Office in a Small City por Edward Hopper

“Pois eu faço questão!”

Por essa época, nada me parecia suficiente.
Mas eu pressentia estar me aproximando de alguma nova efervescência de meus valores.

Dois capítulos sobre isso é mais do que o gosto do leitor médio pode suportar, eu sei. Foi mesmo uma recaída. Arcádio Raposo vai querer cortar tudo. Ora, não. Talvez não. “Somos uma editora.” É o que ele diz.

Apesar de meus não ainda trinta anos, tenho a vista muito ruim, e custa-me ficar mais de duas horas à luz artificial da luminária. Mas fico. Tento compreender-me. Tento resgatar-me. Isso tem um preço. Não é possível saber ainda quanto vai custar no futuro. Talvez minha vida pessoal prejudicada para sempre. Talvez algo menos trágico. Talvez apenas meus olhos.

Por essa época, nada me parecia suficiente. Mas eu pressentia estar me aproximando de alguma nova efervescência de meus valores. Revia meus arquivos, meus livros. Era preciso conciliar os ensaios de Bertrand Russell ou os de Espinoza com ninharias incômodas, mas verdadeiras. Dostoiévski discorria sobre dores de dentes e sobre outras dores que também agradavam ao Beckett prosador, o que, no fundo, era um desejo de alcançar alguma unidade contra a dispersão que provocava sempre mais o acúmulo de filosofias e falaciosos teoremas; e também não me fazia estranhar que aquele Emil Sinclair, de Hesse, buscasse um deus que fosse a um tempo o dia e a noite, que servisse ao mundo dos carvoeiros e ao dos estudantes, que pudesse atuar tanto nos subsolos esquecidos quanto nos palacetes de cristal. Não encontrou, claro. Ou fingia, a si mesmo, ter encontrado. No meu caso, por esses dias, tratava-se de um objetivo, embora, a bem da verdade, eu me sentisse vagamente feliz por estar me perdendo de qualquer objetivo. Estaria eu perdendo também a razão? Não. Eu sabia que não devia ter tanta sorte.

Muito bem. Outro dia. Eu estava rascunhando o que seria o primeiro texto de uma nova fase, avesso a mim mesmo e às convenções, quando… bateram à porta.

“Você está aí?”

Uma voz de velho, falando rápido. Abri, espantei-me ao vê-lo, não esperava que viesse na sexta-feira à noite.

“Então, esqueceu?”

“Esqueci. Mas do quê?”

Glauco Pinheiro é mais alto que eu, mais magro. Estendeu-me a mão, como sempre, depois de entrar. Não sabe que evito apertar a mão dos outros e faz questão de cumprimentar-me. Não gosto de apertar sua mão ossuda, porque me lembra um esqueleto, e um esqueleto lembra todos sabem o quê.

“Eu lhe disse que passaria por aqui antes das oito. Estou com os convites. Esqueceu?”

“Ahn… Esqueci.”

Glauco Pinheiro torceu o rosto no que seria um sorriso oblíquo, aparentando dolorosa surpresa.

“Vou deixar aqui estes poemas, mas não vá lê-los agora, certo? Depois trocaremos ideias a respeito. Então, os convites…”

“Que convites?”

“Santo Deus, que memória! Como pode querer ser escritor com uma memória assim? Para a grande noite! O aniversário da Academia!”

“Oh…” Eu havia me esquecido. Mesmo.

“O coquetel de aniversário!”

“Não diga. E quando é?”

“Hoje, homem de Deus!”, bradou ele com os braços erguidos e como paralisando todo o trânsito.

“Ah, sim! Claro. Sim. O octogentésimo aniversário…”

“Octogésimo”, corrigiu.

“Foi o que pensei.”

“Se oitocentos, octingentésimo”, acrescentou felicíssimo, e isso pareceu acalmá-lo um pouco.

Glauco Pinheiro é abundante em detalhes assim. Sabe tudo o que ninguém sabe direito, mas que também não é preciso saber, essa sequência dos ordinais, como visto, o rol de todos os presidentes da República, os afluentes do rio Amazonas, a letra do Hino Nacional…

“Você não tinha um compromisso para hoje?”

“Sua memória não está de todo má. Adiei para segunda. É o mínimo que posso fazer para prestigiar um evento cultural de tal naipe: esse sacrifício pífio.”

“Deus o guarde.”

Suspirei de verdade, sem nenhuma hipocrisia, pois tenho horror a eventos, solenidades, homenagens, discursos, tanto mais quando repenso que nunca conheci, pessoalmente, alguém que merecesse qualquer tipo de homenagem. Aliás, eu viveria perfeitamente bem em um mundo onde nada disso existisse. Sem nenhuma dúvida, viveria muito bem em um mundo sem parques temáticos, sem exposições de animais, rodeios, entrevistas com cantores, sem os 99,9% dos filmes em cartaz, dos livros que formam pirâmides nas lojas e dos discos que tocam por toda parte.

“Vá logo se vestir, vamos! Ou chegaremos atrasados para a missa.”

“Mis… sa?”

“Esqueceu?”

“Esqueci.”

“Eu lhe disse que viria mais cedo a fim de não perdermos a missa que abre as solenidades. Além disso…”

Do resto, eu me lembrava. Ele repetiu tudo, mas não ousei interrompê-lo, justamente para ganhar mais tempo – não suporto missas. Aproveitei para observá-lo, que é como sempre fazemos enquanto alguém discursa sobre algo que já ouvimos antes. Talvez, por isso, seja tão fácil observar tanto a tantos.

“Escute, a ocasião será a rigor, portanto trate de encontrar roupas adequadas, já que você não dispõe de um único terno.”

Tenho horror a homenagens, é bom que se repita. Não sei o que pensam esses homens. Aqueles que imagino verdadeiros merecedores de algum ato de admiração ou respeito são precisamente os que não dariam a menor atenção a isso, penso agora no Mahatma Gandhi, no Dalai Lama, em Leonardo da Vinci, basta continuar e me voltarão alguns outros, mas no momento não sinto vontade de enumerá-los nem de explicar nada.

“Não tem importância. Basta que eu não vá.”

“Imagine! Perder uma oportunidade destas!”

“E eles, suponho, sem nenhum constrangimento, vão estar nos seus fardões, não é? Aquelas roupas pomposas e engraçadas que…”

Glauco Pinheiro, com certa preocupação: “Como? O que há de engraçado?”

“Digo, aqueles trajes com que eles são sepultados antes de passarem à eternidade, sabe?”

“Olhe, veja lá, lembre-se de que tudo, mas tudo, neste mundo tem limites, hein? Não vá dizer uma coisa dessas lá, perto dos mestres e dos lentes da língua culta, ai, pelo amor de Deus!”

“Combinado”, eu disse.

Talvez eu não houvesse sido muito convincente, tanto que o silêncio dele durou pouco.

“E não só isso”, ele prosseguiu. “Não é só isso, claro. Nem nada parecido com isso. Dostoiévski e aquele seu Beckett, nem os mencione, ouviu? Ai, Pai do Céu…”

“Glauco, olhe… Se não se importa… Não faço mesmo questão de ir à missa.”

“O quê? Mais esta agora? Homem, homem! Mas como, o que é isso? Sempre fugindo e fugindo. Sempre se afastando de Deus. Pois eu faço questão. Quero ainda vê-lo enternecido e contrito à luz de uma prece reveladora. Então haverá de se lembrar de tudo o que tanto lhe tenho dito.”

“Está bem”, eu disse, para que ele se acalmasse.

Não adiantou.

“Mas, pelo visto, falta muito ainda. Você não prima pela sensibilidade que é natural nos corações sublimes. Talvez tenha de amadurecer um tanto mais para enxergar a essência da verdade. Porque isto, meu amigo, como você deve saber, é uma questão de amadurecimento.”

Certo dia, ele me disse que Deus era a causa primeira (de todas as coisas, entenda-se). Muito bem. Num outro dia, distraído, ele me disse que Deus era a causa última. Sim, eu me lembro claramente. E assim vamos, de confusão em confusão, entre uma afirmativa e outra, gastando tempo, energia e paciência.

“Glauco, francamente. Você é um poeta. Não me diga que anda rabiscando sermões.”

“Pois não me envergonharia disso”, ele afirmou corajosamente, vermelho de vergonha.

Pensei em algo que dizer-lhe, ele parecia estar perdendo a cor, eu não entendia por quê.

“Muitos já escreveram coisas assim”, falei, com grande senso de fraternidade. “Acha que é preciso repeti-los? Não era o velho Salomão quem dizia não haver nada de novo sobre a Terra?”

“Sim, era. Uma grande verdade. Agora sim, você está se reportando a um sábio!”

“Mas hoje, como você vê, não é bem assim.”

“Como? Como não é assim? O que há de novo sobre a Terra? Vamos, admita…”

“A informática.”

“O quê?”

“O laser. A fissão nuclear.”

“Ora, é só uma questão de… Não se trata disso.”

“A clonagem. A aids…”

“Ora, não se trata disso, não se trata de nada disso. Você se aproveita das palavras, porque, no fundo… Os átomos e os vírus sempre estiveram… Será que não pode admitir uma simples… A palavra de um sábio! Um homem de Deus! Você nem imagina o que tenha sido um homem assim, eis o que lhe falta. Nem imagina! Nem faz ideia! Não pode sequer…”

“Não grite. Por favor, não grite.”

“Você apenas se aproveita das palavras, eis o seu limite, eis o seu entrave”, disse ele, gritando um pouco menos, não porque me respeitasse, mas porque não queria parecer vencido. Nem eu pretendia vencê-lo ou coisa do gênero, apenas não podia concordar com todas aquelas ideias estranhas que ele tão ferrenhamente cultivava.

“Ora, e você, o que faz? Pois não se define poeta? No fundo de toda a sua crença, admita, você também desconfia que palavras como espírito, alma, tanto quanto anjo, duende e demônio pertencem não ao mundo da verdade, mas ao mundo das metáforas. Ao mundo do folclore. Da poesia.”

Nesse ponto, como eu já previa, ele apresentou um tipo de sorriso que só ele sabe fazer, algo entre uma expressão de sarcasmo, de dúvida e quase derivando ao aspecto agressivo de algum carnívoro silvestre.

“Ora, vejam só aonde já chegou. Outra grande bobagem digna de seu amadorismo dialético. Nem imagina! Não faz ideia do que acaba de…”

“Por amor de seu deus, não grite. Não grite. Por que gritar? O que isso mudará?”

E outra vez, os ânimos. Mais de sua parte, certo, era eu quem o provocava dessa vez. Sempre que chegamos a esse ponto, a celeuma parece não ter fim. Ele sustenta que preciso reler as Sagradas Escrituras com mais atenção, mas um ateu que certa vez conheci aconselhava-me justamente o mesmo. Acusa-me de não ser humilde perante poderes que desconheço ou nego, mas não escondo dele o que penso, que a humildade dos cristãos, descontando-se o medo que a alimenta, por pressupor confortos, reconhecimento e compensações individuais, é a mais execrável das vaidades. Nessa altura, surgiu em meus miolos uma ideia confusa mas muito interessante. Tive vontade de passá-la à ponta da língua de qualquer maneira, mas subitamente fui vencido por uma enorme preguiça de me explicar. Eu poderia simplesmente mudar de assunto, mas achei que seria melhor irritá-lo um pouco, para que se distraísse, atrasando-nos ainda mais – e como já falávamos em religião, observe-se que nenhum outro assunto se presta melhor a perder tempo, atrasar e distrair. Enumerei contradições dos textos evangélicos e grandes ironias reveladoras que os fiéis naturalmente se recusam a aceitar. Antes de mencionar evidências cotidianas, gosto de citar o Evangelho, pois Glauco Pinheiro considera A Bíblia o livro sagrado. Em meio a outras convicções, ele crê que ler as Escrituras equivalha a sentir as vibrações de Deus, assim como quando medita ou frequenta as cerimônias pode, à sua maneira, conversar com Jesus. Sugere que eu ao menos experimente, mas eu, com esta minha má vontade, esta minha conhecida indolência… Mal me animo a sair para um cinema, que dirá para me entediar dentro de uma sinagoga contemporânea. Também não sinto grande vontade de conversar com este ou com aquele. E Jesus morreu há tanto tempo…

A seta de Verena – Guia de leitura

15. Perdemos o fim da missa – sequência

13. Retrato de meu hábitat quando jovem – anterior

Sobre o livro

Imagem: Helen Frankenthaler. Passagem no deserto. 1976.

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