Office in a Small City por Edward Hopper

Noções de origem

Primeiro, era preciso sobreviver a mim mesmo e ao meu passado.
Antes do ano de meu nascimento, o mundo era alheio.

Nasci em Marienburg, em 1908. Meu bisavô materno, Ulrich Forkel, foi assassinado na floresta da Marchenoir por franco-atiradores franceses, nos últimos dias de 1870. O capitão Dietrich zur Linde, meu pai, distinguiu-se no cerco de Namur, em 1914, e, dois anos depois, na travessia do Danúbio. Posso contar o que quiser, desde que não me levem a sério. Ou: desde que levem a sério qualquer ameaça de verossimilhança, que justo sobre essa grandeza se edificam as ficções. Isso mesmo. Posso contar o que quiser, pois não sei quem será o leitor. Enquanto relia Borges, que também se vestia de inventadas biografias, tal como a que se acaba de reproduzir aqui, sob a capa de um oficial nazista, eu aprendia que nunca nos atraíamos de fato pela verdade, que preferíamos sempre contá-la, sim, mas de algum outro modo. Não dizendo nossos nomes nem os nomes de nossas cidades. Também não repetindo o que verdadeiramente nos acontecia, mas sugerindo possibilidades. Por isso, eu não pretendia mais estender-me muito sobre qualquer ideia que costumava surgir da melhor maneira, isto é, por acaso, que é como tantas vezes ocorrem as ideias. Ou terminaria por não encontrar, de uma vez por todas, motivos para continuar mentindo, dissimulando, enfim, escrevendo.

Na verdade, meus pais se casaram dois anos antes de eu nascer. Minha mãe havia sofrido dois abortos antes da gravidez que culminaria com a composição de células bem estruturada a que deram meu nome. Tudo era duvidoso no que ela contava, por isso não posso afirmar que os abortos tenham de fato ocorrido ou se eram mais uma das distorcidas necessidades de sua imaginação. Ela era muito imaginativa, apesar de limitada intelectualmente, e eu puxei dela esse lado ruim. De acordo com sua versão, portanto, eu era a terceira tentativa de herdar-lhe o tempo e assim permitir-lhe testemunhar algum futuro. Finalmente ela havia realizado não propriamente um sonho, mas uma carência, vendo-me crescer, sob todas as dificuldades possíveis, em direção a uma vida que ela, naturalmente, supunha pudesse ser melhor do que a sua, ou tão boa quanto. Nem tudo saiu como ela queria. Aos vinte anos, o que mais eu desejava era suicidar-me.

Primeiro, era preciso sobreviver a mim mesmo e ao meu passado. Antes do ano de meu nascimento, o mundo era alheio. Quando nasci, a minha era pouco mais que uma cidade pequena, podendo ser vista como uma cidade média. Por muito tempo, tal definição colou-se ao nosso coloquialismo: cidade média – por ser de fato maior do que outras da região e por orgulho natural de seus habitantes. Mas não me importam os números, muito menos o nome desta ou daquela cidade, apenas o que isso possa representar, se puder. Havia, segundo minha memória, cinco ou seis bairros em torno de um bairro central, o mais antigo. Algumas ruas eram mágicas. Alguns bairros, tão proibidos para mim que pertenceram, por quase toda a infância, ao reino do imaginário.

Quando tomei consciência de meu nome incomum, que nunca me agradou sob nenhum ponto de vista, meus pais explicaram-me que haviam feito uma lista de uns cinco ou seis nomes, todos gregos, e o haviam sorteado. Como outras inúmeras explicações vindas de meus pais, esta era também uma distorção, para não dizer-se simplesmente uma mentira, que assim e por outros meios eles costumavam culpar o acaso. Eu não me sentia bem quando alguém perguntava: “Como você se chama?”. Fosse qualquer outro nome. Preferia não ter nome algum. Evitava ao máximo dizê-lo. E sempre que o pronunciava, tinha de repeti-lo, que poucos o entendiam da primeira vez. Meus colegas costumavam escrever seus próprios nomes em cadernos, carteiras, portas e paredes da escola, muitas vezes com esmero, como se estivessem atraídos pela beleza de seus caracteres, sílabas e fonemas – ou por pensarem que seria importante deixá-los ali, deixarem-se ali para admiração de outros, o que eu nunca pude compreender. De certa forma, era também como se eu não existisse inteiramente, como se me faltasse uma identificação com o resto do mundo e com meus semelhantes, algo que só pode ser observado quando se pensa demais sobre isso, particularmente quando se sofre por isso, pois era inevitável a associação inconsciente com meus pais, consequentemente com tudo o que de ruim eles significavam. É notável que em quase todos os meus textos escritos em primeira pessoa o personagem narrador não tenha nome. Notável porque só percebi isso muito depois.

Em algum momento, enquanto crescia sem querer, em meio a essa neblina, pensei em fazer de minha vida algo melhor do que poderia apenas ser. E nunca vislumbrei outro caminho que não fosse por meio do conhecimento, mesmo quando ainda era um menino e não sabia ao certo o que significavam as palavras. Ou o conhecimento. Ou se o que eu chamava de conhecimento era mesmo o conhecimento. Brincar de ser escritor, acreditar-me escritor, era minha maneira simplória e acessível de parecer inteligente. Às vezes, acho que nasci para escrever. Mas como também acho que nasci para questionar, não posso afirmar nada com certeza.

Eu ainda dependia disso. Tinha esperanças. E não era uma brincadeira, não naquele momento. Eu realmente precisava criar, inventar, escrever talvez um longo romance com máscaras, transcorrendo entre cenários não muito familiares, para que o leitor se interessasse, com personagens distantes de sua cultura e de seus costumes, para que ele, o mesmo leitor, continuasse interessado, finalmente com uma sequência de ações que dificilmente, para não dizer jamais, aconteceriam em sua própria vida, pela qual ele provavelmente não se interessava muito, caso contrário não estaria lendo uma coisa dessas.

Por uma questão de dignidade, eu queria continuar contando mentiras bem elaboradas, e nunca passar à frente nenhuma mentira que não fosse de minha própria autoria. Sim, isso me animou decisivamente em muitas fases difíceis da vida. E pode servir ainda, como servia antes, apenas em outra proporção, em outra escala. E talvez me motive sempre. Ah, como é bom escrever. Como é bom mentir.

A seta de Verena – Guia de leitura

12. O Arcádio do Conselho Editorial – sequência

10. Bom dia, ontem – anterior

Sobre o livro

Imagem: William Turner. Geleira e nascente do Arveron. 1803.

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