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A bela e as esferas
Ela disfarçava conversando com os pais.
A idade da maioria dos acadêmicos confundia-se com a própria história daquela academia. No anfiteatro, foram chamados um a um para ocuparem seus lugares na mesa de cerimônias. Apesar das plaquetinhas com seus nomes, alguns se atrapalharam e tiveram de se levantar e sair à procura de suas próprias cadeiras. Um rapaz muito sério, mais feio do que eu e mais convicto do que Glauco Pinheiro, os anunciava enfaticamente.
“Ilustríssimo… senhor, professor, doutor… Adamastor Salvador Jabor!”
E assim por diante. Os que subiam ao palco encontravam dificuldade em rastrear os respectivos lugares, justamente porque os outros ainda procuravam os seus, obstruindo-lhes o caminho. Dir-se-ia que a movimentação foi intensa e parecia não ter fim. Em meio a tal, todos eles revezavam-se em pigarros, alguns tonitruantes, e rápidas tossidas, algumas devastadoras, como se aquilo fosse uma espécie de coro ensaiado. Glauco Pinheiro ficou irritado com a pergunta. Não era, claro.
“E finalmente”, falou o rapaz com ênfase especial, “o ilustríssimo senhor doutor Romualdo Aparício Vasconcelos Pedroso Brás, que dispensa apresentações.”
Aplausos. Aplausos. Efusivos aplausos. Perguntei a Glauco Pinheiro quem era. Ele nem me ouviu.
De pé e como esculpidos ali, dois soldados trajando uniformes ao costume do Segundo Império, capacetes de penacho pouco pragmáticos, lanças de onde pendiam fitas de cores sóbrias, postavam-se nas extremidades do palco, à guisa de zelar pelo andamento ordenado das cerimônias. Via-se, pela cara enfadada deles, que moravam longe, alguma periferia fora do alcance dos membros daquela casa, e que deviam estar rezando para que aquilo tudo terminasse antes do último trem. Eu previa que logo ressonariam pelos tímpanos o arquiconhecido Hino Nacional, mas infelizmente eles executaram também o hino da cidade. Houve uma profusão de panegíricos, alguns inflamados. Palavras tais como louros, chama da cultura, ideal, belas-letras, luz e trevas rechearam os discursos, que também pareciam não ter fim. Todos falavam muito em luz, luzes.
Não sei como, naquele momento, voltou-me à lembrança um colega de escola, Absalão, que era poeta. Eu me doía de pena dele – era bexiguento e repugnante, tinha um nariz feio, os cabelos feios, a voz feia, e as garotas troçavam dele às escondidas. Não obstante, seu coração era puro, de índole receptiva e dócil. Absalão, que eu, maldosa e secretamente, definia como um Schiller desdobrado em Quasímodo, cujo único consolo era ostentar um nome bíblico, acostumara-se à sua condição de réprobo sem futuro e esquivava-se dos demais nos intervalos, indo isolar-se a um canto do pátio, onde passava ruminando as incoerências da vida, as injustiças de Deus e os mecanismos do mundo. Onde mais tarde descobriu a obra dos grandes poetas e despertou para o que se tornaria seu ideal, sua verdadeira vocação: escrever versos. Eu me doía de pena. Vendo a mesa com os acadêmicos, cuidei que Absalão merecia estar ali, entre eles, e de alguma forma sentir-se reconhecido. Via também que muitos deles pareciam ser admiravelmente puros e de bom coração, o que me comoveu sobremaneira e os tornou mais humanos a meu ver. Pois sempre há pessoas mais limitadas do que nós, e isso já nos faz sentir melhores e mais seguros de nossa capacidade – assim como existem também pessoas bem mais perspicazes ou mais intuitivas do que nós, agora nos fazendo lembrar que não somos muito diferentes daqueles a quem julgávamos, um minuto atrás.
Houve mais discursos no coquetel. O primeiro comparava os acadêmicos a candelabros que mantinham acesa a chama da cultura. Outro se dirigia a um desses senhores em especial, cujo aniversário se fazia próximo, e que o orador descreveu “qual um candelabro de raro fulgor”. Como não podia deixar de ser, a homenagem, que parecia não ter fim, fora redigida em versos, e a certa altura atestava:
“… como se a um canto de tua secretária
e assomassem todas as solidões dos sertões
de onde, oriundo, trouxeste um universo
de relógios e relâmpagos!”
O homenageado teve um acesso de tosse. De minha parte, não podia compreender que o último verso associasse relógios a relâmpagos, ou não associasse, ou que estivessem ali tais palavras só por força de aliterações oportunas ou inoportunas, enfim, não compreendia absolutamente o sentido daqueles versos ou, sinceramente, de quaisquer outros. Glauco Pinheiro corrigiu-me em seguida, lembrando que não eram versos, pois não rimavam, o que, para os acadêmicos, era praxe em solenidades.
“Ah, sim”, disse eu, como se há muito soubesse disso.
Em suma, havia um código a ser seguido nessas esferas, como dizia Glauco Pinheiro. Esferas. Eu me divertia com essa palavra. Imaginava, por exemplo, alguns daqueles poetas empolados flutuando dentro de bolhas, no ar noturno, ou escorregando de barriga e braços abertos pela superfície muito lisa de uma grande esfera de vidro ao redor da Terra, a que sustenta a Lua e onde mora o diabo, segundo o apóstolo Paulo, uma das dez esferas concêntricas que separam os planetas, de acordo também com outros sábios imortais da Antiguidade.
O último orador acrescentou, ao fim de sua leitura, que este seu mesmo discurso (inclusive o trecho que eu supunha um poema) se encontrava à venda, ao término da solenidade, por apenas 25 cruzados – sem dúvida, uma pechincha. Porém, isso sim pareceu constranger boa parte dos presentes. Outrossim, o ilustre senhor lembrou que a estante com seus livros ficava à direita da antessala, no espaço após o grande vaso com antúrios, próximo à escadaria principal, e eu torcia para que alguém levantasse a mão e lhe pedisse um mapa.
Ouvindo outros mais discursos, ocorreu-me uma sensação incômoda e um arrepio só em pensar na profusão de eventos que já teriam presenciado aquelas paredes, aqueles lustres e aquelas amplas janelas. A brisa que entrava por entre as leves cortinas revelava alternadamente fragmentos da noite e da cidade iluminada. Fechei os olhos por um momento e quase acreditei estar presenciando a invasão de uma horda implacável de artistas de vanguarda, isso em meio às solenidades, os rebeldes carregando nos braços os acadêmicos para arremessá-los das largas janelas, dir-se-ia uma grande defenestração de imortais. Abri os olhos outra vez e tive vergonha de meus pensamentos, involuntários mas perniciosos, que a brisa, tal qual os trouxera, levava agora de mim.
Foi então que, abrindo os olhos, voltando dessa experiência mística, esse meu rápido e estúpido transe, me aconteceu perceber o interesse de uma jovem púbere, de agradável semblante, que a mim observava discretamente de sua mesa, relativamente próxima. Estava com os pais – veja-se se isto são lugares para se levar uma garota dessas em uma noite de sexta-feira! Uma ninfeta de pelo menos treze anos, que o inverno fizera calçar botinhas e estreitar-se em malhas justas, reveladoras de formas em transição. Magrinha, delicada, cabelos lisos que um enfeite discreto desviava para o ombro esquerdo, seu pescoço parcialmente emoldurado pelo capuz do casaco, que lhe caía dos ombros às costas, como formando uma ligeira corcunda. Uma graça. Um doce. Um pecado. Ouvi muito confusamente, entre outros desencontrados ruídos, que a chamavam de Larissa ou Belissa, não tinha certeza. E diante disso, quero dizer, por causa dela, alterava-se substancialmente para mim o rumo das cerimônias. De quando em quando, tornava a procurá-la com os olhos, despindo-a em meio aos panegíricos, entre indivíduos que me obstruíam a visão. Claro que eu me deliciei com ela o resto do tempo. Nem pensava mais no acadêmico charmoso que conhecera há pouco. Tenho um fraco por mulheres bonitas, mas por quê? Por quê?
O último discurso já não era sem tempo, encontrou-nos a todos enfarados e também mencionava luzes e candelabros. Então, foi à frente uma professora, convidada de honra dos acadêmicos. Ela se pôs a declamar um poema de sua autoria e fê-lo auxiliada por gestos quase cadenciados, que abriam e fechavam um círculo no ar. O garçom, que não se incomodava com poesia, demorou-se a organizar uns copos na primeira mesa, bem à frente da entusiasmada oradora, de tal forma que a ocultava parcialmente, e o que se podia ver, de quase todos os ângulos, além dos braços descrevendo círculos, era, fatalmente, o bárbaro garçom. Ela não se deixou abalar em sua eloquência. Seu longo poema contava toda a comovente história de um humilde capiau que aspirava a tornar-se professor, e todos os versos, de métrica idêntica e precisa, terminavam com verbos de primeira conjugação no infinitivo, o que nos dava sempre um som de aar, que ela tão bem interpretava num dialeto caipira. E foi muito aplaudida.
Finalmente descontraímos, se é que se pode dizer assim. Música ambiente: orquestração popular, mutilação de obras-primas, pseudoclássicos suaves, insípidos – dessa eu não gostava. Tornei a buscar com os olhos aquela coisinha apaixonante, a duas mesas de mim. Ela disfarçava, conversando com os pais, e só me olhava de volta quando eu disfarçava, conversando com Glauco Pinheiro.
Na mesa mais próxima, um acadêmico e seus convidados contavam casos pitorescos de suas fazendas, sítios, chácaras e outras mais propriedades, acreditem os que quiserem.
“E lá estava o pato…”
“Pata”, corrigia sua senhora.
“Pata. E lá estava a pata, ciscando seus cisquinhos…”
“Ciscando cisquinhos?”, a mesma senhora, sua esposa.
“Cisquinhos.”
“Bichinhos”, a mesma, a companheira de jornada. “Ciscando seus bichinhos…”
“Bichinhos. E lá estava a pata, ciscando seus bichinhos…”
Assim transcorria esse especialíssimo evento, entre inúmeras mesas nas quais se trocavam experiências de vida, narrativas, elogios, cumprimentos, verdades e mentirinhas, ficções enfim. Outros muitos, ao redor, falando ao mesmo tempo, prejudicavam a narrativa sobre o pato. Pata.
A jovem corça procurava-me outra vez, mas que excitante! Passava-me até a impressão de que seus olhinhos cintilavam, de longe. Eu esperava ansiosamente que alguém, naquela mesa, pronunciasse outra vez o seu nome, que eu já imaginava próximo de Clarissa, Marisa ou Felícia, e para me referir à sua imagem em sonhos eu precisava escolher um deles, saber um deles, pois não conseguimos pensar sem palavras e muito menos queremos uma mulher sem nome como inspiração secreta. Deixei de fingir e sorri para ela, como se pudesse dizer-lhe, com os olhos: veja, minha querida, olhe só onde viemos parar, em meio a glabros e candelabros, frequentando essas esferas… Ela parecia receptiva e já esboçava um disfarçado sorriso em resposta, mas Glauco Pinheiro inclinou-se à minha frente.
“Está vendo aquele senhor que… Mas o que é que você tanto olha afinal? Não ouve o que eu digo? Estou lhe mostrando o presidente da Casa dos Escritores. Não. Do outro lado. O calvo. Não: o mais reluzente.”
“Qual um candelabro…”
“Pois aquele mesmo. O mais forte candidato a vestir o fardão em uma próxima oportunidade, dizem as boas línguas de nossas esferas. É bom ficar inteirado dessas coisas, porque afinal, conforme vamos conhecendo os…”
Nossas esferas. Ele me incluía nisso, por sua conta e risco. Eu não pertencia, nem em sonho nem em pesadelo, a um grupo daqueles, e jamais haveria pertencer, a menos que adoecesse – mentalmente, digo. Não havia nada para mim ali. E não estranharia que alguns daqueles ainda acreditassem mesmo nas esferas celestes, como ensinado por Paulo de Tarso, com o aval tardio do poeta Dante. Eu não queria saber de esfera porcaria nenhuma.
“O primo dele é casado com a irmã do primeiro-tesoureiro…”
Eu me voltava para um lado e outro, discretamente, enquanto Glauco Pinheiro tagarelava sobre mil coisas concernentes a todos aqueles obstinados escrevinhadores, e vi que uma senhora contava boas novas sobre uma parenta aos convivas de sua mesa.
“Ela agora comprou uma televisão a cores.”
“Em cores!”, fez o marido, irritado com ela. “Televisor. Comprou um televisor. Em cores!”
Ele não parecia estar irritado naquele momento, propriamente. Parecia irritado o tempo todo. Com ela.
Na mesa ao lado, as esposas eram as mais caladas, porque seus cônjuges, homens de olhos vívidos, ansiosos por se manifestar, repetiam versos de Bilac e de Castro Alves, alternadamente, antes de passarem a falar sobre um certo tipo de macarrão.
Conforme o vinho enchia os copos e conforme os convivas os esvaziavam, aqui e ali, simulacros de incipientes declamações, tensas ou delicadas, abundavam.
Atrás de mim (tive de me virar para ver, bem disfarçadamente, porque eu queria mesmo ver), um homem magro e pálido, rosto retangular, mais vertical do que horizontal (o rosto, entenda-se), num terno verde-escuro, dizia alguma coisa em latim, eu não fazia ideia do que era, autor ou texto, como também não fazia ideia dos motivos dele para escolher ficar desfiando aquilo tudo, sempre acompanhado pelo tom de solenidade quase austera que essa língua morta parece misteriosamente inspirar. Pela cara de todos os que o ouviam, pequenos sorrisos desenhados nas bocas fechadas, taças e copos girando entre os dedos, ficava claro para mim que ninguém ali estava entendendo uma única palavra. Nem eu, vale lembrar.
Em outra mesa, um imortal, vítima talvez de uma disfunção digestiva, teve de sair amparado pelos familiares, todos ali se perguntando, preocupados, o que teria havido com ele. Aproveitei a confusão do incidente para seduzir a garotinha do capuz outra vez. Mas seus pais estavam de saída, e logo eu a perdi de vista. “Vamos, já está na hora, Melissa”, pensei ter ouvido, enquanto eles se levantavam. Mas não com a clareza necessária para que eu pudesse me certificar de seu nome. A partir de então, o tédio apoderou-se de mim. Jurei, em silêncio, nunca mais aceitar um convite de Glauco Pinheiro de Pádua para o que quer que fosse. Além disso, minha conhecida enxaqueca vinha voltando.
“Nunca mais”, pensei em voz alta.
“O quê?”
“Nunca mais, disse o corvo. Nunca mais.”
A seta de Verena – Guia de leitura
17. Na cama, depois de tudo – sequência
15. Perdemos o fim da missa – anterior
Imagem: John Singer Sargent. Carmela Bertagna. 1879.
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