Office in a Small City por Edward Hopper

Meu amigo poeta-patriota

No início só escrevia sonetos, à maneira dos deputados e políticos menores.
Tais esmeradas composições, ele as tinha guardadas em preciosos calepinos.

Glauco Pinheiro chegou pela manhã, entre as sete e as oito, quando eu ainda estava torto de sono.

“Li o seu conto. Parabéns. Foi merecido.”

Esfreguei meus olhos remelentos enquanto fechava a porta.

“Quem entende as comissões julgadoras, não é?”

“Aproveitei para trazer-lhe uns poemas.”

“Oh…”, esse meu oh é desgostoso e triste.

“Não tive tempo de datilografar estes mais longos, porém creio que estejam legíveis. Já me disseram que tenho letra de médico, imagine. Se tivesse aptidão para a Medicina, não estaria na Secretaria de Obras, que por sinal tem tomado todo o meu tempo ultimamente. Quando tiver minha idade, talvez tenha se decidido por alguma profissão. Então verá como o tempo se torna escasso. E a poesia, infelizmente, passa a segundo plano.”

Ele é três anos mais velho do que eu.

“Comece por estes.”

“Oh…”

Glauco Pinheiro de Pádua, engenheiro civil, emprego público, prefeitura municipal. Poeta por prazer – ou necessidade? Às vezes, aparece aqui para trocar ideias, sua tal expressão: na verdade, não é uma troca de ideias, pois ele nunca me dá ideias. De minha parte, evito anunciar-lhe as minhas – não que mereçam qualquer segredo, mas porque normalmente ele não as aprova. E traz seus poemas. Como qualquer pessoa de meia-idade ou aposentada, não consegue disfarçar um estranho contentamento em declarar-se extremamente ocupado, lamentando a terrível falta de tempo. Ele tem trinta e dois anos. Assina seus opúsculos Pinheiro de Pádua, omitindo o prenome, à moda antiga: ele acha melhor, eu também, evitar o “Glauco”. No início, só escrevia sonetos, à maneira dos deputados e políticos menores. (Tais esmeradas composições, ele as tinha guardadas em preciosos calepinos.) E chamava suas antologias Solstício, Plenilúnio… Mas libertou-se. Deixou de aventurar-se pela prosa quando eu lhe pedi que evitasse a contumácia das reticências ao final de quase todos os períodos e parágrafos. Ele agora as aplica inescrupulosamente ao verso – só que eu ainda não criei coragem para apontar-lhe isso. Costumava sublinhar palavras numa frase qualquer, melhor dizendo, que eu julgava uma frase qualquer, como se a passagem fosse uma tirada espirituosa e merecedora de destaque. Bem ou mal, não me lembra nenhuma como exemplo. Quando eu lia o quinto poema, ele chamou-me a atenção para os versos finais.

Estrela que, linda, cintila…
Sem tê-la, ainda posso senti-la…

Li de novo, devagar: Estrela que… linda… cintila… (um pouco de sono ainda) Sem tê-la… ainda posso… senti-la… (e essa triste dor de cabeça, que não passava).

“Oh…”

Ele próprio elogiou a abundância do que chamou rimas interparalelas. No mesmo poema, via-se riscada a contração dum, a seguir substituída por de um. Logo à frente, o de um também riscado – e novamente um dum. Fiquei imaginando as agruras de um (ou dum) poeta, em seu afã laborioso para consolidar uma opção definitiva. Isso tudo, mais o ranço de meu sono interrompido, encheu-me de desgosto.

“E então?”

Não me lembro do que lhe disse. Mas ele reafirmou, como sempre, que a obra literária, como na engenharia, tinha de ser construída frase por frase, verso por verso e, como eu já esperava, rima por rima.

“Que foi? Alguma enxaqueca?”

“Não. Um pouco de sono ainda.”

“Aquela moça não o tem deixado dormir direito, estou errado?”

“Quem, Mônica? Ah… Não, não. Eu a vejo nos finais de semana”, respondi com voz fraca, apertando as têmporas.

“Isso é bom”, disse ele com ênfase claramente rarefeita, como se não achasse nada bom. “A rotina desgasta o amor.”

“O quê?”

“O amor.”

“Oh…”

Há cerca de ano e meio, creio (a rima, observe-se, já se deve à influência da presença dele), Glauco Pinheiro presenteou-me com um livro de sonetos seus, não sem antes estender ao longo da primeira página uma rebuscada dedicatória, reafirmando nossa eterna amizade. Ele havia pago a editora em doze parcelas mensais, sendo ainda brindado com sete exemplares extras, graças ao erro de um jovem distraído que, mais tarde, viria a tornar-se sócio da tipografia. Voltando à alma da coisa, alguns dos sonetos eram declaradamente patrióticos, enquanto outros tratavam de conclamar os verdadeiros poetas a uma ampla união em nome dos grandes ideais sublimes, em nome da cultura, em nome da arte, em nome da educação de base e também, naturalmente, em nome da pátria. (Eu não podia dizer algo contra suas tendências, afinal tratava-se de uma questão de gosto e opção: ele era outra pessoa, não era eu, não podíamos pensar um pelo outro.) Os poemas eram muito bem trabalhados, métrica impecável e rimas por vezes surpreendentes, configurando verdadeiros achados, e assim norteando o mais dos versos, como quase sempre o próprio tema, em função de sua raridade. E mesmo que assim não fosse, a qualidade dos sonetos, digo, eu não poderia ter-lhe confessado minha aversão pela temática, que é o que ocorre quando se recebe um livro de alguém e já lá vem, incluída no gesto, a obrigação do reconhecimento e do elogio, salvo se o leitor contemplado for do tipo honesto, não sendo na ocasião o meu caso, não o bastante.

“Agora, o mais importante”, ele anunciou com aquele seu característico entusiasmo, que se manifesta de maneira vibrante em casos assim. Só isso já me dá arrepios. Quase sinto medo. Um medo especial, prevendo situações bem próximas, prontas a desafiar-me o tédio.

“O quê?”

“Tenho dois convites para a cerimônia de aniversário da Academia e, olhe: desta vez você não me escapa. Nós, poetas, temos de estar, desde cedo, familiarizados com o meio, estou errado? Quem sabe nosso esforço não será ainda coroado com uma cadeira entre os imortais. Além disso… Tem certeza de que está passando bem?”

A seta de Verena – Guia de leitura

7. Consumação mínima – sequência

5. O Arsênio da Editora Circular – anterior

Sobre o livro

Imagem: Michael Loew. Delineações no espaço (detalhe superior). 1955.

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