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O Arcádio do Conselho Editorial
A recepcionista da editora me pôs a esperar. Ela tem poucos afazeres, mas finge estar sempre ocupada. Quando o contínuo chegou, deu-lhe ordens, criticou-o, pediu que lhe contasse o que um certo fulano havia achado da proposta dos fotolitos de base, coisa no que eu, por sinal, jamais ouvira falar. O garoto respondeu em voz baixa, inseguro.
“Ah, mas ele tem cada uma!”, lamentou-se essa moça com felicidade.
Ela se sente bem, provavelmente reprime êxtases, humilhando garotos assim, esbanjando termos específicos da profissão, ou falando, com sóbria naturalidade, de alguém que os outros não conhecem, como se fosse íntima do cujo. Costuma referir-se a algum jornalista ou escritor famoso como se todo dia eles lhe telefonassem. Isso sempre impressiona aqueles que a veem pela primeira vez, o que não é o meu caso. Já assisti a diversas crises de felicidade dela.
“Deixa ele comigo, ele vai ver só.”
Não sei o que seria dela sem um emprego desses. Tem verdadeiro prazer em trabalhar. E dizem que sou paranoico.
“Ah, mas ele vai ver só…”
Antes de ir até lá, eu havia telefonado para confirmar a entrevista. Ela me deixara esperando por um tempo razoavelmente longo, pois fora o bastante para despertar-me o tédio, enquanto a gravação no aparelho entoava: “Há um mundo bem melhor, todo feito pra você…”, aquela incrível canção com a qual tentam nos motivar desde as trevas da infância.
Finalmente eu estava ali, prestes a conversar mais uma vez com o único editor que aceitava ver-me. E ouvir-me, quando muito.
Enquanto esperava, fiquei tirando meleca do nariz e olhando a estante com os livrecos publicados por eles. O meu não estava lá. Refleti sobre a perenidade das brochuras ordinárias e o esquecimento que desde o início pesava sobre cada título. Balzac cruelmente constatava que a sociedade acaba por rejeitar os talentos incompletos, tanto quanto na natureza os seres mais fracos ou malformados acabam eliminados. E não importa o sucesso imediato. Esse animal-livro acaba sucumbindo, acaba morrendo assim mesmo, naturalmente. A posteridade só aceitaria os bons trabalhos. Ou não, ainda é pouco. A posteridade só aceita o que seja genial. Parece justo. Na literatura, em muitos casos, o autor e sua obra são como um grande peixe submerso: quando morre, seu corpo vem à tona, de coração para cima. Quanto a mim, não creio na eternidade da obra literária, embora alguns autores permaneçam. O mundo muda demais. Também não me interessa vencer o tempo quando eu próprio não estiver mais aqui. O que me interessa então? Sei tanto quanto todos que o romance não pode mais contar histórias, pois já foram inventados o cinema, a televisão, os desenhos animados. Que é tarefa dos cientistas responder, e já o vêm fazendo com respeitável sucesso, à questão de onde viemos. Que cabe aos peritos em história, política e economia o para onde vamos. E os psicanalistas quase nos revelam em definitivo quem somos – só não o fazem porque talvez não resistíssemos pacificamente a um novo golpe em menos de duzentos anos. Eu imaginava isso tudo e também uma legião de autores cultivando subtítulos elaborados, esmero vocabular e incríveis exercícios de paciência, tudo dirigido a uma bancada de juízes imaginários, sem contar o compromisso de manterem-se coesos ante seus discípulos, admiradores e seguidores, como também frente ao juízo das gerações futuras, eis o que finalmente me provocava náuseas. Não existe o romance perfeito, e não serei eu o primeiro idiota a tentar escrevê-lo. Também não há no mundo livros que se devam ler, ensinou-nos Lin Yutang, escritor chinês – contemporâneo, vale acrescentar, pois sempre que se fala em escritores e poetas chineses, corremos logo aos antigos. Há livros que precisamos ler em certo momento e em certo lugar, dentro de tais e tais circunstâncias e em determinado período de nossas vidas.
Uma das divisões da estante ostentava coleções de bolso tratando de filosofia e filósofos, e eu pensava: todos são inteligentes. Todos estão certos. Se divergem entre si, com qual deles devo ficar? Se concordam, basta que se leia um. Também não espero, pelos mesmos motivos, que alguém se atenha a essa minha precária opinião. É algo que se parece com a noção dos livros sagrados, pois o fato de haver diversos livros sagrados contradiz a premissa de que um deles seja O Livro Sagrado. Ora, rapaz, mas sem dúvida. Com que então, tu acabas de inventar a roda, vejam só. Eu, muitas vezes, acreditei que a filosofia pudesse tornar-me mais livre, mas sempre houve poucos, raros filósofos, como tão bem se sabe, que foram livres, Nietzsche o confirme. Não me sinto vulnerável a certas armadilhas da vaidade, por exemplo, aquela esperança doentia que incute nos artistas uma fé quase religiosa na glorificação e reconhecimento póstumos de seus trabalhos. De que me serviria isso? Aos demais, aos que pretendem ser requisitados em vida, de que serve arrebentar as veias do cérebro no afã de superarem-se uns aos outros, uma fúria de espermatozoides, com a ilusão das vanguardas? – palavra esta, por sinal, primeiramente empregada pelos militares. À parte isso, a fama é a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa inteligente. Inteligente, não é? Bem, bem. Lembrei-me de Verena e me senti meio idiota. Que estava eu fazendo ali, naquela editora? Sabia que o fracasso e o sucesso eram critérios de mercado e nada tinham que ver com o resultado da arte. Assim, o que de fato me interessava? Não conseguia deixar de pensar em literatura, desde quando me envolvera com essa arte, o que inicialmente me havia feito muito feliz, antes de me fazer muito infeliz. Mas queria, sim, era encontrar-me, encontrar respostas que pelo menos a mim bastassem, alcançar alguma plenitude mesmo não sendo um poeta de gênio ou um escritor de talento. Sei que Verena zombaria de mim por isso, daqui mesmo ouço sua risada desconcertante. Ela costumava dizer que a felicidade está sempre ao alcance das mãos, nós é que somos uns incorrigíveis míopes. A falta que às vezes sinto de Verena cresce quando penso que jamais vou vê-la novamente.
“Pode entrar”, falou a infeliz.
Acho que agradeci, por vício. Isso basta para que ela se sinta sempre superior, esses hábitos milenares que lhe dão novas chances de exercitar sua falsa modéstia.
“Não por isso.”
Certo, certo, dona chata. Já estou entrando, adeus.
Plaqueta:
ARCÁDIO RAPOSO
Conselho Editorial
Uma ova. É o editor-chefe, o sócio-proprietário. Mas, claro, esse é um nome fictício. Ele aconselhou-me a evitar nomes verdadeiros em obras de ficção, especialmente o dele. Se os meus escritos fossem obra da ficção, ao abrir a porta, me defrontaria com um homem bem-sucedido, sorriso claro e aperto de mão convincente, ele me passaria informações sobre a vendagem de meus livros, as tendências de mercado e nossos projetos para o próximo ano, mas o que encontro?: Arcádio Raposo. Vi que ele acabava de esconder o uísque, quando eu entrei. Ele está sempre com a cara vermelha entre os cabelos desgrenhados, grisalhos, de seus cinquenta e lá se vão anos. Sempre uma garrafa de jeito, sempre tentando disfarçar às pressas o que todos sabem, mas até isto, disfarçar o indisfarçável, tornou-se um vício do qual ele não mais se dá conta.
“E então? Trouxe alguma coisa?”, perguntou, ao ver-me de mãos vazias.
“Vim lhe falar sobre o meu novo trabalho”, disse eu, sentando-me à sua frente.
Arcádio Raposo torceu o nariz. Ele sempre faz isso, torcer o nariz. Provavelmente torceria o nariz novamente se soubesse do que eu andava planejando em rascunhos mais recentes, um texto meio-novela-quase-romance que desafiava intencionalmente as definições de gênero, além de furtar-se a justificativas, mensagens e obrigações do tipo estilo coeso, sem mencionar outros descasos à literatura.
“Por que veio me falar? Escreva. Traga pronto.”
“Não sei se vou terminar em três meses. Talvez eu precise de um pequeno adiantamento.”
Da última vez que eu estivera ali com algo novo, tinha em mente A conspiração dos felizes – e também tive de suplicar um adiantamento. Ele torcera o nariz. Mais ainda quando lhe adiantei, por minha vez, uns trechos da excomungada noveleta. Arcádio Raposo não acreditava que se pudesse escrever um parágrafo que prestasse sobre um domingo de primavera. Ele tinha razão, mas o fato é que obtivemos lucros. Eu, como sempre, andava muito entusiasmado com meus incríveis projetos.
“Sabe por quantas páginas posso manter isso?”
“Hmmm… Duas. Três!”
“Setenta. Talvez oitenta. Tudo em uma única tarde de primavera.”
“Ficou louco? Não brinque assim comigo. Uma coisa dessas ninguém aguenta mais.”
Outras falas dele também serviram para rechear o texto. Um escritor atento, em crise criativa – e sem dinheiro –, tem de aproveitar tudo.
Não ficou tão ruim. Eu já havia atravessado fases piores de minha esterilidade. Cheguei a pensar como Borges, tentando criar filósofos, biografias e obras; mas, com o tempo, isso deixou de me interessar. Procurei descobrir autores esquecidos no fundo de bibliotecas e ressuscitá-los com ensaios, como fazem os acadêmicos e os escritores bem-intencionados, quando estão sem ideias. Mas, ai de mim: nenhum deles era interessante, e justamente por isso foram esquecidos. Seus personagens eram corretos, íntegros, virtuosos. Os textos haviam fracassado por outras razões, mas tornaram-se inviáveis nos dias de hoje. Por fim descobri, com razoável alegria, que o meu maior prazer era esculhambar as mensagens sublimes e tornar sério o que parecia ridículo. Verena me ajudou muito. Afinal, não foram grandes descobertas. Mas pareciam ser, quando encontradas pela primeira vez. Esse constante fluir de ideias, buscadas ou não, é o que caracteriza a mais pura essência da expressão artística, descontando-se a aparência exagerada dessas tais palavras. A possibilidade de que isso cresça e se desenvolva nas mãos de outrem basta para que se atire uma palavra à prensa. O destino da arte é também curioso: muitas vezes as coisas que chocam, não acontecem. E as coisas que acontecem, não surpreendem. Não sei se é só isso. Penso sem rumo. Posso estar lamentavelmente enganado.
Arcádio Raposo ficou abatido com a minha explanação. Emitiu um longo suspiro. Torceu o nariz. Não gostou do projeto. Como todo mundo, costuma dizer que sua profissão é ingrata e pouco reconhecida. Foi o que repetiu, quando terminei minha exposição.
“E os contos?”
“Ninguém aguenta mais seus contos. Crianças cruéis, jovens psicopatas, adultos suicidas. Políticos assassinos, padres mulherengos. Por que, afinal, você insiste em escrever sobre isso? Me fala.”
“Porque é verdade.”
“Ah!”, ele grunhiu sem paciência, irritado com esses meus idealismos inúteis, esses meus amadorismos solenes. “Por que não escreve uma história de amor?”
“Não sou capaz. E não espero que o senhor entenda.”
“E a crise nacional? Um país como o nosso, rico em incoerências, tanta coisa ruim, tragédias, desonestidade, corrupção, tudo sempre atual…”
“Os jornalistas já fazem isso.”
“Escreva um romance. Romances vendem.”
“A era do romance terminou.”
“Os leitores não sabem disso, entendeu? É o que importa.”
“Pensa que é só escrever, e pronto? O senhor sabe muito bem que não é assim. E quanto ao meu adiantamento?”
“É fácil sim, desde que você não seja um gênio. Joyce levou sete anos para concluir sua obra-prima, vai me dizer que não sabe disso? É claro que sabe. Flaubert, cinco. E era só um livro. Proust, a vida toda.”
Tolstói, Guerra e paz, lembrei. Também sete anos, sem trégua – e só fazendo isso! Balzac, oito: As ilusões perdidas. Haja ilusão, meu amigo. Houvesse.
“Pois então, não vá você cair nessas”, ele prosseguiu. “Ou não vai publicar nunca! E acabar sem dinheiro, sem emprego, sem editor… Sem nada de nada!”
“Muito realista, obrigado. Quero crer que eu seja alguma coisa, mesmo sem dinheiro. Pelo menos, enquanto viver.”
“Nós não dispomos de tanto tempo. Somos uma editora. Precisamos de lançamentos anuais, semestrais… Se possível, bimestrais.”
“Posso escrever uma fotonovela por mês.”
“Muito engraçado. O que esperava? Obras-primas? Somos uma editora.”
Fiquei sem graça. Sem graça mesmo. Como me arrependo dessas minhas piadinhas… Ao menos, escrevendo, tenho tempo de pensar um pouco mais e ter o cuidado de riscá-las do texto.
“Soube que vocês estão preparando outra coleção de livros de bolso. Espionagem, amor, aventura.”
“Foi bom ter tocado no assunto. Estamos precisando de tradutores. Você sabe alemão?”
“Não brinca! Os alemães também estão fazendo isso?”
“Sabe ou não?”
“Só nomes próprios.”
“E o seu inglês?”
“Suficiente para não passar fome em algum país do Primeiro Mundo.”
“Que tipo de ironia é essa?”
“Não vale a pena.”
“Você sabe, eu sei. Hoje em dia todo mundo sabe inglês. Até secretárias. Até gerentes de banco.”
“Não exagere.”
“Até críticos de arte, ao que parece. Mas você é um escritor.”
“E por que um escritor tem de saber alguma outra língua além da sua? Olha, não sei se eu quero entrar nessa. Meu dinheiro não acabou ainda.”
“Orgulhoso demais para traduzir outros autores, é, eu sei. Não se diz nacionalista, mas no fundo é o pior tipo. Não é? Claro que é. Eu sei, eu sei.”
“Não se trata disso. O que eu não quero é perder tempo com textos para crianças.”
“Muito engraçado, muito mesmo. Veja só como me animou.”
“Não é engraçado. Mas guarde um título em inglês para mim. Pode ser que eu volte a passar fome em menos de três meses.”
“Olhe, vou lhe dizer uma coisa. Já disse antes, mas você não aprende. Ou não disse? Disse sim.”
“Com certeza, já disse. Seja o que for.”
“Pois é. Toda vez que aparece uma chance, você se nega. Há algo de errado nisso, se você não sabe o que é, muito menos eu. Você quer escrever o que ninguém quer ler. Quer ser como ninguém quer ser. O que é que há? Veja, veja como exemplo…”, retirou um recorte do vão de uma pasta fininha, cujo interior certamente ele não queria que eu visse. Leu: “É preciso que haja prêmios importantes, para que os escritores de talento possam recusá-los.”. Passou-me o papel. “Você se lembra de haver escrito isso? Isso aí?”
Fiquei olhando aquele recorte idiota.
“Publicaram assim. Mas não foi o que eu disse.”
“Ah, não? O que foi então?”
“Que os prêmios mundialmente famosos muitas vezes deixam de fora autores significativos, o que cria uma polêmica à parte, muito salutar, em minha opinião. Que, por vezes, um prêmio é concedido a um determinado poeta, a um determinado escritor, porque o mundo todo já o reconhece, o que para a comissão julgadora resulta numa situação ridícula, tendo de optar por elegê-lo, mesmo a contragosto, ou registrar outro vexame à luz do dia.”
“Mas aposto que disse isso também, isso de recusar os prêmios. Ora, como você pode dizer isso? Como pode escrever isso? Aquele seu prefácio sobre os músicos, lembra? Não adianta tentar negar: que Rameau, Weber, Saint-Saëns e outros tantos (o termo era seu) mais serviam como contraste aos compositores de verdadeiro talento e para que mais se confirmassem seus valores, não propriamente para que lhes ouvíssemos a música, que seria apenas rotineira. Como pode pensar assim? E, pior, dizer o que pensa.”
“Era apenas uma opinião sobre música.”
“Veja, veja aqui”, entre dois ou três papéis. “Quando lhe pedimos sugestões para melhorar os títulos da nova coleção de infantojuvenis, veja, veja aqui…”
“Estou vendo. O que tem isso?”
“Essa aventura romântica, que se chamava Janela para o céu. Você me apresentou isto aqui, veja, e ela tornou-se Claraboia.”
“Sim, o senhor me pediu ideias, algo diferente…”
“Mas não tão diferente. Eu disse assim? Não, não disse. As múltiplas luzes da paixão. Lembra desse?”
“Não.”
“O que você propôs: Semáforo de paixões. Foi o que você propôs. Ficou pior. Não ficou? Ficou.”
“Juro que não lembro desse. Juro mesmo.”
“Além de parecer cômico, apesar de não ter graça nenhuma, se é que uma situação dessas possa lhe parecer engraçada, entre as dificuldades que nós todos estamos vivendo hoje em dia, estamos ou não estamos? Pois então. Veja aqui este outro. Encontro no lago da planície. Ganhou o título de Encontro lacustre. Um horror! É ou não é um horror?”
“Sim, admito. Meu vício de concisões. Prometo abandoná-lo.”
“E não faz sentido você ficar escrevendo coisas que ninguém vai ler. Faz ou não faz?”
Ele tinha razão. O que ele apontava era claro, fazia todo sentido, sim. Eu concordava com ele. Mas não conseguia evitar. Só isso. Não conseguia evitar. Uma desgraça.
“Veja esse seu colega, o… o…” Fugiu-lhe o nome. Voltou-lhe. “Castilho! Lançando o quinto título, tiragem sempre maior. Aos poucos, está se tornando conhecido, conquistando o público. Ele jamais diria uma coisa dessas, sobre a música ou sobre os prêmios… Portanto: aprenda com ele. Pense nisso. Não agrida as pessoas.”
Fiquei surpreso com o que acabara de dizer Arcádio Raposo. Eu não pretendia agredir quem fosse. Eram apenas questionamentos, pontos de vista. Nem mesmo polêmicas maiores do que duas ou três frases trocadas entre amigos seriam de meu agrado. Se ele soubesse… – que entre as tantas coisas que nunca eu quis ser na vida, uma das primeiras era esta, polêmico.
“E ouça principalmente o meu conselho…”, disse ele, tentando reprimir um soluço. “Preste atenção nesse seu colega. Ele, sim, tem futuro.”
Poderia ter dito “seu arquirrival”, como nos bons tempos dos clássicos juvenis. Mas referia-se a Cassiano Castilho como meu colega, santa sutileza. Aliás, Cassiano C. Castilho – o esquecimento desse C. causa-lhe, a Cassiano, uma estranha irritação. São tais desgastantes picuinhas que vão tomando conta desses tipos, conforme eles crescem em popularidade e importância, pois a arte e o poder às vezes confundem e corrompem.
“Ele, sim, tem futuro”, repetiu o experiente editor.
Sendo ele o editado e eu o rejeitado, seria natural, por um critério lógico, que fosse eu o rival de Cassiano, não o contrário. Mas é o que ocorre. Na verdade, nunca nos entendemos. Eu tinha de fingir que gostava de seus textos, e nem sempre conseguia ser convincente. Mais difícil era suportá-lo como pessoa, eu já havia desistido de tentar. Mas ele não. Achava que valia a pena competir comigo, como se corrêssemos na mesma raia, em busca de uma mesma medalha. Para ele, ao menos pelo que aparentava, os entraves naturais do pensamento humano não pareciam surtir efeito. Estava sempre bem-disposto, autoconfiante e, ao contrário do que sinto, gostava de apertar a mão de todo mundo. Para se ter uma ideia, conta-se que ele próprio passou ao inglês, sabe-se lá com que perdoáveis adaptações, um de seus romances mais breves, o que lhe permitiu, também com perdoáveis exageros de intenções, escrever sobre isso nas orelhas de capa desse seu mais recente volume, fazendo supor que o texto fosse febrilmente disputado pelas editoras, como também que tivera seus livros traduzidos para diversos idiomas, tanto quanto costumava lembrar, em todos eles, que todos haviam sido indicados para o prêmio maior do Concurso Nacional do Livro, certame aberto a todos os que publicam qualquer coisa em nosso país, pois afinal o que vale é o efeito de tais mentirinhas, ao menos o sonho de que produzam mesmo os tais efeitos. Não o critico por ter se rendido ao público, acho até que ele tem seus objetivos bem definidos. Eu é que não tenho certeza do que esteja fazendo no mundo. Vida dura, nem fale.
A seta de Verena – Guia de leitura
13. Retrato de meu hábitat quando jovem – sequência
11. Noções de origem – anterior
Imagem: John Frederick Peto. Faça sua escolha. 1885.
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