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Crônica de canção feita ao mar
Outro ciclo que se fecha, outra imagem que se abre.
Minha jangada vai sair pro mar… – ensinava Dona Dorinha, regendo-nos com um lápis. Com toda a voz de meus onze anos, entre os de minha classe e mesma formação, eu repetia as canções bonitas que nos mostrava essa mestra, enquanto acompanhava no perfil da colega, na fileira ao lado, o movimento de seus lábios, um ligeiro oscilar dos cabelos, podendo distinguir, das outras, sua voz apenas – ela que vinha se tornando o centro de meus dias, minha amada secreta de olhos verdes como o mar, de quem eu gostava tanto e tanto.
Lá fora, os furtivos remoinhos erguiam nuvens de poeira e ciscos, na estação dos ventos. Nossa escola, distante do mar e a meio do mundo, tinha janelas amplas que franqueavam a claridade de mais um dia exaurido, propenso a ceder à noite o espaço que nos cobria a todos. Sendo as últimas as aulas de música, a entrada de Dona Dorinha com seus hinários e cadernos de canções populares vinha como o anúncio de um fim de tarde, a saborosa sensação de que em breve sairíamos outra vez ao espaço aberto e aos horizontes de poeira, tão logo transcorresse a magia da aula de nossa querida regente, essa mulher a quem tínhamos vontade de contar tudo o que vivíamos, menos eu minha secreta paixão pela colega de olhos verdes, a quem espreitava com especial carinho. Minha jangada vai sair pro mar, cantávamos em todos os tons. Ela nos ensinava, com um sorriso e um lápis, o êxtase de existir de verdade.
O movimento de saída, no portão principal, encontrava-me ainda afeito à minha memória de música, os versos se repetindo enquanto eu observava, como sempre gostei, a tarde rosada sob os efeitos de certas formações de cirros, um tempo em que todas as jangadas aspiravam ao mar, e nossas vidas dispunham-se ao futuro, quando eu já considerava meus colegas com o silêncio que eles não conheciam, situando-nos a todos no mesmo universo das canções que ensaiávamos. Meus companheiros também vão voltar, minha memória entoava. A tarde nos desfazia em incertos matizes, e o vento desarranjava os cabelos de minha amada, eu vendo agora ir-se de mim aquela de olhos como o mar, de quem eu gostava tanto e tanto.
Entre os adultos de minha rotina, tarde em meus dias de homem, aconteceu-me conhecer um sobrinho de nossa antiga professora, de quem pedi notícias com ingênua curiosidade.
“Tia Dorinha?”, ele quase sorriu. “Faleceu, já faz bem um tempo. Mas contava idade, e tudo se passou serenamente. Em sua própria cama, sem dor nem doença. O que chamam, com razão, uma boa morte.”
Eu acreditava que ela houvesse saído da vida em uma tarde rosada como as nossas, de remoinhos de vento e memória de canções. Recordava meus colegas, hoje com a minha idade e dispersos sobre o mundo. Meus companheiros também vão voltar, Dona Dorinha. Também aquela de olhos feitos ao mar, que era minha amada secreta. De quem eu gostava tanto e tanto.
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
34. Andante de um concerto barroco – próximo
32. Nós, os fortes, te agradecemos – anterior
Leia mais histórias com pequenas paixões: 28. Todos nós, de vez em quando…
Imagem: Henri de Toulouse-Lautrec. A lavadeira. 1889.
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Comentários
Uma resposta para “Crônica de canção feita ao mar”
Ah, eu lembro quando li este teu texto no livro Lisette Maris em seu endereço de inverno, que releio seguidamente, pois vejo nele uma reunião de belezas e emoções que em encantam. Foi o que senti agora, ao relê-lo.
É como se assistisse novamente um filme que já vi e tivesse me tocado profundamente. E o interessante é que, a cada releitura, os personagens vão se tornando mais íntimos e os locais, como o céu rosado do entardecer, mais bonitos e cada vez mais próximos.
Abração. Adorei.
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