Office in a Small City por Edward Hopper

Na cama, depois de tudo

Eu sabia que a história nem sempre gloriosa da arte escrita guardava muitos tipos como eu, cuja aproximação e envolvimento com essa arte sempre fora algo margeando as trevas.

Esforço-me em sucessivas tentativas de descolar uma das muitas tiras de papel sobrepostas ao texto original, este o que eu nunca, nunca alcanço. Ao meu redor, em cima da escrivaninha e mal arrumado entre as estantes, um amontoado de incunábulos, palimpsestos e códices, além de vastos alfarrábios e bem conservados pergaminhos. Não só isso, como também saltérios e antifonários. Herbários, cartapácios, breviários e rolos, nos quais adivinho armazenar-se toda a literatura humana, pois, tal qual se amontoam, amontoa-se o tempo. Pressinto um vulto, uma presença. Alguém teria entrado pela porta, que eu não sabia aberta. Uma figura encapuzada, aparentando pressa, curvando-se ao meu lado para dizer algo, o rosto bem desenhado agora, mostrando-se de frente, lábios e olhos como de uma menina, destacando-se do capuz escuro. “Eu sei por que você está aqui”, ela anuncia com voz ansiosa. “Eu sei como tudo começou. Preciso muito lhe falar.” Volta-se por um instante, como detectando alguma coisa que a surpreendesse, que a intimidasse. Então se afasta, e logo desaparece. Faz-se uma sombra sobre meus ombros: é Glauco Pinheiro que se aproxima, passando-me às mãos um belíssimo exemplar encadernado em couro branco e título gravado a ferro, enquanto diz: “Toma. Tu precisas de uma nova bíblia.”.

Sonho estranho é como sempre dizemos, que todos os sonhos são estranhos, embora seja isso outro lugar-comum. Eu, uma espécie de monge erudito, ou copista de ofício, em um passado mal definido, como fossem a escrita e a leitura a minha entranhada religião, estivessem em todo o meu redor e fossem, afinal, a razão última de eu estar vivo, melhor dizendo, o conhecimento que se pudesse assimilar de tudo aquilo, mais o artesanato caprichoso daqueles pequenos recortes de papel, colados uns sobre os outros, como o fazia Marcel Proust com seus esmerados manuscritos, e ele, Glauco Pinheiro é que era o homem do futuro, com roupas de hoje, apresentando-me a salvação. Estranho ainda é pouco, meu amigo. Arrasador.

Cobertores – eu acabava de escorregar para fora da vagina aconchegante de Mônica. Nossa respiração ia voltando ao que era. Ela foi a primeira a falar.

“Passou o tédio de ontem?”

A cama larga, encostada à parede, comporta justamente dois corpos. Tanto quanto eu, Mônica gosta de trepar sempre que possível. Glauco Pinheiro de Pádua condena, é claro, meu vocabulário quando falo assim, mas como devo dizer? Dormir juntos? Copular? Fazer… amor?!

“Você ri, mas aquele pessoal leva tudo muito a sério.”

“Você é que não se interessa por nada.”

Falei-lhe da adolescente.

“Chegou a conversar com ela?”, Mônica e um arrepiozinho de preocupação.

“Não.”

“Nem vai mais, pelo jeito.”

“Nunca mais, disse o corvo”, pensei em voz alta.

“O quê?”

“Nunca mais.”

Ela me faz um carinho, eu lhe faço outro. Uma maneira simples de lembrar que estamos juntos, mesmo depois dessas nossas noites exaustivas, movidas por desejos precipitados, aparentemente sem controle. Num gesto instintivo e masculino, sendo eu destro, levei a mão ao seio esquerdo dela – às vezes faço isso após um rápido deslizar pela lateral do tronco, desde a cintura, outras vezes apenas diretamente, como um falcão prende uma fruta (sei que tais comparações são gastas e inadequadas, não importa), pegando-o nem suave nem agressivamente, mas com a firmeza necessária para garantir que já não me escapava, que eu já o possuía. Ela não se importa, claro. Depois que me contento, solto-lhe o seio naturalmente, em meio a um último carinho, e volto ao normal.

“Estou preocupada com você. Parece cada dia pior. Nunca pensei que fosse chegar a isso.”

“Quem, eu?”

“Não, eu. De ficar preocupada com você.”

“Estou numa fase difícil, você sabe. Não suporto escrever mais nada que se pareça com o que já fiz. Não quero mais os concursos. E não quero voltar a ser escriturário. Também não quero passar fome, claro.”

“Será?”

Mônica vinha se transformando a cada fim de semana. De certa forma, ela também me preocupava. O pior de tudo era não termos dinheiro, acho. Não tenho certeza. O pior de tudo era o país. O pior era eu. Acho. Fiquei olhando seu rosto inclinado no travesseiro. Gosto de ver sua boca relaxada, entreaberta, mesmo que apareça seu dente quebrado. O nariz reto, mas não aquilino, inspira-me ousadia, determinação, firmeza. Ela não tem nada disso.

“Por que não arranja um emprego?”

“Você já me disse isso antes. Lembra? Você sempre me diz isso.”

Ela já me havia dito aquilo antes. Ela sempre me dizia aquilo.

“Mônica, já lhe disse. Isso tudo é difícil para mim.”

“Tudo bem, vem cá. Dá a mão. Não faz assim. Dá a mão. Estou preocupada com você.”

“Desculpe.”

“Você não sabe o que quer, só isso.”

“E você acha pouco.”

“Não, claro que não.”

“Mas sei o que eu não quero. Meus vinte anos já vão ficando. A vida é curta, principalmente quando não se sabe o quanto vai durar. Preciso me sentir realizado. Não sei por quê. Mas preciso.”

Mesmo conhecendo-me há não muito tempo, ela já sabia que minha relação com a literatura nada tinha que ver com o mundo bem arranjado, pleno de compromissos e eventos, a agenda dos escritores famosos, contratados por editoras, úteis à imprensa e aos meios televisivos. Eu nunca dizia isso a alguém. Nem o dissera a ela, pois era comum entender-se equivocadamente minha posição como um dissimulado sentimento de despeito ou inveja. Eu sabia que a história nem sempre gloriosa da arte escrita guardava muitos tipos como eu, cuja aproximação e envolvimento com essa arte sempre fora algo margeando as trevas. Nenhum de nós, escritores carregados de ideias e em busca de respostas, tenho certeza, desejou alguma vez ser Cassiano C. Castilho.

“Não gosta mais de seus contos?”, ela com alguma sutileza. “Você mesmo os achava bons demais.”

“Não que não sejam bons. Não é bem isso. Não são bons para mim. Eu não os vejo mais com os mesmos olhos.”

“Desistiu dos concursos? Você estava se saindo bem. Ou não quer correr o risco de acabar com outra menção horrorosa, como você diz.”

“Não, não me importo.”

“E a editora?”

“Está difícil, mas não é o mais importante. O Raposo não tem culpa. O país está caindo aos pedaços. Estão todos dando duro para sobreviver, não sobra tempo nem dinheiro para comprar livros e bobagens desse tipo. Só em países desenvolvidos os escritores podem enriquecer publicando bobagens.”

“O que é então?”

“Quero escrever algo novo”, disse eu, sentando-me na cama.

“Não é possível.”

“O importante é tentar. É não ter medo de tentar. O importante não é vencer o desafio, mas, ao menos… ter a coragem de aceitá-lo.”

“Anota essa frase. Aliás, essas frases. Coisas assim entusiasmam os leitores ingênuos. E são os que mais consomem livros, você mesmo me disse isso.”

“Não penso mais neles. O que eu penso agora, Mônica… Sabe… Vou lhe dizer: eu quero fazer da minha vida um texto: um texto magnífico, onde todos possam habitar. Onde você e eu possamos nos encontrar de alguma forma, como somos. Onde você, Mônica… possa continuar vivendo.”

“Jesus! Você está doente.”

“Preciso romper com toda a literatura que aprendi. Com o que pensei, com o que já escrevi, comigo mesmo agora. Não é um projeto. É uma necessidade. Nada disso me serve mais. Tudo desgastado, imprestável, redundante… Eu mesmo, quando não tenho o que dizer em seguida, crio um diálogo rápido, muitas vezes desnecessário, dispensável, avulso.”

“É o que todos fazem.”

“Por isso não aguento mais. Ando cansado de tudo.”

“E de mim?”

“De você, não.”

“Você disse tudo.”

“Tudo bem, não de tudo. Olha, você está neste diálogo para me ajudar, não ganhe tempo com isso.”

“Mesmo, virei diálogo? Oh… Personagem, texto. Que mais? É uma história de amor?”

“Pode rir.”

“Não quero rir. Estou preocupada com você. Nunca pensei que… Certo, tudo bem, eu ia dizer a mesma coisa. Que falta de imaginação.”

“A culpa é minha.”

“Deita aqui, deixa eu aquecer você. Assim… Lembro direitinho de quando nos conhecemos. Já era um atrevido com mulheres. Não sei o que me deu.”

“Eu sei.”

“Aquela gente toda… Os discursos… Os soldados…”

Ela repassou toda a cena. Mais tarde, falarei sobre isso. Se não esquecer.

“Estou decidido a tentar, Mônica. Mesmo! Sério. E você tem que me ajudar nessa, acreditar em mim. Mais vale acreditar e tentar do que jamais aventurar-se ao fracasso. Claro. Claro que sim.”

“Anota essa também.”

A seta de Verena – Guia de leitura

18. Sem rumo, entre rascunhos lamentáveis – sequência

16. A bela e as esferas – anterior

Sobre o livro

Aqui termina a primeira parte do romance A seta de Verena, iniciado com os posts:

1. Guardo-o como quero

2. Meigos pastores, secretos assassinos

… que tratam do personagem em determinada fase da vida, em meio a uma crise de valores.

O flashback, que é praticamente toda a narrativa a partir desse ponto, se apresenta na sequência iniciada por:

3. O fim (e seu avesso)

… na qual um jovem em seus vinte anos busca, como todos, um sentido para sua vida e motivos para realizar-se..

Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. Na cama: o beijo. 1892.

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