Office in a Small City por Edward Hopper

A mesma aventura

Subir ao ônibus, descer do ônibus… Será só isso?

“Bom dia a todos.”

Por isso, todos me observam quando subo ao ônibus, pela manhã. Não se diz bom-dia a todos, especialmente com tal sinceridade. Estranham roupas que mal se ajustam e fazem de mim um cidadão deselegante, sem interesse. Óculos que mal se ajustam ferem-me o nariz e as orelhas. Mal eu me ajusto a alguma coisa. Mas posso vê-los a todos.

A mulher com a criança doente; dois homens discutem política; o operário leva sua marmita e parece absorto à janela, como sonhando o que, não sendo outro, só ele pode sonhar. O menor flagrado, retido por alguns homens que o esbofeteiam.

“Toma, filho de uma cadela!”

“Não tenho mãe”, ele chora. “Nunca tive mãe…”

“Agora ninguém tem mãe, não é?”

Agora ninguém tem mãe. Arremessados todos à mesma fração de realidade e tempo, conscientes ou não, ao encontro ímpar com a morte. O mesmo sonho dos que compartilham o real, uma fase de expansão da galáxia onde ainda há luz e energia propícias à vida. A mesma geração. E sua vez.

Senta-se ao meu lado uma mulher triste. Quando alguém se senta ao meu lado, esse alguém tem um problema. Não é preciso ouvir tudo, não é preciso perscrutar as fisionomias. Nem é preciso que me contem. Sei que essa senhora de olhos fundos foi abandonada pelo marido, após ter sofrido muito; que a estudante se exilou de sua família interiorana e que o rapaz bem vestido esconde uma tragédia inconfessável. Que a adolescente prostituída, olhos de meia-noite emergindo da precária maquiagem, está apenas voltando a sua casa pobre – e vai entre nós. Sei dos que traíram, dos que tramam trair. Estão todos aqui. Dos que acreditam e dos que viram a verdade mais difícil. São os de trás, os da frente, os de pé no centro, sentados à esquerda e à direita, ansiosos ou somente à espera. São estes e aqueles. Não há outros.

Minha vez de descer. Sem mim, outras gerações serão lançadas às mesmas viagens. Atrás, deixo os que são eu de alguma forma, no rastro de seus destinos, de nossos destinos.

“Bom dia”, digo aos que me estranham. “Bom dia a todos.”

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

40. Três mulheres, um talismã – próximo

Estudo com cristais 13. O réquiem das crianças – anterior

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Imagem: Paul Klee. Onde? 1920.

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Comentários

2 respostas para “A mesma aventura”

  1. Avatar de Cleber

    Perce, vejo o que você escreve como “literatura mesmo” que passa a ser completamente separada do autor, depois de virar arte. Seja qual for a opinião mágica sobre o mundo, as impressões, não é uma descrição, como vejo as pessoas analisarem sobre filmes, músicas e letras de música, etc., é além de você mesmo. Ótimo, já li este e outros livros e textos seus, mas me concentro nos livros completos. Abraço, Cleber

  2. Avatar de Enar

    Beleza, adorei tua forma de ver as pessoas, eu tbm sou assim, eu sei que cada pessoa que passa por mim na rua, que vai no mesmo ônibus que eu, que cruza o meu caminho, é um ser humano, com suas tristezas e alegrias, seus problemas, não é um objeto, é uma pessoa… Caio Fernando Abreu falou sobre isso, sobre o quanto uma pessoa é vista pelos outros tal qual um objeto, uma mesa, nas palavras dele. Um abraço, tão bom saber que existe gente no mundo assim, que é antes de tudo humano e vê os outros assim!

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