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Memórias de gentis predadores
“E aquela dos periquitos?”, Verne sorrindo, ainda animado com o reencontro.
“Ah, a Cris. Aquela periquita das músicas. Uma gracinha, me fez feliz. Um acidente. Não foi nada.”
Verne vai lembrando mais coisas, memórias de gentis predadores – naturais ou não, nem saberiam evitar o que a vida lhes propunha, agora em parte transcorrida, a parte em questão repassada entre essas tais lembranças que, mesmo hoje, em outra idade, os moldavam homens.
“Eram sempre elas que tomavam a iniciativa, que coisa, Verne. Demorei a perceber isso. Claro que devia ter alguma coisa errada comigo.”
“Tinha nada”, ele ri. “Com a Júnia, você disse que foi tudo recíproco. Vocês dois, ao mesmo tempo…”
“Ah, verdade. Mas ela… Ela… Não ia dar nada certo mesmo.”
“O Morghini chamava a Júnia de sua paixãozinha republicana. Mas não por causa do ativismo político dela. Era porque ela morava numa república, lembra? Ahahah…”
“Ahah… É, ele tinha uma definição pra tudo. Era o estilo dele. A cara dele. Musa masturbadora, revistas peladas… Sinto falta disso tudo, sinto falta até da cara azeda dele.”
“E lembra? Isso de gostar de uma e sair com outra, que ele chamava de reação em cadeia erótico-problemática… falando dicas e picas…”
“É, ele sempre dizia alguma caca desse tipo. O Souto ficava puto com ele. Quase sempre.”
Outro chope, voltam a falar delas.
“Aquela do ônibus fumacento você me contou, eu lembro.”
“Ah, puxa!”, terminando um gole gelado. “Que saudade, puxa, como ela era… Como era linda. Lindinha. Uma paixão.”
Danilo lhe conta de como raras vezes na vida tinha sido tão feliz. De como se sentia bem, motivado e gratificado com Regina, que era, pelo menos naquela época, livre.
Verne molha a barba com um fio de chope, acaba de voltar o copo à mesa.
“E os peitinhos dela, você lembra? Ahah…”
“Claro, claro que sim. Quem esquece uma coisa dessas? São mulheres eternas. Elas são a nossa vida, afinal,” agora é Danilo quem leva o copo à boca. “São mulheres que moram em nosso coração…”, mão aberta sobre o peito, patriota. Ergue seu copo, quase um brinde. “… e em nossa ereção.”
“Ahahah… Era tudo muito bom, não era? Mesmo o que não era tão bom. Nossas solidões, os constrangimentos, nossas burradas… E as nossas trapalhadas com as meninas. Inveja de outros caras, que tinham namoradas bonitas. Ahah… Era tudo muito bom. E todos nós estávamos vivos.”
Sim, todos nós. Depois, todos nós estaremos mortos, Danilo reflete tolamente como se estivesse diante de uma grande novidade, distraído. É só um momento. Mas por seus olhos passa uma nuvem. Só um momento. Distraído. Todos nós, tudo. Pensar que depois de todas aquelas conversas animadas nos botecos, essas mortes sempre estariam por vir. Alan, que ele mal conhecia, mas que, sendo o morto jovem, o alertava para o perigo de perder a vida a qualquer momento. Ana Lúcia, a maior tragédia, basta pensar nela e ainda ouve o trovão do tiro ecoando no quarto. Valdinei, caído na selva…
“E aquela poeta?”
“Quem? Poeta? Que poet…? Ah, é mesmo! Nem me fale. A Maria Elisa…” Danilo cobre o rosto com as duas mãos antes de descê-las até o queixo. “Nossa! Por aí você vê que a poesia não torna alguém inesquecível. Rapaz… Como me arrependi.”
“Ahahah… Justo você: o prosador.”
“São coisas de momento, não adianta. O tesão é mesmo circunstancial. Eu babava de vontade de levar ela pra cama, e não imaginava como. Mas só de ela insinuar sexo com amor, união transcendental dos corpos, conexão cósmica, essas coisas… Cara! Era de acabar com a vontade de qualquer um. Ou, pelo menos, dificultar todo o caminho. Parecia impossível que ela conseguisse isso com alguém de verdade. O que você foi lembrar!”
“Ahah… Como é difícil dar uma com uma mulher dessas, não é? Eu sei. Depois, as que se casam acabam se separando, na meia-idade, começam a escrever esses livrecos com técnicas de meditação, conselhos para os jovens, experiência de vida, não é assim? Não, não. Ninguém merece.”
“Da última vez, ela me convenceu a ver um fim de tarde lá perto do Mirante do Mosteiro, sabe? Ficamos lá, sentados na grama. Grama não: um mato rasteiro e espinhento, meio urtigoso, eu me coçava o tempo todo, não conseguia me concentrar nas coisas excelentes e divinas que ela absorvia de qualquer parte ao redor. Até que eu consegui dar uns agarros nela, era só isso que eu queria. Abraçava ela forte, dava uns beijos bem dados pra ver se ela se empolgava também. Mas quando voltava a inspiração, meu amigo, pronto! Adeus. A poeta ressurgia das cinzas. Emergia das marés. Era a encarnação do cosmo.”
“Não posso rir assim, está todo mundo olhando… Ahahah…”
“Queria que você visse: ela parava tudo. Tudo! Já era. Agora, poesia. Ela associava palavras pela sonoridade, pela semelhança, adorava falar em aliteração, não sei por quê. Quando encontrava num poema ou num texto qualquer uma coisa dessas, dizia: ‘Ó! Aqui, ó: aliteração!’ Ela sempre puxava uma palavra com outra, você dizia árvore, ela fazia: árvores, arvoredo, o amor se arvora em nossas artérias. Pensa que era brincadeira? Poeta, poetar, poetência, ela dizia. Poetenciar. Sentimentos elevados ao cubo: poetenciação… E aquele céu estava lindo mesmo. Tinha até roxo no meio dos laranjas. Porque o ar aqui é muito poluído, você sabe, os gases tóxicos fazem esses crepúsculos maravilhosos. Quanto mais veneno, mais poluição, mais beleza. ‘As cores com que o Criador nos abençoou…’, ela dizia com aquela cara de encantada, sem parar de sorrir. Nem pensava nos gases tóxicos. Isso não entrava na transcendência espiritual toda, claro. Eu já estava arrependido, já tinha me arrependido no meio do caminho, agora tinha que aguentar até o fim ou inventar uma enorme desculpa que tirasse ela do transe. Na prática, eu só podia imaginar a Maria Elisa gemendo embaixo de mim e… tomara que não fizesse versos nessa hora.”
Verne se curvava, soluçando. De fato, estavam todos olhando.
“Pôr de sol, pôr de sal, lá vinha. Pôr de sal sobre o ar e o mar… Eu não lembro direito, estou inventando, eram coisas assim, mais ou menos assim. A Maria Elisa acreditava na poesia. E ficava ali, se fodendo com o pôr do sol. Poetências, poetencial… Acreditava que alguém estava pintando aquilo no céu. Cores especialmente escolhidas para nós. Nem pensava que era a nossa própria poluição, nossa própria sujeira. Potencialmente uma louca.”
Verne foi aos poucos se recuperando. Passou um guardanapo de papel no rosto. Outro na boca.
“Tudo valeu a pena”, ele diz. “A gente passa por mil coisas mesmo. Tudo por causa do sexo. Às vezes nós nem percebemos os riscos que estamos correndo. E corremos riscos mesmo conscientes, corremos riscos assim mesmo.”
“Bom, não era o caso, com a Maria Elisa. O risco ali era eu desmaiar de tédio.”
“É, eu estava lembrando de outra coisa.”
“Ah, sim. E a Amanda? Como ficou aquela história toda?”
“A Amanda? Ah, a Amanda me usou, sabe?”
Danilo fica esperando que ele conte, e apenas imagina que esteja lhe dizendo: “Sei, meu amigo Verne, eu sei, meu caro. Só você não sabe, demora um pouco mais do que nós, porque você é raro, você é puro.”. Certa vez, no bar, Danilo se lembra: “O amor…”, Verne dissera entre eles, disfarçando estar comovido, “… me dá vontade de chorar.”. Os rapazes riram. Danilo ficou atento, surpreendeu-se, memorizou isso. Não sabia no que ele estava pensando. Mas com certeza não era nada parecido com o que os outros todos, brutos, pensavam ali, atrapalhados e veementes, como era normal. Se algum deles houvesse se impressionado com a fala de Verne, sentindo-se tocado por algo inusitado e sensível, trataria de esquecer logo.
“Te usou, é?”
Verne fazia parte de um grupo de ambientalistas, sua imagem saíra num artigo de duas páginas de uma revista local, o título da matéria era: Cuidado com os carrapatos. Foto dele, sorrindo. Sol na cara, bonezinho com nome de uma ong. Ele estava muito feliz porque a Amanda o veria na reportagem, seu rosto manso, sua barba loira, dando conselhos sobre os malefícios que podiam transmitir os tais carrapatos. Ele começou a se encontrar com ela numa região ali perto, entre árvores, entre brisas suaves e venenosas, daí a apaixonar-se foi como respirar. Verne intensamente apaixonado – aquilo havia afetado seu comportamento, mesmo que ele o negasse. E ele não era mesmo de mentir, não enganava ninguém. Dessa vez escondera o caso, não dizia o nome dela porque sabia que, entre os amigos ali, as confissões, os segredos e os bons conselhos logo se esfarinhavam, perdiam o valor. Só o melhor da condição humana, eis o nosso amigo Verne.
“Mas eu não conseguia resistir, sabe? Pensava em terminar com ela, não sabia como. Só porque as coisas estavam ficando muito complicadas, só isso. Só por isso.”
Dois chopes chegando. O garçom recolhe os copos, um mínimo de espuma desenhando o fundo, passa rápido um guardanapo de papel num canto da mesa, perto de Danilo, que nunca percebe o quanto acaba melando as superfícies mais próximas, por deslocar seu copo o tempo todo.
“Porque eu desejava demais a Amanda, queria muito ela comigo. Gostava muito dela, sabe? Amava de verdade. Você entende isso?”
“Claro, Verne. Claro. Você sabe que sim.”
Mas Danilo agora cai sob a neblina de outra ideia, outro pensamento. Uma ideia que não é dele, que é tão ancestral como qualquer outra coisa que se repete, mas que só ocorre aos homens de sua idade. Todos nós, homens, pensa, em algum momento da vida, desejamos a mulher mais linda do mundo, a nossa Helena de Troia. Principalmente depois de mais velhos. Principalmente agora. Reconheço que não teria me envolvido com Liana se ela não se parecesse um pouco com minha Helena em particular – e ela é nova para mim, seu corpo ainda invisível. Mas por quê? Porque somos obscenos, lascivos? Ou porque vivemos o bastante para perceber que outros valores não eram tão importantes? Mas Helena, que importa? Seu rosto, seu corpo, seu calor excitante? Sim, somos animais, quem não sabe disso? E o que é essencial à vida (a atração pelo sexo, o prazer da conquista e da sedução) se repete intensamente, irrefreavelmente, com uma energia provinda de nossos genes, que não respeitam nenhuma estética criada por nós mesmos. Só o que podemos, com toda sinceridade, é admitir isso.
“A Amanda… Você e ela… Quanto tempo ficaram juntos?”
“Juntos? Não é bem assim, não foi bem assim. Mais ou menos. Vou contar, hoje posso contar. Mas prometa que não vai contar pra ninguém, que não vai escrever. Muito menos publicar.”
Danilo ergue a mão, escoteiro.
“Minha palavra.”
“Porque você era assim, não era? No fim, escrevia tudo que a gente…”
“Minha palavra.”
“Nem vai escrever aquelas coisas, nossas ideias, lembra?”
“Que ideias, Verne? Não, não lembro. Olha, velho, a literatura é a arte que melhor pode contar a história humana, contar de todos nós. Entre mentiras e verdades, acaba sendo o ideal que quase não estávamos procurando, as chances de nos acusarmos, de nos redimirmos, de nos superarmos. E se alguma dessas mulheres pensa em mim e em você ainda hoje, tomara que se lembre de nós, pelo menos, como caçadores suaves, pouco agressivos. Que nunca fomos outra coisa. Se guardarem alguma marca, que sejam as marcas de gentis predadores. Do que fomos e somos sem nossa vontade e, ainda assim, por nossa vontade sim.”
“Então, escuta…”
Enquanto ouve, Danilo outra vez se perde aos poucos em si mesmo, dividido entre a narrativa do amigo e o que vem pensando em todos os tempos. Eu é que não sei o que vale a pena, afinal, se viver qualquer coisa será melhor do que não, do que nunca se arriscar a vivê-la. Penso nisso até hoje. Penso em Liana, penso no que ela espera de mim, penso em levá-la para a cama, como com todas as outras. Não há como evitar imaginar isso. Um primeiro gesto, e essa perspectiva começa a se desdobrar bem à nossa frente. Potencialmente, desde um primeiro sinal, todos nos desejamos uns aos outros, invisíveis. Potencialmente, todos. Se pudéssemos pular algumas etapas… Mas não, não é assim que se faz, a natureza exige determinados rituais, não seremos nós os usurpadores desses ciclos, é assim que tudo vale a pena. Outro gole do chope.
“O marido dela quase me matou”, lembra Verne, com a calma de sempre.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
43. Um estreito, fino rastro de sangue – sequência
41. De como perdemos Val – anterior
Imagem: Judy Mackey. Garota com vestido branco.
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