Office in a Small City por Edward Hopper

Vina, a quase viúva

Ela era jovem e bonita. Cabelos lisos, castanhos.
A maquiagem muito leve disfarçava-lhe as olheiras, o cansaço, o ar abatido de viúva.

DEMITIDO PORTA-VOZ DO GOVERNO

Acertei mais uma. Canto a notícia a meus botões antes que ela amadureça, despenque nas bancas, apodreça. Deveria usar isso de alguma forma prática. Tenho um certo faro para as pequenas mudanças, as artimanhas políticas, as tendências, os… Ah! Grande consolo.

Entrei na lanchonete Mangueira, dei com uma mala preta, bojuda. Só de olhar para ela, sentia-se seu peso. Olhar para ela parecia torná-la mais pesada. Uma garota e uma pilha de livros na primeira mesa. Um freguês se despedia dela, exemplar na mão.

“Posso falar com você?”

Claro que eu não podia comprar nada por aqueles dias, imagine-se livros.

“Estou fazendo uma campanha. Meu marido é poeta. Ele está muito doente. Desempregado. Ele pode morrer se não continuar seu tratamento, que é muito caro. Nosso dinheiro acabou. A família tem ajudado, mas as drogas são importadas…”

Contou-me o caso. Medula. Sistema nervoso, vírus. Definhando, quarenta quilos, pele e osso. Mantido pelas drogas. Pagou uma nota pela edição do livro, caiu doente, precisava ao menos recuperar alguma coisa. Pediu que eu abrisse um exemplar, conhecesse sua obra, folheasse os poemas.

“São poemas?”

“É. São. Ele é poeta.”

Não tive sorte. Cada página aberta ao acaso dava-me um texto espichado, mais vertical do que horizontal, inflado de palavras corriqueiras. Rarefeito, etéreo. Sem malícia, sem beleza, sem ênfase, fácil de esquecer. Flup. Outro. Flupt. Mais um. Queria crer que a encadernação estivesse viciada.

“Coitado”, disse eu.

“O médico informou que ele pode viver muito ainda, se continuar seu tratamento. E escrever muito ainda.”

Viver muito. Escrever muito. Grande consolo. Mesmo assim, tentei ser simpático.

“Olha, moça, vou ficar lhe devendo essa, sabe? Espero que você consiga vender o bastante e… Boa sorte.”

Fui ao balcão, pedi uma vitamina, o que geralmente era o meu almoço. A lanchonete Mangueira encontrava-se vazia, como sempre. A garota dos livros aproveitou a calmaria para abordar-me outra vez. Ancorou ao meu lado.

“Aceito cheque pra dez dias.”

“…”

“Quinze.”

“Me desculpe, olha… Eu nem tenho conta bancária, não uso cheques.”

“Vinte por cento, cai a preço de custo. Ah, por favor…”, choramingou. “Pense num homem desempregado, doente…”

Eu não deixara de pensar nele desde que soubera de sua existência, um minuto atrás. Via um rapaz magro e amarelo, de cama, inventando esperanças. Não sabia o que dizer. Tinha o dinheiro contado para a semana, não podia cair nessa, deixar-me influenciar. E não tinha a menor vontade de ler aquele livro.

“Metade do preço!”, avisou. “Menos que isso, não posso.”

Ela era jovem e bonita. Cabelos lisos, castanhos. Não podia ter mais que uns vinte um, vinte e três anos. Mascateando livros, que situação! Vida dura, marido doente, desempregado, poeta. A maquiagem muito leve disfarçava-lhe as olheiras, o cansaço, o ar abatido de viúva. Antes que eu lhe respondesse, entrou na lanchonete um rapaz de camisa estampada, cabelos aparados, curtinhos, e passou a folhear os livros que ela havia deixado sobre a primeira mesa, circunspecto. Ela voltou à carga, vendeu-lhe facilmente um exemplar. Ficaram conversando – infelizmente, eu ouvia tudo. O rapaz disse que o mundo precisava de poesia, mas muita poesia. Ela concordou, claro. Ele disse que os poetas eram espíritos de luz, e ela concordou de novo. Ele tinha um primo poeta, que havia escrito mais de mil poemas, mas que, desgraçadamente, desencarnara num acidente de moto. Por fim ele saiu, sumiu de vista, levando seu exemplar. Ela contou rápido o dinheiro, dobrou as cédulas, enfiou-as no bolso da bunda.

Quando passei por ela, fui abordado outra vez.

“Posso falar com você mais tarde?”

“O quê? Mais tarde? Olha, dona… Digo… Tenho tido uns dias muito difíceis e… Eu estou numa fase em que… Eu entendo a sua situação e… e… Boa sorte.”

“Não, não. Eu não quero falar nisso. Quero falar de outra coisa. De poesia.”

Poesia, foi o que ela disse. Onde vamos parar?

“Dona… Moça, olha só, vou ser sincero. Eu não entendo nada de poesia. Nem gosto de ler. Mal tenho tempo para mim, acredite. Espero, de coração, que o seu marido… Que tudo dê certo pra vocês e… Boa sorte.”

Eu não via a hora de sair dali. Ela devia ter aprendido poesia com o marido, que eu supunha ser de sua mesma idade ou perto disso. Via de novo o rapaz enfermo, macilento, tão jovem. Que peças a vida nos prega. Que triste destino. Que pobre casal sem sorte. E como são chatos os poetas jovens.

Fui embora dali, voltei ao trabalho, e meu dia foi aos poucos desaparecendo.

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

 11. Esperança, mas que dramalhão! – sequência

9. I Ching, estrelas, patrão – anterior

 Imagem: Edvard Munch. Vampira. 1894.

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