Office in a Small City por Edward Hopper

Você me acha cruel?

Solidário outra vez, com remorsos. Sempre me condeno por isso. Tenho recaídas.
Sinto-me culpado pelo sofrimento alheio, mesmo sabendo que os principais responsáveis são Deus e os políticos.

Vina demorou-se no banho. Chamou-me pelo vão da porta.

“Não posso vestir a mesma roupa. Me arranja uma camiseta, uma bermuda.”

Trouxe-lhe uma camiseta. Bermuda. Cueca.

“Não vou usar isso.”

“Por que não?”

“Mal conheço você, não sei por onde anda. Se estiver com alguma doença?”

Enquanto coisas assim – imprevisíveis e aparentemente impossíveis há apenas algumas horas – vão acontecendo bem à minha frente, em meio ao frenesi das rotinas e minando a ilusória solidez das agendas, eu sempre digo a mim mesmo que ainda vou me arrepender desse dia. Na verdade, eu me arrependo de quase tudo o que faço.

Ela saiu cheirando a meu sabonete, meu desodorante, minha loção pós-barba. Vestiu a camiseta, mas fez da toalha uma saia justa, felpuda e úmida. Devolveu-me a bermuda.

“Não gostei, fiquei ridícula. Tem outra coisa aí?”

“Tem, no armário. Só que você não vai achar nada melhor, pelo jeito. Não tenho gosto para roupas.”

“Isso já percebi. Sou poeta. Vejo longe.”

“Já jantou?”

Ela parou tudo. Parou tudo o que estava fazendo. Olhou-me de onde estava, à porta do quarto, faiscando de ansiedade.

“Não… Por quê? Você já?”

Com o pouco que tinha, improvisei sanduíches. Ela mastigava com afinco, toda dentes. Eu a olhava sem que ela me percebesse, com certo dó. Solidário outra vez, com remorsos. Sempre me condeno por isso. Tenho recaídas. Sinto-me culpado pelo sofrimento alheio, mesmo sabendo que os principais responsáveis são Deus e os políticos. Preocupo-me até mesmo com a proliferação da miséria, coisa que nem aos congressistas incomoda. Procuro esquecer, esqueço. Enquanto isso, temos de encontrar um jeito de nos ajudarmos, estamos todos nos arrebentando. Deveríamos aprender a lutar.

“Vendeu muitos livros hoje?”

“Poucos”, dedo na boca, limpando o ketchup.

“Está escrevendo outro?”

“Tenho muitos outros. Mas só editei esse.”

“Quer um cigarro?”

“Não fumo. Sou abstêmia. Tá rindo do quê?”

Vina era interiorana, fugida de casa. Acreditava que a poesia era seu destino, viera vender seus livros, divulgar sua mensagem, conquistar a cidade grande. Habitava um pensionato de mulheres, devia três meses da mensalidade.

“Que que aconteceu com o seu passaporte italiano?”

“Não o consegui ainda. Eles querem a certidão de nascimento do meu bisavô, mas eu não sei onde pode estar uma coisa dessas, que eu saiba, extraviada há milênios.”

“Como sabe disso?”

“Devia estar arquivada no porão de alguma paróquia em sua aldeia natal, no norte do país. Nem a aldeia sei se existe, que a região foi duramente bombardeada durante a Segunda Guerra. Eles pensam que podem conservar papéis velhos entre ruínas de guerra, esses europeus não têm juízo, são todos uns perdidos.”

“Do norte, é?”, fez ela meio ruminando, meio falando, como se pensasse: e daí se tivessem vindo do sul?

“É, eles vieram famintos, topando qualquer negócio, você sabe. Agora eu é que estou querendo sumir daqui. Mas esquece isso. Você deve estar cansada.”

“Verdade. Andei muito hoje. Vim a pé, lá do centro.”

A pé?!”

“Não acredita em mim, não é?”

“Acredito. Acredito sim. É muito possível que tenha vindo a pé, do centro. Só acho que a doença do seu marido não é tão grave assim.”

“Ah, eu inventei essa história pra convencer os mais bobinhos, os mais idiotas, os… Ah, desculpa, não foi intenção. Desculpa mesmo. Você… você me acha cruel?”

Irrompi numa gargalhada imprevisível, irresistível. Cruel? Me acha cruel? Cresci e explodi como uma sinfonia em seu auge. Vina arregalou os olhos, assustada. Eu estava perdendo o fôlego, não parava de rir, coitadinha. Minha cabeça oscilava, para trás e para a frente, como se não tivesse para onde ir. Eu quase perdia o controle sobre minhas emoções. Cheguei a bater com a mão na mesa enquanto gargalhava. Sabia que podia ofendê-la com isso, mas o fato é que não conseguia parar de jeito nenhum.

“Meu Deus…”, ela murmurou.

Deus?”, eu gargalhava sem parar. “Que horror, menina…”

E acabei disfarçando lágrimas de algo que eu não sabia. Você me acha cruel? Não, não, essa não…

“Viu, está vendo só? Você já está de bom humor. Não estava assim quando eu cheguei. Nem na lanchonete. Minha companhia já está te fazendo um bem danado.”

Não resisti, admiti que sim, sem ironias. Ela não percebeu que eu estivera chorando.

“Ufa… Ai… Nossa…”, recuperando a respiração normal.

“E aí? Tudo bem? Se sentindo melhor?”

“Olha, Vina… Ai, meu pai… Nós nunca estamos melhores, entende? É que de vez em quando temos crises.”

“Como assim?”

“Não sei. Assim, assim. Então, quer beber alguma coisa?”

“Já disse que sou abstêmia. E isso parece conversa de televisão, novela. Você parece um cara inteligente.”

Inteligente, ela diz. Um cara inteligente. E para que serve isso, será que ela saberia me dizer? Grande consolo.

“Hoje em dia isso não faz diferença. Um café?”

Café. Ela também parecia melhor, descansada e alegre. O banho desfizera a maquiagem, tornara-lhe o rosto à verdadeira natureza. Agora, não podia ter mais do que dezoito anos. Como eu suspeitava (e ela, sendo poeta, também), a conversa conduziu a nossos rostos de frente, ao abraço esperado no centro da sala, no centro de tudo, há tanto tempo eu não abraçava alguém, a toalha caindo ao chão, o frescor da pele, a proximidade de seus olhos, sua boca – ela cheirava a meu creme dental, antes do café. O centro do rosto, o sorriso. Lábios, dentes e língua. O centro da casa, a cama. Os pés, o pescoço. Tornozelos, ombros. Pernas, os seios. Coxas, cintura e curvas. Nádegas, ventre e virilhas: o centro de Vina.

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

13. Os morcegos do dia – sequência

11. Esperança, mas que dramalhão! – anterior

Imagem: Edgar Degas. Depois do banho. 1895.

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