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Pai a casa torna
Queria que todos os personagens se unissem num sonho, sorrindo para mim.
Olhe, olhe só para isto: as flores ainda estão aqui. Sei que não são as mesmas, mas são da mesma espécie. Os outros novos moradores as preservaram de alguma forma, olhe só. Ou foram replantadas mais tarde. Ou… Sei, sei, já vi o degrau. Eu o conheço muito bem. E não estou brincando, você sabe. Espere, espere um pouco, só um pouco, volte um passo. Isso. Agora veja. Olhe lá, naquele canto, bem ali. Sob o trincado do repuxo, ainda crescem fungos tal como eu os admirava em minha infância. Em minha infância… tudo era tão real!
Não precisa me amparar assim, estou bem, já disse, posso andar sozinho. Não disse? Ah, o que eu disse é que não estava brincando, sim, é verdade. Pode ficar por perto então. Prometo não cair em cima de você, fique tranquila, filha. Afinal, já basta que alguém não caia sobre si mesmo, não é? E não é pouco, entendeu? Você é jovem, não aceite que essas coisas todas caiam em cima de você. Entendeu?
Essa janela? Sei, é por ali que se entra. Isso foi reformado, estou vendo, não era assim antes. Você era muito pequena, não pode se lembrar. E eu era grande demais, por isso é que não consigo esquecer. Não, não é para rir, sério: eu era grande demais, e quem é assim não consegue esquecer. Espere, espere um pouco. Ah, sim, como eu me lembro: ela me abraçou entre a sala e o corredor, logo que soubemos da tragédia. Você sabe, nenhum de nós espera por isso. Mas é por isso que são tragédias. Coisas que não fazem parte de nossas expectativas naturais, e ainda bem. Claro, por que fariam? Quem poderia se orientar com tais possibilidades, não é? Quem poderia viver se soubesse que um dia…
O gato! O gato passava por aquele estreito, isso mesmo! Entre a cerca de madeira, o banco de pedra e a árvore, que naquele tempo era só um caniço começando a crescer. Não, não custava tão caro quanto hoje. Os terrenos eram menos disputados, havia menos pessoas no mundo. Os números todos mudaram. As cifras foram se agigantando com o tempo. E nós continuamos pequenos. Entende o que eu quero dizer?
Desta outra janela, está vendo? Olhe: daqui se pode ver perfeitamente a torre da catedral. É, eu brincava de ficar pensando em tudo enquanto olhava aquela cruz no topo. Eu era só um menino, imagine. Acreditava nas histórias mais lindas. Mas descobri, por acaso, que quando eu ficava olhando por muito tempo aquela mesma torre, meus olhos se nublavam. Alguma coisa turvava minha visão. Isso mesmo, enquanto olhava longamente aquela torre. E ela parecia não estar mais lá. Eu ficava muito intrigado com aquilo: de tanto olhar a igreja… ela desaparecia.
Ali ficava um baú de vime com minhas histórias em quadrinhos. Nos feriados, ficava lendo o dia todo e queria que aquilo não acabasse nunca. Queria que cada uma daquelas histórias fosse a minha vida. Queria que todos os personagens se unissem num sonho, sorrindo para mim. Ou brindássemos juntos em algum salão gigantesco. Todos, compreendeu? Os heróis e os vilões. Porque, afinal de contas, depois que tudo passa, os vilões deixam de ser tão ruins assim, entende? Porque a morte chega de qualquer maneira – as vítimas teriam sido apenas uma antecipação. Eu imaginava que um dia todos pudessem estar juntos em algum lugar, sabe? Em algum sonho. Imaginava que o Céu era o destino final de todos os que um dia viveram, que lá todos poderiam sorrir uns aos outros, porque todos já estariam mortos. Não haveria pelo que brigar, não é? Não haveria terras nem ouro nem fome nem sexo… Sei, já vi o degrau. Eu acreditava em histórias lindas.
Vamos em frente. O outro corredor, pode ser? Foi neste quarto, neste, e não em outro lugar, como você imagina, que ela me mostrou os seios pela primeira vez. Foi aqui, olhe, e não em outro lugar, como você uma vez pensou. Ah, mas ela era linda como um desenho. Linda como alguma coisa que um dia deixamos de fazer. Por isso é que continua em meus sonhos. E sua mãe nunca soube disso. Até aquele dia em que… Ora, por que não posso lhe contar agora? Não seria melhor para você? Não é melhor para você? Ou prefere nunca ficar sabendo das coisas? Eu, se pudesse, gostaria de saber tudo. Tudo. Desde a razão por que vim ao mundo até por que a Terra vai parar de girar um dia. Mas não há tempo para tanto. Com mais tempo, saberíamos tudo. Claro. Não é mesmo? Claro que sim.
Muito bem, admito. Estou mesmo cansado. Vamos nos sentar aqui mesmo, aqui está bom. Que calor, veja como estou suado. Eu não era assim. O calor será o mesmo? Como eu lhe disse, sobre a minha infância… Sobre a sua também, quero dizer. As infâncias, afinal. Tudo ali parecia interminável. Tanto que hoje continua acontecendo. Ter a idade que tenho hoje não muda nada. Mas como é possível que eu diga tal absurdo? Como não muda? Já reparou, filha, como usamos as palavras? Dizemos aqui e ali como se fossem lugares. Mas eu não estava pensando em lugares, não é? Falava de infâncias, falava de tempo. E dizemos de lá para cá, dizemos coisas assim: deixe isso para trás, pense no que vem pela frente. É que no fundo nós sempre desconfiamos que o tempo e o espaço eram a mesma coisa. Quem precisava de cientistas para nos dizer isso? Porque nós mesmos… Sei, não era isso que eu estava dizendo. Falava do calor. Olhe, continuo suando muito, que estranho. O mesmo mormaço trouxe a recorrente impressão de que a vida é uma passagem rápida demais. Uma passagem… Ou estágio? Ou jornada? O que você prefere? Não me importo. O problema não está nas palavras. O problema é ser rápida demais. Ora, por quê? Claro: a sensação física trouxe à memória a infância (fácil, não é?) e a certeza de que tudo se foi rápido demais. Um outro mormaço semelhante, anos à frente, trará por sua vez o que hoje eu percebo, sendo todos os mormaços nenhum. Ou um. Ou todos, sempre. Como quando tentava registrá-los enquanto cometia minha infância. Fácil. O sol, o calor e os sentimentos que me sobem pelo corpo contam a história estranha de um único momento em que estou vivo, em que estamos vivos. Tudo o que era se converte em luz e dias do presente. A manhã de um dia longo parece não ter sido o mesmo dia… Sei, tem razão, já me perdi. Admito. Não sei mais por onde ia. Nem parece a infância de uma mesma vida. Estou apenas tentando lhe contar esta história, na verdade nem sei como passei por ela. Estou apenas tentando lhe contar, filha. Tentando, ao menos… Esta história que é a minha e que… Não, não estou chorando. Não é nada, fique tranquila. Só queria lhe contar esta história, só isso. A história do dia em que eu fiquei sozinho.
Você quer ir? Já estou melhor. Podemos caminhar um pouco, aqui por perto, se quiser. Mas, antes, temos que passar por aquele portão, está vendo? Obrigado, já posso continuar. Obrigado, estou bem. Verdade. Sabe, filha, aproveitando que… Eu queria muito que você soubesse… Eu gostaria de lhe dizer, de verdade, com tudo que tenho hoje, com tudo que sei e tudo de quanto me lembro: eu não fui feliz aqui.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
3. Inconsistência dos retratos – anterior
5. Sete anos em Manhattan – posterior
Imagem: Vincent van Gogh. O jardim do poeta III. Jardim público com casal e abeto azul. 1888.
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