Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 1204. A estação orbital

Sei que não estou sorrindo. Em nenhum momento.
Mas gosto de saber que ela sorri, que pelo menos ela pode sorrir.

Muro baixo, de pedras claras, servindo de proteção, a meio caminho do topo da montanha, frente ao oceano. Som de aves marinhas. Altura própria dessa montanha. Encostas de uma elevação verde, de arbustos, algumas árvores e forragens. Para chegar até ali, uma estradinha de areia dura. Encontro-me junto ao muro, essa mureta pela cintura, ante o espaço aberto de céu e mar, eu em silêncio e sem reação, no intervalo desse grande declive que lá embaixo se torna, gradualmente, a praia. Um dia muito claro. (Mas não é possível saber em que ponto do quadrante o dia se mostra: manhã ou tarde.) A claridade estreita meus olhos. Som de aves marinhas. Vento em meus cabelos, em meu rosto, mas não muito agradável. Apenas não é muito agradável. Não compreendo por quê.

Então surge, bem perto de mim e sem que eu a tenha visto chegar, uma jovem que conheci há algum tempo, entre raras ocasiões, caprichos e arranjos do que chamamos acaso. Som de aves marinhas. Cabelos negros e lisos, pouco agitados pelo vento, esse mesmo vento que me parece tão forte e desconfortável.

“Você se lembra de mim?”, ela inclina um pouco a cabeça, procurando meu rosto, que continua voltado para o mar.

“Claro. Eu me lembro.”

Tento ser agradável, quase lhe sorrio. Mas não consigo sorrir. Som de aves marinhas, um som antigo e intermitente. Meu rosto continua voltado para o horizonte do mar. Penso estar sorrindo, assim mesmo. Mas não estou. Espero que ela me compreenda. Que me perdoe. Não gosto de ser desagradável.

“Obrigada por ter vindo”, ela diz, tranquila.

Isso me soa estranho. Estranho porque foi ela quem veio. No instante seguinte, percebo que estamos ali porque combinamos um encontro. Isso explica que ela agradeça por eu ter vindo. Certamente temos alguma memória um do outro. Mas não me lembro de seu nome. Acho que não sei o seu nome. E não pretendo me esforçar com isso. Som de aves marinhas. Apenas tenho a sensação incômoda de que minha ingenuidade nunca passa.

“Mas você não disse mais nada”, declaro em tom interrogativo, confuso. “Por que queria que eu viesse?”

Antes que ela me responda, estamos agora suspensos, em órbita da Terra, bem perto de onde flutua uma estação espacial que devo reconhecer de alguma obra de ficção – mesmo sabendo que a verdadeira estação espacial seja muito semelhante a essa, clara e simétrica, inspirando algo de magistral e solene, porém não austero.

“Não é lindo?”, ela diz.

Eu a estou abraçando por trás, como se tivesse de protegê-la por algum motivo, enquanto ela se encanta com essa visão magnífica. Sinto que o chão se abre à nossa frente, bem abaixo de nós. Mas não pode haver chão aqui no espaço, reflito. Mesmo assim, vemos campos cultivados, divididos por linhas retas, quadriculados, em forma de retângulos ou trapézios, alternando verdes claros e escuros, o que também não poderia ser visto dessa altitude.

“Estamos tão alto que não podemos cair. Não é incrível?”

Ela se sente segura. Flutua feliz e sorri.

“É sim. Incrível”, respondo sem compartilhar de seu entusiasmo.

“Só não podemos deixar ninguém saber disso.”

Eu a seguro por trás, o mesmo abraço firme, sempre tentando protegê-la. Mas não compreendo por que tenho de protegê-la. Sei que não estou sorrindo. Em nenhum momento. Mas gosto de saber que ela sorri, que pelo menos ela pode sorrir.

“Olhe quantas coisas lindas! E não podemos cair. Não é incrível?”

Vejo partes de uns tecidos esvoaçantes ao nosso redor, em tons de azul-claro, e suponho serem o resultado do vento forte no vestido dela, um vestido que misteriosamente ela usa agora, pontas e bainhas escapando nos limites de meu campo de visão.

“Não é lindo? Não é lindo mesmo?”, ela insiste.

Vejo que ela move lentamente os pés descalços no ar, como uma menina. Seus cabelos se agitam suavemente ao redor de meu rosto. Mas não deveria haver vento aqui, penso entre dúvidas e convicções momentâneas. A Terra, lá embaixo, um mingau de nuvens brancas e cinzentas, ao mesmo tempo em que se mostram claramente as fazendas, campos cortados por linhas que imagino serem estradas.

“Que lindo! Só não podemos deixar ninguém saber disso.”

Sinto suas costas em meu peito, eu a abraço ainda. Eu a abraço o tempo todo. Em algum momento, meu queixo se apoia em seu ombro, tocando-lhe o pescoço. Admiro seus pés balançando no espaço. Sinto seus seios.

“Não podemos deixar ninguém saber…”, ela repete, sorrindo, como se fosse importante lembrar-me disso.

Não pode haver vento aqui, torno a me dizer em silêncio, com vergonha de minhas frágeis convicções, já que o vento se abate sobre nós com implacável intensidade, com certa violência até. Sei que é o mesmo vento nos cabelos dela. Como é possível?

“Quantas coisas lindas! E não podemos cair. Não é lindo o vento?”

Sinto seus seios. Som de aves marinhas.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

Sonho 1128. A pedra de atrito – anterior

Sonho 1448. O ancestral pré-histórico – posterior

Imagem: Paul Klee. Estradas principal e secundária. 1929.

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Comentários

2 respostas para “Sonho 1204. A estação orbital”

  1. Avatar de Perce Polegatto

    Maris
    Fico feliz que tenha lhe passado essa impressão de leveza e liberdade. Esses foram mesmo sonhos que tive, mas como a linguagem é um código limitado até mesmo para descrever a realidade, sempre é preciso fazer adaptações ao contar com palavras sensações tão imprecisas e intensas.

  2. Avatar de Maris Ester Apdo de Souza
    Maris Ester Apdo de Souza

    Sem espaço, sem tempo, livre!…assim me senti ao ler seu conto Perce, na verdade me vi em Arraial do Cabo subindo a montanha para chegar até a praia do Forno deixando o vento esvoaçar meus cabelos… onde vivencio a sensibilidade, o contato que me faz viajar a um mundo único, onde ninguém pode entrar…

    Seu conto me remete a um mundo onde o acaso une liberdade e imaginação… talvez um mundo onde ela é livre para sorrir, ser ela mesma e ele preso a funções ..
    A sensibilidade com que descreve o (re) encontro fez me ver esse personagem cercado de medo, talvez o medo de sentir-se preso… por minutos visualizei-o sentindo o perfume dela…como se o abraço fosse a ela, a proteção, ou a prisão…a ele o momento eternizado, o que não se permitia ter, pois as funções não lhe permitiam ser livre.
    Creio que qualquer coisa que eu escreva a respeito de seu conto poderia deturpar a leveza do ambiente, o sorriso do acaso uniu a ambos, fez-se pelos dois… Ao entrarem em órbita um mundo único se fez!
    Seu conto nos torna livres, me vi muito nele… sem chão, sem amarras, sem medo, sem funções…
    Na minha mente veio “de louco e bobo todo mundo tem um pouco”… a sensibilidade que aflora e nos torna poetas assusta a alguns por nos mostramos tão certos de um toque de magia…

    Um mundo único, onde ninguém pode entrar, onde o acaso une liberdade e imaginação, um lugar em que ela é livre para sorrir, ser ela mesma, ele preso as etapas da vida!

    Obrigada pela dedicatória Perce

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