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Sonho 1448. O ancestral pré-histórico
Continua fazendo algo que lhe parece muito interessante e necessário.
À minha frente, agachado e atento a alguma atividade que não compreendo, encontra-se um homem pré-histórico, vestido apenas em suas partes íntimas com uma peça feita da pele de algum animal. Ele é moreno, cabelos abundantes e negros, seu corpo tem cicatrizes, arranhões e pequenas feridas recentes. Ao nosso redor, há pedras grandes e pequenas. Todas parecem arredondadas e suaves, sem cortes precisos, sem pontas ou rachaduras. Agora, também estou agachado em frente a ele. Ele não ergue o rosto, continua envolvido com sua atividade como se eu não estivesse ali.
“Você está conseguindo escrever?”, pergunto.
Mas não sei por que pergunto isso. Esse homem antigo não parece estar fazendo nada parecido com alguma tentativa de escrita. Ele não responde, e eu sinto pena dele como de uma criança que não consegue ver ainda o mundo à sua volta. É por isso, concluo, que ele não me vê. Meus sentimentos vão se tornando mais ternos e intensos. Sinto vontade de abraçá-lo ou de lhe sorrir como um grande amigo.
Pouco atrás dele, entre ervas e baixos arbustos, passa uma jovem belíssima, clara e alta, uma mulher que tenho a impressão de já ter visto antes, talvez uma modelo de fotografias de moda, um desses rostos que se tornam familiares por força de o termos memorizado sem intenção. Sei, portanto, que ela não pertence àquele lugar nem àquele tempo. Ela é, como eu, uma visitante. Mesmo assim, está vestida com trajes rústicos também, pequenas peças de pele animal. Enquanto caminha de uma parte a outra, até desaparecer por trás de uma árvore, a jovem olha o tempo todo em minha direção, com uma expressão simpática mas desafiadora, como se só estivesse ali para complicar ainda mais o quadro que não compreendo.
O que ela está fazendo aqui?, pergunto-me em silêncio. Parece extraordinário e excessivamente intuitivo de minha parte, mas mesmo nesse lugar e nessa situação, consigo entender que a jovem seminua teria sido forjada por associação com meu ancestral primitivo. E isso exige de mim um grande esforço de lucidez, como se só o fato de pensar nela me fizesse um tanto mais cansado.
O homem, absorto em seu indefinido ofício, não me olha em momento algum. Continua fazendo algo que lhe parece muito interessante e necessário. De repente, sinto-me ainda mais comovido e querendo dizer-lhe que me sinto grato a ele por todo esse seu esforço. E que a bela jovem de meu tempo também deveria agradecer-lhe, se soubesse.
“Nós todos lhe devemos a vida”, eu lhe digo entre lágrimas.
Ele move a cabeça de um lado a outro, como se tivesse perdido algo no chão. Não me ouve. Não me vê.
“Nós todos lhe devemos a vida”, repito emocionado.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
Sonho 1204. A estação orbital – anterior
Sonho 1512. A clínica e o funeral – posterior
Imagem: Paul Gauguin. Menino junto à água. 1885
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