Office in a Small City por Edward Hopper

Duas linhas, literalmente

Escrevi muitos contos ruins, e quase todos foram premiados.
Por sorte, nem todos foram publicados, e eu pude extraviá-los mais tarde.

Pela manhã, ao sentar-me na cama, vi a metade de um papel dobrado por baixo da porta. Ele se recusava a sair de lá, e eu tive de abri-la e prendê-lo com o pé, pois tanto a porta quanto o soalho do quarto são irregulares e fora de nível. Tudo aqui é assim, é preciso que se diga, antes que se esqueça.

Um bilhete. Uma cartinha, ela diria.

Oi
Estive aqui. Parabéns por ontem.
Depois conto porque não fui. Agora são sete e 15. Quase que arrombo a porta mas você não acorda. Deixa eu ir estou atrasada.
.                                                           Beijos, beijos!
.                                                                                           Mônica
 

Era isso. Eu estava sonhando com um terremoto sem precedentes, e eu nunca sonho com terremotos sem precedentes. Foi também o que me fez acordar logo depois. Sete e 15, eis Mônica. Tão cedo? Talvez eu devesse dar-lhe de uma vez a cópia da chave e, trocadilhos à parte, assim fechar o ciclo de arengas que ela recomeça sempre que despertamos o aborrecido assunto. Como diversas outras situações em curso, Mônica e eu somos uma dessas que exigem sua urgente definição. Afinal, já nos defrontamos algumas vezes com o tédio, entre os poucos dias que vivemos juntos – não sei se isso é o normal em casais que só se veem nos fins de semana. Eu às vezes procurava novas brincadeiras para nossas horas de sensualidade, que na verdade não passavam de alguns minutos. Mas isso durava pouco, e acabávamos sempre nos realizando com alguma pressa e muito naturalmente, o que sem dúvida alegraria a qualquer um de nossos poetas urbanos, em geral os mais bucólicos, só que eu agora me acreditava escritor. Ela, por sua vez, não sendo nem poeta nem escritora, podia viver mais plenamente os prazeres que despertava em seu corpo, não tendo de se incomodar em nomear sensações, classificar sentimentos, descrever ambientes ou ficar filosofando sobre o objetivo da vida humana após o orgasmo. Uma vez, pedi a ela que ficasse voltada à parede e de costas para mim, braços erguidos, como na simulação de um mergulho, nesse caso para o alto, dedos buscando o teto, o corpo todo retesado, as nádegas à minha altura, melhor dizendo, à altura de meu sexo, porque ela se punha, mesmo que eu não lhe pedisse, na ponta dos pés. Então, eu apenas a percorria com as mãos, seguindo todo o contorno de seu corpo, desde prender-lhe por um instante os pulsos e os tornozelos entre os dedos, subindo por todas as formas e consistências de que dispunha, até afagar-lhe delicadamente o pescoço, a nuca e os cabelos. Nesse brinquedo, era ela quem se entregava primeiro: voltava-se quase num repente, grudava-se à minha boca, num beijo que parecia não ter fim, e afinal me derrubava na cama. Poucas vezes conseguíamos nos deter entre artifícios desse gênero, por isso já quase parecíamos casados.

Não eram oito ainda, eu tinha de aproveitar. Do topo da escada, avistei com prazer o jornal ainda dobrado sobre o capacho. Sempre que posso, se acordo antes das oito, desço para ler o jornal. Depois, claro, tenho o cuidado de dobrá-lo novamente e devolvê-lo ao capacho como se houvesse acabado de chegar. (O jornal, não eu. Nem o capacho.) Quem assina esse jornal diário é o senhor Lineu Domingos, do térreo. Ele é aposentado, geralmente acorda depois das oito. E ficaria furioso se soubesse. Ele fica furioso com qualquer coisa. Não tem o que fazer, e fica furioso. A pura verdade. Já pensei em lhe pedir o jornal emprestado, até creio que ele o emprestaria, mas sei que, no fundo, ficaria furioso do mesmo jeito.

Ao que interessa. O jornal dedicou-me duas linhas, literalmente, em uma de suas colunas mais estreitas, o tópico cultural. E não que eu merecesse mais do que isso. Aquele era, sem dúvida, um de meus contos mais execráveis: convencional, descritivo, tinha até uma mensagem. Escrevi muitos contos ruins, e quase todos foram premiados. (Por sorte, nem todos foram publicados, e eu pude extraviá-los mais tarde.) O que na verdade vinha minando-me a caixa de ideias nos últimos dias, com certa percentagem de ansiedade tóxica, alegria e motivação – não sei em que dosagem cada uma delas, nem ao certo se são essas as denominações de tais estados –, era escrever algo intencionalmente fora da sequência ou mais próximo das disparidades da vida real, evitando-se o costumeiro começo-meio-e-fim das tantas histórias contadas, aquelas que mesmo os literatos mais experientes podem confundir com literatura de melhor qualidade, pois, como todos nós, foram criados ouvindo contos de fadas e épicos adaptados, desde aqueles que as mães contam aos filhos e se assemelham às fases naturais da vida e não precisam mesmo ter mais do que um começo, um meio e um fim, que assim também é a expectativa humana, além de ser o que os humanos suportam. (Meus planos, como já disse, projetam-se, quando muito, para uns próximos anos apenas, dois ou três, no máximo.) Por isso, toda mãe sabe serem suficientes as esperadas sequências, tais como são as vidas de seus filhos, cada história seu começo, meio, fim, também porque nenhum de nós dura mais do que um certo tempo.

A seta de Verena – Guia de leitura

5. O Arsênio da Editora Circular – sequência

3. O fim (e seu avesso) – anterior

Sobre o livro

Imagem: Charles C. Horn. Escadas.

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