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Ana (meu caminho até ela)
E não há prazeres que sejam apenas físicos.
O que vejo são seus pés. Como ela, sinto-me vencido e deserto de movimentos. Mal posso desviar a cabeça, de olhos entregues à cor neutra do teto, quando muito a uma amostra incompleta de Ana, só o que me cabe no campo de visão: suas pernas, de alguma amorfa perspectiva, e os pés, o que vejo. A lassidão faz de Ana um corpo indolente ao meu lado, agora uma boneca exausta e como deixada ali, estirada de costas, respirando como eu o cansaço que nos resta. Também em sua pele nua, o mesmo brilho de suor dividido.
Recentes e quase palpáveis, as sensações de nosso embate silencioso, musicado pela ondulação de murmúrios incompreensíveis com que dois amantes claramente se comunicam.
Últimas estações do orgasmo. O epicentro do instante dilatado em que o tempo não resiste à própria dissolução, na impotência de relógios possíveis. O átimo de calor especial que precede infinitamente o clímax. Último impulso ainda reconhecido, antes que se deflagre a corrida vertiginosa e incontrolável para fora de tudo, para tão dentro.
Tomamo-nos de diversas maneiras, num rito prolongado de delícias, ainda que imprevisível como nenhum rito se concebe, e naturalmente, ou talvez não, desde o primeiro contato de nossos corpos, desde que nos despimos à margem do mundo.
Posso senti-la num primeiro abraço, o início da tarde. Ainda vestida em seu conjunto leve de verão, o tecido agradável permite-lhe o corpo convidativo ao toque, propenso ao tato dos gestos intencionais, prelúdio de prazer.
Vejo-a chegando, seu primeiro sorriso, seus olhos de encontro, à porta que lhe abro: meu sorriso simultâneo franqueia-lhe o visível de minha paixão, enriquecida de espera.
A espera se desfaz no pouco tempo que a separa de minha porta: Ana percorrendo, seus passos muito próximos, o pseudocorredor.
as costas de Ana em toda a sua extensão, desde onde os cabelos a delimitam junto à nuca até uns últimos músculos rígidos que não parecem anunciar a maciez das nádegas logo abaixo
Ela sobe o segundo lanço de escadas, que a traz até este andar, o primeiro. Aqui, de onde a escuto chegar, no apartamento ansioso de sua espera, a cama secreta.
à luz controlada pela discreta veneziana, que alude ao sol intenso do dia fora, a intumescência de um seio como feito para o molde de minha boca gosmenta
Desde que começa a subir, é como se já estivesse aqui, na realidade de sua presença. Ouço os primeiros degraus de madeira lá embaixo, seus passos simétricos revelando algum solado de couro, ritmos inconfundíveis de um calçado feminino. E esses solados de certa forma se entendem com a madeira melhor do que qualquer outro material associado aos pés de uma mulher.
as mãos não se completam na satisfação de uma ou outra porção de carne sob a palma e procuram de Ana o que sabem impossível: apalpá-la por inteiro o tempo todo e de uma só vez, eternamente e por um instante apenas, a consistência dos ombros, os braços, a suavidade contida pela firmeza dos quadris
Antes de ser transformada em som, som de escadas lentamente progressivo, som de Ana em si mesma, ela atravessa o jardim malcuidado e chega ao portão de entrada: com ela, o risco de nosso segredo.
mesmo as bocas úmidas e fartas de se provarem buscam alternativas para sua sede de pele, seu paladar de saliva, sua fome
Enquanto percorre a escada em frente, vinda do meio do quarteirão, alterna-se sol e sombra de árvores. Ana é as duas, a que reflete luz meridiana, a que foge à própria silhueta, deformada por focos que mal e mal atravessam as copas, filtrando-se entre raras concessões vegetais.
seus cabelos confundem-me os desejos, como se me tentassem a dominá-los, há também o pescoço e a linha do maxilar, não sei em que momento seguro seu tornozelo, como se a prendesse, com isso tornando-a mais livre
Ela ainda não surge de todo, mas sua imagem obstruída por uma árvore baixa e uma grade de canteiro já a revela na perspectiva das calçadas, por onde vem conforme a minha espera, peça da mesma aventura, a rua semideserta, o mormaço da hora.
Ana, nem o início nem o fim: todas as formas
De uma primeira visão, tiro apenas um fragmento que não a identifica, embora seja ela desde já: o que vejo são seus pés, Ana, que fazem seu caminho até mim.
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
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Imagem: Pierre Bonnard. Sesta. 1900.
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Comentários
7 respostas para “Ana (meu caminho até ela)”
Eu trocaria o nome por, Rozenilda. muito bacana este poema.
É que a narrativa transcorre em uma ordem cronológica invertida, do fim para o começo: primeiro, o descanso após o orgasmo; por último, a personagem surgindo lá embaixo, na perspectiva da calçada.
Por isso escolhi Ana, um nome que pode ser lido de trás para a frente sem se alterar.
Os trechos em destaque correspondem aos momentos especiais vividos pelos amantes, quando, aparentemente, o tempo se detém.
Abraços, me escreva sempre.
Acho que o lado selvagem do toque é uma parte da paixão, só que descontrolada. Uma singular parte do intocavél. Talvez por isso é tão procurada, temos essa tendência de procurar o que não temos ou apenas desejar o mesmo.
Mas venho pensando que o instinto primitivo nosso, do desejar, pode ser de dominar. Por outras vias, manter o outro por perto ou o sentimentos que ele nos move… por perto.
A Ana me faz acreditar que ela usa esse artifícil do charme pra se deixar dominar para dominar…
Não é assim que começa a tentativa do controle do amor do outro?Perce, você é uma filho da mãe, escreve divinamente. rsr
Um forte abraço, meu amigo.
Hecton.
A inspiração vem de onde menos imaginamos, mas certamente, com esse mundo cada vez mais apertado de tempo, totalmente controlador das nossas vidas, acabamos que, nem vemos que deixamos para trás coisas que gostávamos de fazer, seja escrever, ler um livro, ou dar uma volta à toa no parque. Não temos mais tempo para nós, e o pouco tempo diário que nos resta, acabamos dedicando a outra pessoa, ou outras coisas. Textos como esse, me fazem lembrar o quanto eu gosto de escrever, de acordar de madrugada em meio a um sonho louco e colocar tudo no papel, por isso, hoje e cada vez mais, preciso de inspiração externa, para lembrar de outrora.
Isso mesmo. Precisamos sempre de algo pra “linkar” esse “feeling” e começar a transcrever o que passa na mente. As vezes vem rápido, outra hora não.
Fala Mestre! Quanto tempo, tudo bom?
Nem preciso dizer que sou fã, mas esse seu texto inspirou-me a voltar a fazer aquilo que não faço há um tempo já. Escrever! Nem que sejam rascunhos indecifráveis, característicos da minha caligrafia.
Um abraço!Ps: Quando vamos marcar de tomar uma?
Arthur,
Eu tive essa mesma sensação. A inspiração vem mesmo de fora, as vezes. Ao menos comigo, preciso do gatilho externo pra começar as linhas.
Vou tentar voltar a fazer o mesmo.
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