Office in a Small City por Edward Hopper

O fim (e seu avesso)

Sentia que estava, entre outras hesitações e entusiasmos, perdendo o juízo. Isso passa com um arrepio.

Muitas vezes pensamos que tudo está sob controle. Que estamos a salvo e imunes. Só então é que as coisas de fato acontecem.

De uma senhora impecável – a maneira de trajar-se, digo – cujos aromas indefinidos ficaram impregnados em meu colarinho por vinte e quatro horas, recebi o cheque que haveria de garantir-me os próximos três meses. Houve aplausos e fotógrafos. Houve discursos aos quais não consegui prestar muita atenção. Por último, o orador que presidia a cerimônia afirmou que, “no âmbito dos sublimes ideais da arte”, o cheque era apenas uma compensação de valor simbólico. Eu estava constrangido e feliz. O aplauso, a recompensa. Que maravilha o reconhecimento da arte! O cheque me sustentaria por três meses.

Subi ao quarto, trancafiei-me lá dentro. Deitei-me tão depressa que dei com a cabeça no encosto da cama, algo que eu sempre tivera o cuidado de evitar, devido à estreiteza dos espaços. Pois sim, como se observa, certos gestos nossos invalidam os anteriores: o fato de batermos desta vez com a cabeça no encosto da cama anula todas as outras vezes em que vínhamos tentando evitá-lo. Na vida, muita coisa é assim. Os crimes, por exemplo.

Na cama, beijei o cheque, de “valor simbólico”, como há pouco observava o ilustre orador, para evitar dizer-se diabólico, isso sim seria uma apelação literária de mau gosto – podendo ser, tanto quanto possível, aconselha-se que se a evite, salvo desta vez, vá lá, que estou feliz. Eu fixava o tal cheque, não conseguia despregar os olhos do valor. A data. O extenso. (Reli algumas vezes o valor por extenso, com ênfase teatral.) Planejei inclusive guardar-lhe uma fotocópia para o caso de… Bem, com o auxílio da clara consciência e a graça providencial com que sempre me vale a razão, entendi que já era hora de deter-me. Sentia que estava, entre outras hesitações e entusiasmos, perdendo o juízo.

Isso passa com um arrepio. Depois, entre uma risadinha triste e algum sinal sutil de desânimo, como se, apesar de tudo, nada prestasse.

Eu atravessava um dos períodos menos invejáveis de minha condição financeira. E três meses, pelas contas que estivera fazendo durante a solenidade, seriam suficientes para que encontrasse outra saída. Eu nunca fazia planos a longo prazo, porque não sabia quanto tempo iria viver. Apenas os limitava, aos meus pequenos projetos, a uns próximos anos, contando com a sorte (e não com a morte), até considerar tudo de novo. De qualquer forma, sentia-me tão eufórico que enfiei no toca-discos a Grande missa em dó menor, de Mozart, minha predileta. Logo no início da primeira faixa, bateram à porta com certa impaciência. Não me havia ocorrido que era tão tarde. O casal que alugava o quarto ao lado, ambos de pijama, sorrisos idênticos. “Boa noite. Ouvimos sua música. Nós também somos crentes.”

A seta de Verena – Guia de leitura

4. Duas linhas, literalmente – sequência

A seta de Verena. Abertura 2 – anterior

Sobre o livro

Imagem: Karl Kasten. Marés do tempo. 1954.

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