Office in a Small City por Edward Hopper

O capitão na corte dos cadáveres

Meu silêncio é rígido, impassível, eis o que revelo.
Mas um leão espreita em minhas entranhas.
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Ismael Nery. Autorretrato. 1922Respiro, ao entrar, o silêncio hostil desses que me aguardam na sala do general. Caminho com segurança, mas sem presunção. Sei que, deste último confronto, dependem minha vida e minha morte. O que tenho feito nos últimos meses, cada lance como sobre um vasto tabuleiro de xadrez, desde as ações de bravura até meus romances clandestinos, imperfeitos e obscenos, tudo me conduziu, ao que parece, a este momento cabal e inevitável, o que provo hoje. Há olhares e silêncios. E tudo se parece com meu fim.

“Aproxime-se.”

Ponho-me diante das longas mesas que parecem fechar-se (a metade de um hexágono) simetricamente ao meu redor. Mantenho também meu duro silêncio, forçando-os à primeira palavra. Calmo, quem diria, apesar de meu ódio. Lúcido, vejo-os a todos com espantosa racionalidade e frieza. Perpassa-me a espinha um renovado alívio por defrontar-me com meus perseguidores, com isso pondo fim à ridícula agonia que vinha consumindo minhas noites de pedra e pesadelo, numa cela provisória. Permitiram, vale lembrar, que eu me apresentasse fardado – uma gentileza, eu diria, parte do código de honra entre os menos grosseiros de minha estirpe. A farda inspira-me autoconfiança, embora não ostente, à altura do peito, as medalhas que colecionei em minha – hoje sei – breve carreira. Aqui estou, fatalmente. Meu silêncio é rígido, impassível, eis o que revelo. Mas um leão espreita em minhas entranhas.

“Creio que o senhor já nos conhece a todos, capitão”, diz o general Machado.

“Creio que sim. Nunca o suficiente.”

Outro grave silêncio atravessa-nos reciprocamente.

“Aliás, uma corte notável”, atrevo-me a dizer. “O senhor general…” Corro os olhos pelas mesas. “Major Azevedo, meu primeiro comandante de pelotão. Senhores coronéis… Sim, estão todos aqui.” Detenho-me por um momento no belo rosto dessa que hoje me inspira repugnância. “Sargento Bia…” Meu ex-instrutor, por quem misteriosamente ainda reconheço algum respeito. “Tenente Conrado…” Por fim, o execrável informante, de olhos miúdos e estatura suficientemente baixa que o faça passar por mascote dos inquisidores, diante do qual me custa conter uma risada maliciosa de superioridade. “O diabo nos carregue! Até os traidores.”

O sargento Medrado agita-se na cadeira, tem olhos de fuzilar-me o quanto antes. O general interfere.

“Dispensamos seu sarcasmo, senhor capitão.” E ao tratar-me assim, por senhor e por minha patente, exercia ele, por sua vez, algum incontido sarcasmo. “Sua situação, como é sabido, não lhe dá motivos para repentes de humor.”

“Ao contrário. Excita-me constatar que não têm poder sobre o que penso.”

“Basta! Só lhe é concedido responder. Sabe por que está aqui, suponho.”

“Certamente.”

“E compreende que dificilmente se livrará da pena capital.”

“Dificilmente.”

Lanço outro olhar furtivo ao sargento Bia, cujos seios foram o que de mais belo vi e toquei entre a miséria dos últimos conflitos. Uma nudez de calor homogêneo que me alimentara o espírito, de reprimida alegria, e me havia devolvido por certo tempo um surdo desejo de continuar vivendo. Nunca pensei que pudesse odiar assim uma mulher. Sua expressão hoje parece querer dizer-me algo (um tremor de remorso, um pedido de perdão?), o que, a meu ver, não significa mais nada.

“Capitão, diga-nos claramente. O senhor acredita em nossa causa?”

“Não. Não mais.”

“O senhor acredita em Deus?”

“É claro que não.”

“No futuro de nossa pátria…”

“Desculpe, o senhor sabe a resposta.”

“Responda!”

“Não.”

“O que pensa da morte?”

“Não penso nada.”

O tenente Conrado, meu ex-instrutor, é também um homem culto e interessado em literatura de qualidade, no plano mais sofisticado e adulto dessa arte, cuja fronteira, além de inacessível à miopia dos místicos, os medíocres não cruzam. Dividíamos anedotas históricas e de caserna, estratégias bélicas de avanço e resguardo, que não raro transpúnhamos a uma de nossas primeiras paixões, o xadrez. Ocorre-me que ele apreciaria compartilhar o que me assalta, uma vaga alusão a Giordano Bruno, que mais inspirava temor a seus juízes do que o contrário. Condenado às chamas da Santa Inquisição, após um julgamento que durou sete anos e só terminou em 1600, Bruno recusou, no último instante, a cruz que um idiota qualquer lhe havia oferecido. Conrado, que sempre elogiou minha habilidade em desvencilhar-me de suas intrincadas armadilhas sobre o tabuleiro, agora emudece frente ao meu erro bárbaro e fatal: ter confiado em um ser humano. Assim, todas as jogadas seguintes convergiram a este desfecho, esta cilada, este centro. O tenente Conrado, se é que ainda posso avaliar alguém pela expressão dos olhos, não esconde um resquício de solidariedade. Mas está entre eles.

“Lamento que tenha se perdido por uma causa tão estranha”, diz o major Azevedo com antipatia.

Sem que o saibam, tenho em mãos o que pode arruiná-los, aniquilar-nos a todos. Não uma granada. Não uma bomba. Uma palavra.

“A vida é uma causa perdida, major. O senhor bem sabe. Os vitoriosos também passam, trata-se de uma questão de tempo. Os vencedores. Os perdedores. Os falsos patriotas…”

“Basta!”, bradou o velho general.

Ordena que eu me aproxime ainda mais. Obedeço à sua voz desagradável, um passo em direção à mesa principal. Trago na saliva, no ranger dos dentes, a notícia que nos destruirá. A palavra. A frase. A princípio, não acreditarão – o que não modifica nada. Pois trago-lhes a notícia, a peste. A ruína.

“Quer dizer algo antes de prosseguirmos?”

O sangue aflora-me à garganta. Uma borboleta negra debate-se em minha boca. Meus lábios se movem, buscando o detonar das primeiras sílabas.

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(Acho que o Raposo não vai entender isso. Reclamará algo mais conclusivo, talvez. Posso desenvolver uma historinha de guerra ou ao menos prometer-lhe isso. Ele vai vibrar.)

A seta de Verena – Guia de leitura

24. Um último projeto em ruínas – sequência

22. Borboletas com relógio ao fundo – anterior

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Imagem: Ismael Nery. Toureiro (Autorretrato). 1922.

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Comentários

Uma resposta para “O capitão na corte dos cadáveres”

  1. Avatar de Cleber

    “… a notícia que nos destruirá. A palavra. A frase. A princípio, não acreditarão – o que não modifica nada. Pois trago-lhes a notícia, a peste. A ruína.
    … Uma borboleta negra debate-se em minha boca. Meus lábios movem-se buscando o detonar das primeiras sílabas.”

    Perfeito, as figuras de linguagem e tudo mais, o efeito de cada palavra sem exagero, nem criar uma cena em vão. Eu já li antes. Me faz pensar em como temos que ver de verdade a “notícia”.. a verdade, etc.
    Abraço, Cleber

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