Office in a Small City por Edward Hopper

Breve relato sobre o conhecimento de artes singulares

Tinha a surda sensação de que minha sombra magra passaria pelos muros, e nada se haveria de alterar.
Que meu grito mais alto seria sempre um mero sussurro, sob o peso dos impérios.

Mais me impressiona aquilo que não vejo.
– Psiterion de Antimênia, Obras, vol. VI

Hasel, vale! Com a graça de meu mestre.

No momento de embarcar, tudo sucede festivo e como nos atirássemos à mais gratificante aventura. Os companheiros nos acenam: “Vamos! Vamos!” – e eis o mundo de grandes portas abertas, de sorte à frente, tudo nos excita e convida ao futuro, menos o receio de acabarmos em um dos quatro abismos que delimitam os mares e onde monstros impiedosos nos despedaçariam com uma só dentada de fogo. Logo, graças à minha ingenuidade e à minha fé nos semelhantes, fui abandonado no primeiro conflito, capturado por estranhos, por fim tornando-me escravo nas terras do lendário e temido monarca Mons Theos’al-drjdbr III, o piedoso, chamado assim porque seus antecessores apreciavam as torturas, enquanto este se entediava com algumas poucas sessões e permitia que liquidassem o prisioneiro da maneira como bem entendessem, desde que o não fossem perturbar em seus aposentos.

Primeiro, serviços pesados e rudes, como se isso fosse durar sempre. Tinha a surda sensação de que minha sombra magra passaria pelos muros, e nada se haveria de alterar. Que meu grito mais alto seria sempre um mero sussurro, sob o peso dos impérios. Mas também reconheceram certas habilidades minhas, o que, aliás, já não era sem tempo, e demoraram muito a perceber. Eu fazia desenhos na areia com um ramo de maspênia, em horas de folga, e os outros escravos admiravam-se com isso, não menos que eu próprio, pois tal capacidade para o traço também não era um mérito meu – ela apenas corria dentro de mim como no fundo de um rio. Cria mesmo que jamais pudesse compreendê-la. Então, vieram buscar-me.

Fui levado a um palácio. Lá dentro, percorremos tantos cômodos e escadarias que eu não saberia voltar sozinho. Puseram-me à frente de um homem alto e magro, de trajes maravilhosos e escuros, de um olhar cintilante como nunca antes eu conhecera em alguém. Pensei que fosse enfim reconhecido pelo poderoso monarca, já me punha a prosternar-me perante ele, mas não, era apenas Androkhan, o mago, o conselheiro da corte, um austero feiticeiro, por isso dez vezes mais inteligente e cem vezes mais temido que o próprio rei. Por causa de suas ciências mágicas.

Androkhan, o mago, perguntou-me se eu falava sua língua. Eu disse que sim, de fato sabia, pois, em minha região, convivíamos com muitos de seu povo, em maior número dispersos pelo mundo. Perguntou então de onde eu vinha, se eu tinha religião e que religião eu tinha, que livro sagrado, então lhe respondi, com tímido orgulho, que era antimênio, mas não da estirpe dos comerciantes de peles, sim da região mais ao extremo do rio Fhen, sob as cordilheiras. Que obedecia ao Tedi’an’Tantorem, livro de mandamentos drúnico, e tinha como senhor Halateo, deus de dois chifres, criador do universo e único deus. Disse-lhe que sabia haver cavernas habitadas por demônios e gênios subterrâneos em toda parte do mundo, assim como cada rio guarda um espírito, mas que isso já não era da religião de meu povo, eram conhecimentos meus. O mago sorriu com grande divertimento, disse-me que toda religião era uma grande mentira formada de pequenas mentiras, que todos os deuses eram produto de homens doentes, que haviam perdido a razão, e eu engoli dolorosamente a saliva, trêmulo de medo.

Androkhan, o mago, apanhou muito habilmente uma estreita taça de vidro azul. Despejou nela um licor castanho, que começou a sorver com delícia, enquanto continuava a interrogar-me.

“Fala-me sobre tua terra”, ele ordenou calmo, mas de certa maneira sempre enérgico.

Contei-lhe muitas coisas desnecessárias, hoje vejo, relatando-lhe que ali os homens tinham melhor a cor do bronze, que os mercenários costumavam jogar sortes com os soldados invasores e que os ancestrais de meu povo festejavam os martírios e as crucificações, que não se importavam com a dor alheia, pois seus profetas sustentavam que o mundo sempre foi e será sempre um lugar terrível onde se viver. Ia lhe dizendo mais coisas, ele parecia já não estar ouvindo quando me interrompeu, erguendo-se como aborrecido, entediado, e perguntando se eu alguma vez havia visto um espelho mágico. Para agradá-lo, eu disse que não, que isso eram apenas invencionices dos visionários oriundos do Oriente, mas ele interrompeu-me outra vez.

“Não sejas tolo! Há vários desses pelo mundo. Quero que me digas se já viste um.”

Não, eu não tinha visto. Androkhan, o mago, bateu palmas; vieram dois servos e nos escoltaram até um subterrâneo mal iluminado por archotes, e ali ficaram pouco atrás de nós, questão de segurança, creio, embora ele tivesse poderes. Mas também, sob ordens dele, descerraram uma cortina ao fundo de uma parede, fazendo ver um escuro retângulo, mais vertical do que horizontal. Então ele disse: “Pois alegra-te com tal prodígio, que é este um espelho mágico como jamais viste ao longo de teus dias de sombra e insignificância.”.

Claro que eu estava estupefato, mas ainda não atinava com o que fosse extraordinário naquele quadro obscuro no qual nada se via. Criei coragem e confessei-lhe isto. Androkhan, o mago, ergueu um braço ao céu, num gesto enfurecido, e bradou:

“Escravo desprezível! Pois nunca ouviste sobre os grandes labirintos, os misteriosos caminhos do tempo e da alma, nunca sequer perguntaste a ti mesmo por que razão existes?!”

“Bem, senhor, na verdade, mesmo que eu soubesse…”

Gnothi te auton, estúpido!”

“Perdão, senhor. Não sei o árabe. Só entendi o estúp…”

“Não é árabe, é grego.”

“Pior. Na região de onde eu venho…”

“Está bem, basta!”, falou Androkhan, o mago, impaciente. “Importa que entendas o que pretendo de ti. Para tanto, deves saber algo sobre o Espelho que justo à frente te desafia.”

Após um espesso silêncio, Androkhan, o mago, ordenou que me conduzissem ao catre onde eu pernoitaria, para, no dia seguinte, ser novamente apresentado às suas ordens, àquela mesma hora, quando a clepsidra completasse o terceiro ciclo.

Pediu mais informações de minhas origens, e isso me confundiu, pois eu já havia me esquecido de que tais lembranças merecessem alguma atenção. Tenho vaga memória de minha mãe; de meu pai, nunca tive notícia. Mas dissera-me um velho oleiro, da região em que vim ao mundo, que eu herdara de meus estranhos ancestrais certa limitação intelectual, um físico doentio e evidentemente impróprio à guerra. Como, porém, nem tudo se perde num homem, tive sempre a inútil habilidade de desenhar rostos humanos, e umas pessoas algumas vezes recompensaram-me com frutas, depois de reconhecerem suas feições na areia ou na pedra.

Antes que voltássemos ao subterrâneo, Androkhan, o mago, contou que o Espelho era avesso à manhã nos mares e ao infinito céu claro, o que, segundo certo filósofo de sua linhagem, seriam apenas aparências do que não se vê, pois nossos olhos foram forjados para a luz, e os deuses não nos contam mais. No fundo do Espelho, talvez se encontrasse o fim do mundo, mas nada era certo. Quem conhecia, por dentro, o Espelho, desejava morrer, não desejava mais falar, e o pouco que se conseguira dos aventureiros sobreviventes (com tal palavra, meus temores voltaram) era que nele estavam contidas todas as atrocidades, todas as injustiças, todos os matizes do sangue humano de todas as raças.

Agora, tragicamente, eu compreendia que fora eleito para aquela estranha missão. Mas por que eu? Ele ainda advertia que, uma vez no interior do Espelho, eu não fosse tão longe se não estivesse certo de recordar o caminho de volta, pois, com o fim da memória, também se acabava o mundo. Androkhan, o mago, lembrou-me sobre todos os aventureiros que haviam deparado com o fim do mundo, que todos encontraram a morte. Disse ainda que a escuridão da face do Espelho era de alguma maneira a escuridão da morte desses mesmos aventureiros. Mas o que haveria ali afinal? As dez mil coisas? A chave do tempo? A seiva da mandrágora? Alguns, antes de mim, já o haviam penetrado, mas traziam de maneira confusa o que viram – e não sabiam desenhar. Por isso, Androkhan, o mago, tinha muitas esperanças de que desta vez tivesse melhor resultado, sob o registro de meu traço.

No terceiro dia, conduziram-me novamente ao subterrâneo e à frente do Espelho. Perguntei por que o chamavam de espelho, se nada refletia, mas Androkhan, o mago, ordenou que eu me calasse e que tratasse de cumprir seus desígnios sem mais demora. Androkhan, o mago, disse por fim: “Este é o momento, rapaz! Este é o momento!”. E esta era, portanto, a sua ordem. O entusiasmo dele não me contagiava nada, ao contrário, eu me sentia gélido, inerte. Porém, também senti que nada mais havia a perder, que todos um dia teriam de enfrentar a própria morte, fosse esse o meu caso, então caminhei com coragem em direção ao Espelho. E o atravessei. E me perdi.

Ainda não foram inventadas palavras para descrever o que lá dentro eu vi. Por isso, desenhei. Mas também não há imagens disponíveis em nossas tábuas de conhecimento, quem sabe se haverá um dia. Fiz símbolos e sinais, todos eles de uma nitidez, de uma intensidade e de um fascínio inconcebíveis, entre objetos, animais e máscaras, que é como se escondem de nós os tesouros da eternidade. Algumas imagens convertiam-se em palavras, e eu não mais podia desenhá-las, assim como certas palavras diluíam-se em formas geométricas distintas para escapar ao idioma que as mantinha cativas. Pensei ter vivido muitos anos lá dentro, mas Androkhan, o mago, surpreendeu-se de eu haver voltado tão rápido, pois eu estivera lá dentro só por alguns minutos. Ali, o tempo não existia. Ou existia como um todo, o que é o mesmo que não existir, sem sucessão de causas. O que de fato eu vi não pode ser descrito a contento, como hoje sei.

Não pude desenhar logo que saí, pois sentia desfalecer. Disseram-me que eu havia ficado nove dias desacordado, vítima de estranhas febres e estados delirantes, como os mestres de medicina do reino não conheciam. Androkhan, o mago, estava entre os que me atendiam quando compreendi que ainda estava vivo. O feiticeiro então pediu-me que desenhasse tudo o que pudesse, pois só assim ele penetraria a seu modo o que, ainda por equívoco, chamava de porta do fim do mundo; e o fiz com espantosa perfeição, o que a mim surpreendeu, não a ele, habituado ao comum da magia e à maravilha. Durante dias, desenhei e pintei, assessorado por servos de confiança, perfazendo inúmeras tábuas nas quais mais tarde Androkhan, o mago, tentou ver uma sequência e uma resposta – isso o que nunca eu soube, se ele o havia conseguido ou não, que isso fazia parte de seus segredos. Era essencial que eu não faltasse com a verdade, do contrário as coisas se tornariam ainda mais confusas. Porém, ao menos um aspecto omiti de Androkhan, o mago, pois tive vergonha de confessar-lhe que, lá dentro, eu havia me tornado outra vez um menino.

Faz muitos anos deixei de desenhar; e passei a interessar-me pela arte escrita, cujos rudimentos eu já havia assimilado de um velho alfarrabista em minha terra de origem. Tais códigos faziam uma variação muito próxima da língua de Androkhan, o mago, e hoje vejo que se assemelham a esta do reino onde vivo agora. Estranho: teriam nossos povos se miscigenado em algum quadrante ignoto do passado? Por que não? De qualquer maneira, entendo que sempre me falta muito. Os desenhos também se aproximavam da verdade, eu me lembro. Mas me pareciam incompletos. No entanto, é preciso continuar. E isto passa a ser sua própria resposta.

Só uma vez adentrei o Espelho. Mas foi o bastante. Não são as repetidas jornadas o que nos faz outros, mas a qualidade delas e o que podemos absorver da melhor maneira. Por causa de meus sucessivos conhecimentos, o povo mais simples passou a confundir-me com um taumaturgo, porém só eu sabia quanto custara tornar-me eu próprio.

Após haver-lhe desenhado outras de minhas visões, Androkhan, o mago, tomou-me como um discípulo, tendo o cuidado de nunca me deixar perceber que meus poderes também cresciam conforme o tempo. Foi Androkhan, o mago, mestre feiticeiro por excelência, quem me apontou alguns segredos do mundo, como a permanência da razão e da energia imortais dos homens sábios, apesar dos imprevisíveis levantes da barbárie; foi ele quem me mostrou a relação entre um simples triângulo riscado na areia e a mais imponente das pirâmides, assim como se pode relacionar a primeira pedra atirada por um homem antigo com a mais moderna de nossas armas. Por meio dele, aprendi a falar uma língua mágica, porém belíssima, da qual ainda guardo frases inteiras, e que ele disse chamar-se Lathin, como também conheci histórias vindas de longínquas nações, pois ele as guardava dentro de pesados alfarrábios para que nunca lhe escapassem, como aquela da Grande Cidade de Sete Portas, que não posso contar nem mesmo hoje, por ser muito terrível.

Quando o assisti em seu leito de morte, Androkhan, o mago, confessou-me finalmente que nenhum de nós tinha verdadeiro poder senão através do conhecimento do Espelho e de sua memória. Ele morreu enquanto contava coisas muito singelas de sua infância, vivida nos pomares de Bathshva e às margens do rio Habr.

Nos anos seguintes, legiões de invasores saquearam a capital marítima onde morávamos. Sucessivas batalhas deformaram a região como a conhecíamos, e eu tive de fugir muitas vezes, até encontrar abrigo numas terras distantes que, segundo meus instrumentos, encontravam-se próximas a um dos quatro abismos do mar e ao sul dos bosques elísios, onde os homens têm juventude eterna. As guerras transformaram muitas vezes a face do mundo, e muitos meus conhecidos morreram, mas é claro que eu não morri, do contrário não poderia isto estar escrevendo e contando, como acaba de ver-se.

Hasel, vale! Com a graça de meu mestre.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

18. O capitão na corte dos cadáveres – posterior

16. O cavaleiro do século – anterior

Imagem: Wassily Kandinsky. Linhas de sinais. 1931.

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