Office in a Small City por Edward Hopper

Bom dia, ontem

Mas o tempo passa, as coisas passam, e as pessoas deixam de existir.
A vida ocorre somente neste momento em que escrevo e conto.

Quando se olha por uma janela e se observa o mesmo panorama, com os mesmos recortes de telhados, através dos mesmos vidros, por entre a mesma moldura, tanto no dia de ontem como no dia de hoje, o pensamento alonga-se como se espreguiçando, que as coisas todas parecem não passar nunca, e a nossa janela e os nossos dias estão sempre aí, ao alcance dos olhos. É um dia canadense, de nuvens. Um domingo de nuvens. Canadense, como digo a ela, brincando. Mas ela ainda não acordou. Só eu fui à janela. Sou só eu quem vem até a janela. Tudo acontece agora.

Mas o tempo passa, as coisas passam, e as pessoas deixam de existir. Muitas vezes, antes das coisas. A vida ocorre somente neste momento em que escrevo e conto. Não existe vida no passado, como sabemos. E não há nada real no futuro, pois o futuro só pode ser imaginado. A vida só se encontra no presente, como eu sempre soube, que é quando – e onde, por que não? – qualquer coisa em minha vida pode acontecer.

É inútil que eu tente encontrar aquele menino que eu fui um dia – outra imagem de fotografias domésticas, rosto contraído pela timidez ou por uma estranha ansiedade – porque aquele menino, naturalmente, não existe. Porque aquele menino sou eu, agora. É claro. Aquela timidez não existe mais, não aquela, hoje diluída no passado, junto com o menino e com seu rosto ansioso, quase em pânico. Nunca ninguém encontrará esse menino. Em parte alguma. Fico olhando quieto a manhã de nuvens. Isso não me entristece. Isso é justamente o que torna meu presente tão valioso e tenso. As nuvens, que nunca são as mesmas. Os mortos, que não existem. O menino que desapareceu para sempre.

Mas se não é o cartão-postal urbano o que vai sutilmente se alterando, somos nós e os nossos olhos o que vai se dispersando. Não tanto a maneira de ver, mas porque o tempo não pode ser detido. E nós o carregamos como um vírus, contra o qual não existem vacinas, e ainda bem. Eu e minha namorada somos jovens e nos procuramos como se fôssemos sempre depender do mesmo gênero de necessidades e carências, enquanto trocamos a nossa imagem e a oferecemos um ao outro, como num espelho recíproco de nós mesmos e de nossa nítida juventude, pois quase nunca nos lembramos, e ainda bem também, de que nenhum espelho nos repetirá em outro tempo.

Volto à cama, fico sentado por uns minutos. De lá, ainda observo o dia por entre os vidros, preguiçosamente. Torno a me deitar da mesma maneira como estava, agora meio erguido sobre um cotovelo. Mônica dorme de lado, voltada à parede, e sua respiração dá sinais de alguma alternância sutil, própria dos que quase despertam, quando lhe faço um carinho percorrendo com a mão direita a lateral de suas costas, a cintura e o flanco de curva suave. Imagino, por um momento, que ela esteja usando um bracelete em um dos pulsos, tal a maneira como me ponho a admirá-la com carinho desta vez. Ela se vira lentamente, aconchega a cabeça em meu peito, dando os cabelos em desordem ao afago da mão que a mantém sob carícias e que dela absorve, por sua vez, o calmo prazer de acariciá-la. Sem abrir os olhos, pergunta-me, num murmúrio confuso, como está o tempo horas seriam ou eram lá fora frio pouco já muito tarde ou não… “O dia abriu com uma chuva fina e muito mansa”, conto-lhe, bem perto de seu ouvido. “Como aquelas que nos molhavam na infância, quando atravessávamos trilhas no bosque de árvores claras. Lá onde as fontes entre os degraus de pedra, esverdeados pelo passado, nos faziam pensar em música. E nos moviam a repetir cantigas de memória e esquecimento. O ar agora está úmido, livre de impurezas, e nos convida a inspirá-lo profundamente. Depois veio um sol pálido mas agradável, como nos lembrando de que a vida nunca termina…”, minto. A respiração dela, soprando sobre meu pescoço, volta ao ritmo anterior, perdendo-se no fundo de seu sonho. Mônica, outra vez adormecida. Nós dois suspensos entre o que possa estar acontecendo de bom ou de ruim por qualquer parte. Ruim, de ruínas. Por qualquer parte, apenas sendo. Entorpecidos por uma extrema calma, somente enriquecida pelos mais recentes sinais da natureza, no único tempo que existe: nossa manhã entre cartas de nuvens, que são, para nós, as primeiras notícias do dia.

Levantei-me, lavei o rosto. Vesti uma camisa que não abotoei. Mônica havia se sentado na cama, perguntava aonde eu ia. Não ia a parte alguma, apenas sentia frio. Disse a ela que não tinha absolutamente nada para fazer nesse dia, nem no dia seguinte, mas que, na segunda-feira, sem falta, teria de voltar à editora. Vida dura, amigo.

A seta de Verena – Guia de leitura

11. Noções de origem – sequência

9. Dilemas inofensivos, obsessões horrendas – anterior

Sobre o livro

Leia mais histórias de manhãs incertas: Sua canção de enganar

Vanda pela manhã

Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. A cama. 1898.

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Comentários

9 respostas para “Bom dia, ontem”

  1. Avatar de Eduardo Pinheiro Santana
    Eduardo Pinheiro Santana

    eu publiquei no face o seguinte comentario: ‘olha a imagem-texto que vc construiu…..’..Acordei em agonia, taquicardíaco. Isso é que é pesadelo. Não parece, para quem espera imagens e sugestões mais tenebrosas. Mas é, sim, garanto que é. Um dos piores. É claro que melhorei as palavras, as falas, em função do registro. Mas, em essência, foi mais ou menos isso o que sucedeu. Bem aqui, sobre o tecido amarrotado de meu travesseiro….’ fantástico se foi intencional ou não…não importa foi sensacional…

    1. Avatar de Perce Polegatto
      Perce Polegatto

      Caro Eduardo, muito obrigado pelos comentários. É uma honra ouvir essas palavras de um leitor atento, inteligente, capaz de tais análises. Isso é realmente muito gratificante.

  2. Avatar de Eduardo Pinheiro Santana
    Eduardo Pinheiro Santana

    ja pontuei no seu face o tanto que sua obra é fantástica né Perce Polegatto….vc devia ta na ABL e não Paulo Coelho…..

  3. Avatar de Nora Selma B. Macedo
    Nora Selma B. Macedo

    Acessar sublimes, profundas e atemporais percepções que permeiam momentos “tão comuns” em nossas vidas, com beleza, elegância, sensibilidade, precisão, é mesmo coisa de MESTRE!!!!!!
    Parabens!!!!!
    Bjão

  4. Avatar de Lipi

    O passado às vezes parece tão distante, mas em alguns momentos o vivenciamos novamente em nossas mentes como se fosse hoje, pena que o sonho acaba rápido, e a vida nos joga para a próxima fase onde precisamos aprender com novas mudanças e a lidar com novas situações e percebemos que sempre temos mais para aprender.

    Abraço Perce e parabéns.

  5. Avatar de Ary Txay

    É bom reler textos de Perce – como este que já li em SETA DE VERENA. Não sei se Perce ficaria alegre ou triste se afirmasse: graças a deus você não seguiu os passos de Paulo Coelho, atrás de um filão de ouro. Ler e fruir Perce requer gosto pela estética e pela filosofia. Pena que isso no Brasil não resulte em alternativa de sobrevivência econômica.
    Enfim, vale a pena ser criativo e sábio…
    Aleluia!

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro Ary
      Fico feliz sim, sem nenhuma dúvida, sem nenhuma hesitação. Não gostaria jamais de ser como um Paulo Coelho, ou seus similares da autoajuda, e tratar as pessoas como crianças. Não estou em busca de espadas mágicas nem de cordeiros místicos. Minha opção é por não subestimar a inteligência das pessoas, principalmente dos jovens. É uma esperança que tenho: a de que as pessoas crescem, pensam, evoluem.
      Grande abraço.

  6. Avatar de

    As relações entre o pensar, o sentir e o encontrar-se entre os personagens é sempre muito complexo no seu texto, e merece ser lido mais. Não é para quem gosta de leitura fácil e romances com histórias corridas apenas. Abraço

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