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De olhos claros e escuros
Ele parece estar detido em nós, como se nos impactasse com seu depoimento silencioso, como se fizesse nublar nossos próprios olhos.
Não há nada que se possa dizer sobre a obra de Rembrandt que não seja redundante e já conhecido. Por isso, vou me centrar em um aspecto que considero especial e instigante: uma série de irretocáveis autorretratos contando sua vida, sem o auxílio de palavras.
Autorretratos são comuns. Praticamente, todos os artistas os fazem. Alguns se colocam disfarçados numa tela, entre outras pessoas retratadas, ou incluem-se como personagens de algum momento histórico, ainda que alegórico, como Delacroix (abaixo, à direita), com uma arma na mão, no seu “A liberdade guiando o povo”, de 1830.
Os pesquisadores se dividem quando tratam da estranha necessidade de nossos ancestrais retratarem, nas paredes de cavernas, cenas de sua vida e de suas conquistas. Eles não poderiam estar pensando no homem futuro, pelo menos não conscientemente. As pinturas rupestres em Lascaux, na França, na Caverna de Altamira, na Espanha, ou na Serra da Capivara, no Brasil, estão entre as primeiras obras de arte conhecidas, datando do Paleolítico Superior, há mais de 30 mil anos. Mas por que os humanos querem contar sua história? Por que desejamos tanto nos expressar? Seja como for, com ou sem respostas, isso continua.
Rembrandt van Rijn viveu no período chamado Século de Ouro dos Países Baixos. Muito bonita a expressão. Solene e inspirando grandes apogeus de prosperidade. Sim, mas foi isso mesmo. (Só o que me parece contrastar com essas portentosas denominações é o fato de a vida continuar sendo algo parecido com o que sempre foi: instável, imprevisível, surpreendente.)
Nesse meio especialmente propício ao desenvolvimento das artes, Rembrandt cresceu, estudou e trabalhou. No decurso de sua carreira, ele pintou a si mesmo com certa periodicidade e assim nos legou uma sequência de admiráveis autorretratos. A vaidade? Sim, mas só no começo. Outros motivos, mais interessantes e profundos, parecem tê-lo motivado a isso posteriormente.
Nas telas acima, estamos claramente diante de um jovem vaidoso e até arrogante, dono de um talento excepcional, desde a excelência de seu traço até a precisa manipulação da luz e da sombra, típica do Barroco1. Óleos de claros e escuros. Olhos claros e escuros. Seus trajes e adereços revelam uma condição econômica privilegiada: de fato, ele era requisitado como retratista e muito bem pago por isso. Até o príncipe Hendrik lhe encomendava trabalhos.
Porém, nesse Autorretrato de chapéu, com os olhos arregalados, água-forte de 1630, ele nos revela seu lado bem-humorado e inovador, por retratar-se assim em uma época de muitos formalismos acadêmicos. O próprio nome da obra é de uma divertida irreverência.
Muito bem. A vida vai bem, tudo muito bem. O trabalho, a família… Ah, sim: aos 28 anos, ele se casou com sua sobrinha, Saskia (os parentes não compareceram à cerimônia), que passou a ser sua adorável companheira e, sem restrições quanto a usar aqui o clichê, o amor de sua vida. Além disso, era filha do prefeito – o termo específico para esse cargo era burgomestre. Muito bem. O jovem, famoso e bem-sucedido artista, e sua querida Saskia foram morar numa bela e ampla casa em Amsterdã, cuja hipoteca podia ser tranquilamente sustentada por suas telas sempre mais admiradas. Até aí, a vida desse casal não poderia ser melhor, só perdendo para algum conto de fadas. Então chegou o primeiro filho, celebrado e querido, que faleceu com apenas dois meses de idade.
Isso era comum na época. Os casais costumavam ter muitos filhos, pois as condições de saúde não eram propriamente as melhores, e não havia medicina bastante para garantir uma infância, uma adolescência, enfim, um crescimento imune a riscos de alguma doença, em boa parte dos casos, grave. O próprio Rembrandt era o nono filho de um próspero moleiro. (Lembrando também, apenas como curiosidade: ele é um raro caso em que o artista ficou conhecido por seu primeiro nome.2)
Mas a vida continua. E o casal se recuperou, dando à vida novas chances de se manifestar. Nos anos seguintes, tiveram outros filhos, que também não sobreviveram: duas meninas que eles puderam amar por apenas algumas semanas.
Mesmo assim, a luz da felicidade parecia estar voltando entre tais sombras: Titus, o quarto filho, viveu até a fase adulta, tornando-se um rapaz belo e saudável. Nesta pintura, à esquerda, ele serve de modelo para a figura de um monge.
Titus iria se tornar um grande amigo do pai, além de colaborador e, em outra fase, um agente comercial de suas obras. Mas isso também teve seu preço: um ano após o nascimento de Titus, foi Saskia quem morreu. Os esboços e desenhos de Rembrandt mostrando Saskia em seu leito de morte chegam a ser, de certa forma, comoventes.
Com o tempo, o artista passou a ostentar um estilo de vida que estava acima de suas reais condições econômicas. Despendia muito dinheiro com a aquisição de obras de arte e raridades, mantendo um padrão de gastos que não acompanhava proporcionalmente seus ganhos. Com isso, seguia no caminho de um declínio que o levou, por diversas vezes, bem próximo à falência. Mais tarde, para evitar isso, teve que se desfazer aos poucos de seu patrimônio, vendendo boa parte de suas próprias telas para saldar dívidas.
Não teve jeito. Foi preciso vender sua bela casa e mudar-se para uma propriedade bem mais modesta. Mesmo assim, um de seus credores, a associação conhecida como Guilda de Pintores de Amsterdã, fechou o cerco: Rembrandt estava agora proibido de trabalhar como pintor.
Obviamente, isso agravou os problemas, e Titus tentou comercializar os trabalhos do pai para contornar a situação que parecia irreversível, principalmente devida aos impedimentos promovidos pela Guilda, que não mais aceitava Rembrandt em seu meio.
Agora as telas o mostram com roupas de trabalho, em ambientes modestos. Os olhos são mais discretos, escurecidos, menos cintilantes. Não propriamente os olhos ou o rosto ou as rugas que se acrescentam: principalmente, seu olhar mudou. Ao longo de sua trajetória, olhando-nos de frente através de seus muitos autorretratos, quase nos faz acreditar que podemos conversar com ele, tal é a força, a um tempo delicada e intensa, com que ele se mostra, com que ele se conta.
Seu olhar não nos atravessa como parece ocorrer com alguns rostos de Modigliani. Ele parece estar detido em nós, como se nos impactasse com seu depoimento silencioso, como se fizesse nublar nossos próprios olhos.
Com as finanças arruinadas, a saúde fragilizada, sem trabalho, quase esquecido (mas nunca decadente, que sua mestria como artista permanecia intacta), Rembrandt sofreu ainda um devastador último golpe: aos 27 anos, Titus morreu.
No ano seguinte, Rembrandt também morreu. Foi sepultado em uma cova rasa e não identificada. Antes disso, ele já havia deixado um belo e trágico depoimento em imagens: verdadeiro, tocante e honesto, sem disfarces. Nas palavras de Walter Kaufmann:
A arte não é um espelho que mostra a realidade como ela é. A arte mostra-nos um mundo refletido por uma mente incomum que impõe um estilo no que retrata.
Por isso, sabemos que não se trata apenas de autorretratos. Cada rosto nos olha com o que poderia ser nossa própria visão, a visão intensa do artista determinado e sensível que deixou marcas de si mesmo. Como também, há milhares de anos, outros de seus semelhantes precisaram contar de suas vidas, nas rochas do Paleolítico. Como também eu precisei contar isto.
1 O Barroco foi marcado por contrastes. Luz e sombra intensas caracterizam as obras de muitos pintores desse período. Na literatura, os poetas se questionavam sobre o amor carnal e o espiritual, além de outros dilemas. A Idade Média havia terminado, e a modernidade trazia motivos para opor a razão à superstição. O homem barroco é um homem dividido.
2 Van Gogh assinava suas telas como Vincent porque as pessoas, na França, tinham dificuldade em pronunciar corretamente seu sobrenome.
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(O tema desenvolvido acima integra a palestra Veja de novo: relações entre textos visuais e narrativos, apresentada recentemente.)
Leia mais sobre artistas: Disney nos deixou órfãos
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Comentários
4 respostas para “De olhos claros e escuros”
Perce, a Obra de Arte é eterna. A Arte, tão bem definida aí em cima como reflexo de um sentir de uma mente incomum, percorre todos os momentos da obra: vai desde a sua criação pelo artista até quem a admira ou o crítico que a analisa e seus futuros admiradores. Eis um desses seus reflexos aqui. Nessa nossa confabulação acerca da vida e obra de Rembrandt, adicionamos nossas opiniões. nossas reflexões e estamos participando de um dos momentos remanescentes da obra que consegue avançar no futuro vindo até nós, aqui e agora. O Autor criou a Obra e deixou pra nós o seu significado. Este, sim responsável pela sua virtude que chamamos eternidade…
Grande abraço;;;É realmente tocante a genialidade do artista que expressa a realidade de sua alma.
Tamanha é sua precisão que nos toca profundamente,levando nos a refletir sobre a impermanência da vida,mas tambem sobre a beleza e as ironias da nossa jornada.
Olhos claros e escuros…e além dos OLHOS…Walter Kaufmann:
“A arte não é um espelho que mostra a realidade como ela é. A arte mostra-nos um mundo refletido por uma mente incomum que impõe um estilo no que retrata.”
Não necessariamente uma mente incomum pode fazer arte. Pessoas comuns e simples podem fazer verdadeiras obras-primas.
Ex. um casal com 3 filhos passar o mês com salário mínimo e ainda assim ver alegria no rosto de seus filhos.Este é o verdadeiro artista!
Prof. Perce
Obrigada por falar de Rembrandt. Muitas vezes só focamos o trabalho, a obra e esqecemos a vida, o movimento. Sua escrita foi precisa, pois ao relembrarmos a história, esta faz com que admiremos mais o artista, o homem que muitas vezes esquecemos que existe por trás de uma boa obra…confesso que lendo a postagem de hoje me permiti a ver-me frente aos olhos deste pintor… um arrepio tocou conta da minha alma…e desejei passar seu blog aos meus alunos para que eles, também, possam sentir a mesma emoção que senti!
Maris Ester Souza
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