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Sonho 772. Vista do mirante
Estou no terraço, junto ao parapeito, do que me parece a noite mais clara, o edifício mais alto do mundo. As cidades não nasceram ainda.
Todo o firmamento festeja a noite de mil sóis. A espinha dorsal da Via Láctea arremessando nuvens de luz branca, espirais galácticas quase ao alcance, cortejos de astros incandescentes deslocando-se em lentos turbilhões, estrelas cadentes que faíscam por um instante e logo desaparecem no calidoscópio cósmico, tudo sendo amostras da grande viagem a que assistimos e não compreendemos. O cometa furtivo. O meteoro de surpresa.
Consulto o relógio – 4:32. A Vésper já se posicionou à minha direita. O silêncio parece maior, e os astros retardam-se em seus movimentos. É chegada a hora. Vou chamar meu filho, mas ele também assiste a tudo, do outro lado do terraço.
“Venha ver”, eu lhe digo. “Venha ver as torres nascendo.”
Ele corre para perto de mim, debruça-se no parapeito.
“Você sabe: as cidades nascem à noite. Quando ninguém pode vê-las.”
Então, vemos que os edifícios sobem ao redor, estalando e rugindo, lentos, volumosos, girando sobre seus próprios eixos, até se firmarem na altura e posição que lhes são destinadas, sendo alguns de vidro, outros secretos, numa cadeia de estrondos sucessivos e ensurdecedores que prolifera até o horizonte possível de nossa perspectiva. Maravilha-nos o rompimento da terra, o estrépito que produzem tais partos, como tudo o que nos cerca se revela maior do que nós e à nossa revelia, como a noite e os astros, a morte e os tempos, o avesso dos terremotos, quando por fim identificamos a última torre, monumental e monstruosa, inteiramente negra, mas portando em seu topo o farol mais claro do que todas as noites do mundo: a lanterna giratória que ofusca as luzes menores e encerra o ruidoso ritual dos edifícios. Vemos como ela se impõe entre eles e já os tem a todos em suas devidas proporções de tamanho, formando a vista recortada como a conhecemos, como fotografada nos postais, o conjunto de fachadas gris contra o fundo entardecido – cada torre, cada mirante, cada antena em seu lugar.
Logo irá amanhecer, penso. Sinto que meu rosto, até então refletindo luz e encantamento, declina a uma expressão mais tensa, gradualmente ansiosa. É quando compreendo que meu espanto nunca foi senão uma faceta de meu medo.
Sei que irá amanhecer, tenho certeza.
Não torno a encontrar a Vésper. Meu filho aponta as luzes que giram, as que piscam e as mais cintilantes, pontilhando o emaranhado de torres que compõem a cidade infinita. À nossa frente, ao redor. Ali, bem ali: aqui, onde antes só havia o céu.
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
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Lisette Maris 1. escuna ancorada – posterior
Imagem: Vincent van Gogh. Noite estrelada. 1889.
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