeça, cabelos num rabo de cavalo, lábios semicerrados, como se, no instante seguinte, fosse responder à voz nem masculina nem feminina que a desejava a distância. “Vem para o barco, Cissa! O barco! Vamos velejar!”.
Meu modelo corria para o barco. Minha figura em carne e sol. Minha inspiração rumo ao mar. Vela vermelha perdendo-se dos homens. Meu destino.
CARVÃO
Cissa não me ataca com o bispo. Emerge do mar. Cabelos mais claros seguindo as linhas do pescoço, perdendo-se nas costas. Retoma a faixa de areia em minha direção. Não sorri. O maiô cor de sangue expõe suas virilhas, a cor do abismo, amplia-lhe as coxas e os flancos em movimento, o andar desafiador ignorando uns restos de onda que ainda lhe alcançam os pés e lhe emprestam sandálias de espuma. Uma brisa sopra a voz de Castro, menos metódica, ainda um misto de citação e neblina: se te deitasses, Stephen, com Cissa sob o mesmo sol, talvez pudesses sentir, por um instante de febre, o que te arrebata e te move ao centro da vida.
Cissa prefere o cavalo. Deixa o banho em um vestido leve, sob cujo tecido oscilam seios intocáveis. Cabelos ainda úmidos e não escovados, fios grudando-se na testa e na garganta. Castro na brisa: se brincasses, Stephen, com Cissa nas ondas e te sentasses ao seu lado nas falésias e corresses com ela até onde repousam os barcos, talvez atinasses, num lapso de luz, com o que tanto busca, por toda parte, teu traço.
Cissa não sabe jogar xadrez. Atravessa a porta na penumbra, metade treva, metade lua, aproxima-se. Mais alta em sapatos de noite, vestido negro colado ao corpo, cabelos presos. O que lhe cabe de estrelas divide-se entre o par de olhos e o par de brincos. Se tomasses, Stephen, Cissa pela cintura e a levasses sob a lua dos verões litorâneos, talvez encontrasses, entre um meteoro e um relâmpago, o que ainda obscuramente pressentes por trás de tudo.
BICO DE PENA E DETALHE DE OUTONO
Outra vez a lâmina de espuma. Foram-se os sonhos. Deu-se a manhã. A ausência do sol concentrou os banhistas na colônia. Para agravar meu abatimento e meu tédio, dei pela falta dos adolescentes, uma parte do grupo, Cissa entre eles. Queria crer que não houvessem partido, apenas deixado a ilha atraídos pelo continente, a cidade do outro lado do canal. Tive um dia nublado e solitário. Confuso. Sem ela.
Fui o último a sair do bar. Subi ao quarto, sufocado pelo silêncio que consumira a todos. O ruído de minha chave, ainda pelo lado de fora, perdeu-se, suplantado pelo rumor de passos que cresciam das escadas. Assustei-me, a princípio. Voltei-me à sombra que rapidamente tomou forma sob a luz tênue do corredor. Olhos fixos, como se nunca se houvessem desviado de mim, emergiram da penumbra, tendo perdido, como por encanto, o ar de sono. Castanhos tornados mel pela alquimia da ação solar, cintilavam com curiosidade e calma, surpresos mas vencendo-me também pela surpresa. Cissa e eu. Atacava-me não com o bispo. O cavalo. A corça. Onde estava? De onde vinha? Aproximou-se com mansa imponência, pôs-se à minha frente como a um passo de perguntar-me algo. Responder-me. Tecia-se, ante minha imobilidade, a aura de um surdo desafio, que eu temia não suportar. Nesse ambiente impreciso mas claro, conhecido e estranho, Cissa se destacava por sua estonteante simplicidade. Mal me lembram a tiara e o colar de contas de cortiça, a malha sem ombros, a saia creme, sandálias que tiravam seu peso. Cissa próxima e como se pisasse meus pés, suavemente. Seus olhos imantaram os meus, e eu tive a impressão de que isso durou um dia e uma noite. Podia vê-la não como a uma tela ou uma gravura, na distância correta do observador, mas em detalhes surpreendentemente nítidos, como as sardas flutuando sobre a pele corada, a Cissa verdadeira, consistente e rude, no cerne de uma dimensão real que a arte mal consegue romper com sua precariedade e voo de pterodáctilo, quando por toda parte giram, com graça, as gaivotas. Cissa, irretocável. Rosto menos rígido em que algo se iniciava, algo
voltou-me, como se a tivesse novamente às mãos, a jovem na capa do disco, cabelos longos, fita ao redor da cabeça, minissaia e coxas exuberantes, cintura torcida, pois ia de costas por uma alameda de arbustos, com chão de folhas, e voltava-se, olhava para trás, para mim, voltava-se num tênue sorriso mal iniciado,
como um sorriso tênue, um movimento dos lábios normalmente entreabertos, como se a Cissa faltasse o ar, revelando, por uma fresta, a alvura dos incisivos
o primeiro convite solitário, na alameda onde só podíamos existir nós dois, para que eu a seguisse e me tornasse homem,
alterando-lhe as proporções do rosto e rompendo a fina película da crisálida, com isso dando-me o equilíbrio exato entre
o primeiro corpo de minha adolescência, pés em sandálias baixas, trançadas nos tornozelos, esmagando folhas pardas e amarelas deixadas pelo outono, a primeira viagem de meu sangue, a jovem na capa do disco, minha primeira ereção, junto à deusa dos arbustos e do planeta amarelo, minha primeira mulher.
a menina e a mulher, como se a um tempo, e à última hora da noite, seu sorriso estourasse uma onda e espantasse um pássaro, brilhando na sombra com os sinos que a batizaram e todas as chuvas que a nutriram, o sol que aquecera suas correrias de menina, enquanto suas bonecas, em quartos antigos, surdamente continuavam crescendo, tudo isso assemelhando-se a meu rosto, sendo eu e meu rosto, o desenho que jamais alcançarei realizar. Cissa e eu. Nem o coração arpoado nem a virgem violentada. Um encontro de forças, como um encontro de águas, suave e intenso, no limiar do fascínio. Algo se cristalizou e irrompeu em mim. Um metal se fundiu e dilatou no extremo do que eu era. Pela primeira vez, desde a jovem pisando o outono, reconheci a alameda possuída. Pela primeira vez, desfeita a noite das prostitutas, abracei a deusa que criara o homem. (Se dividisses, Stephen, com Cissa, tua febre e as noites secretas…) Pela primeira vez, vertiginosamente, vi.
RETOQUE FINAL
Quando acordei, Cissa já havia partido. Outros partiram, chegaram. A portaria passou-me às mãos uma carta de Castro. Estava exultante porque havia encontrado a fórmula para redigir “uma série de narrativas tendo por base os sólidos geométricos”. Dobrei-a de volta ao envelope e o enfiei como pude no bolso raso do casaco de moletom. O vento úmido e umas nuvens hostis confinaram os hóspedes nos ruidosos salões de jogos. Corri o fecho do casaco, a proteger-me do vento, mas não cheguei a usar o capuz. Segui pela praia até onde, no limite dessa vasta curva solitária, erguiam-se as rochas. Fiquei passando de uma a outra, escalando pequenas elevações. O nome de Cissa desaparecera da areia onde o haviam confessado. Mas associava-se ainda ao aroma de seus cabelos, aos fios dourados, às pinceladas de Sandro Botticelli, ao sal de sua juventude, ao sangue que me mostraram seus lábios, eu como se beijasse no vento não o centro geométrico: o centro palpitante de seu corpo, a boca secreta de meu próprio rosto. Ao abaixar-me, a carta de Castro escapou-me do bolso sem que me movesse um único impulso para tentar salvá-la. Levada pelo refluxo irregular que assomava aos rochedos, perdeu-se na espuma. A beleza, dizia ele, que ali não estava. A pérola sob uma concha sob um grande sino sob a capa do último abismo, assim são, e aí estão, os segredos. Como aceitando participar de um estranho diálogo, o mar atirou-me aos pés uma minúscula concha, sua amostra do mesmo mistério. Desenhei na areia algo parecido com um rosto. Escrevi: Cissa não sabe jogar xadrez. Prevendo que minha escrita, como meu traço, mesmo fixados no papel, seriam em breve tragados pela fina lâmina.
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
9. A âncora – próximo
7. As cinco estações – anterior
Curta-metragem baseado no conto: Autorretrato 23
Imagem: Michael Alford. Banhistas.
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