Office in a Small City por Edward Hopper

Nas escadas, mas não muito

Tente rastrear o rumo de seu grito.
O preço de não pensar pode ser alto demais.


“Ora, Júlio, você é livre. Livre para tudo. Pois não vai o tempo dissolvê-lo como a todos, não é esse o jogo do futuro? Do que então podem ameaçá-lo?”

“Não sei, Pablo. Ainda falta algo. Não compreendo. Ainda não. O que acha, Cândido?”

“Vendo você aí, sentado nos degraus da escada, como se tudo estivesse bem, como se sua tranquilidade não servisse a disfarçar graves turbulências, eu diria que devesse apenas prosseguir com calma.”

“Com calma. O que isso quer dizer?”

“Envolver-se com o trabalho, sem ficar imaginando coisas. Ficar com essa moça mesmo. Afinal, não se pode encontrar alguém na justa medida para nossas arbitrariedades.”

“Que conselhos são esses? Então você se entrega a sonhos tão pobres? Isso é como não ter sangue. Não desista, Júlio. Tente rastrear o rumo de seu grito. O preço de não pensar pode ser alto demais.”

“Tem razão, Pablo. Mas não é bom estar sempre pensando em tudo. Chego a sentir inveja de Vanda.”

“Deixe disso, ela não pode ser diferente. Não é uma questão de escolha. É da natureza dela.”

“Ora, você também é livre para pensar em tudo. Por que não se atirar sem medo numa aventura dessas? Se há pouco a ganhar, também não haverá muito a perder.”

“Vou pensar nisso, Pablo. Vou mesmo.”

“Pois quanto maior…”

“Maior a queda. Isso de invejar o último mendigo só por não ser você, ora, quem precisa recorrer a tais exageros poéticos?”

“Aí está o seu problema, Júlio. Você é incapaz de um pensamento próprio. Tudo o que lhe ocorre vem de outra parte, outros pensantes e suas leituras. Eles lhe propuseram algumas questões, que você acredita suas, e agora não tem mais forças para livrar-se delas.”

“E o que há de errado nisso? Pois não é o próprio pensamento um atavismo? E não são as questões todas repensadas desde o primeiro pensador até um futuro inconcebível? Não se importe com isso, Júlio.”

“Bem, pelo menos estou livre de obrigações do tipo estar na moda…”

“E acha que isso é uma grande vantagem?”

“Claro, por que não? Liberdade. Para mim, sempre em jogo.”

“Não foi você mesmo quem disse que após todas as tribulações deste mundo, reduzido a uma colher de cinzas… Você fala como se tivesse alguma importância em si mesmo. Não há mais tempo para mesquinhas lamentações pessoais.”

“Está certo, Cândido, não sou tão mesquinho. Apenas sinto que estou me perdendo das coisas. Que estou deixando de pertencer cada vez mais ao que quer que seja. Supondo que tenha pertencido alguma vez.”

“Pertencer, curiosa palavra. Ao que você pertence de fato, Júlio? A um partido? A um clube? Uma religião? Uma associação de bairro? Mas não é possível escapar de tudo. Querendo ou não, você tem uma língua, por exemplo, e isso o classifica. Mesmo assim, a essa altura de seu labirinto…”

“No fundo sinto que acredito em algo, mas não me é possível definir isso.”

“No quê? No que você acredita, Júlio? Deuses? Um deus?”

“Nada parecido.”

“Eternidade, dimensões desconhecidas mas acessíveis…”

“Nada que não seja apenas verdade.”

“O que é então? Faça um esforço.”

“Algo que transcenda minha morte, mas que não seja eu. A organização da matéria, onde há vida, busca aperfeiçoar-se, tornar-se complexa, alcançar a consciência e o conhecimento. Sinto que o homem é o produto da natureza sobre si mesma. E a consciência, a ferramenta com que o universo procura interpretar-se. Por que esse silêncio?”

“Nada garante que as coisas caminhem para um aperfeiçoamento. Nada indica que a vida seja propensa a evoluir para a consciência. Lembre-se, não era assim até bem pouco tempo atrás. Pode ser tudo um grande acaso fora de controle. Ninguém sabe.”

“É melhor não levar tudo tão a sério, Júlio. Isso vai acabar por roer-lhe a alma, carcomer-lhe o cérebro, moer-lhe o juízo. O que vale a pena?”

Roer a alma. Moer o juízo. Acha então, Cândido, que eu me aproveitaria de expressões tão estranhas quanto essas?”

“Quem sabe? Já reparou como os dias são longos?”

“Agora temos que ir. Vamos continuar outro dia, está bem?”

“Qualquer outro dia. Mais do que isso pode acabar nos fazendo a todos aborrecidos. Pois, afinal, o que vale a pena?”

“Sim, o que vale a pena?”

“Até mais ver, Júlio.”

“Até mais.”

“Lá se vai, outra vez. Acha que ele ainda consegue?”

“Não sei. Lá vai ele outra vez. Adeus, Júlio Dias. A todos os seus dias.”

“Adeus, Júlio Dias. Até um dia ou… Não, não é assim. Ficaremos aqui, nas escadas. Mas não muito.”

“Sim. Os mortos não voltam jamais.”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

65. A menos que se instalassem dois sóis – sequência

63. Voyager 2 – anterior

Imagem: Rembrandt van Rijn. Filósofo meditando (detalhe). 1632.

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Comentários

2 respostas para “Nas escadas, mas não muito”

  1. Avatar de Mateus Carvalho
    Mateus Carvalho

    Pensamentos reflexivos para nosso dia a dia, como sempre, de ótima escolha de vocabulários… perfeito, Perce… Grande abraço.

  2. Avatar de Geovane Monteiro
    Geovane Monteiro

    De um lado o imediatismo, de outro a previsão sem sincera cautela: tudo feito do mesmo aço….
    Passando aqui, e a leitura me foi agradável porque filosófica, Perce.
    Abraços do amigo Geovane Monteiro

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