Office in a Small City por Edward Hopper

A moeda de milhões

Incontáveis são as sutilezas que envolvem a sexualidade humana, não menos que as grosserias, os desejos inconfessáveis, as violações à força.
A infidelidade camuflada em velhas arcas de família…

Uma pressão barométrica mínima pairava sobre o Atlântico […] era um belo dia de agosto de 1913.

Robert Musil. O homem sem qualidades

Desde as primeiras pirâmides e os monumentos arquitetados pela doença da grandiosidade, desde os arcos de inúmeros triunfos, desde as grandes cidades fortificadas de sete portas, desde as vastas muralhas que dizem ser vistas da Lua, desde os imponentes anfiteatros aos modernos estádios, dos templos magnânimos às não menos espantosas catedrais, os homens não mais se livraram da curiosa carência de edificar construções espetaculares, não sendo exceção o homem novo, que também antigamente se dizia moderno, cujos representantes, entre infindáveis réplicas de arranha-céus de concreto e torres de vidro, projetaram e ergueram este que hoje faz sombra a boa parte da praça, onde este jovem imberbe, olhar não muito atento e sorriso à espreita, aguarda.

Desprezando-se as inacessíveis geleiras, que são mães das avalanches, as calamidades resultantes de impiedosas nevascas, durante os longos períodos que se sucedem, no extremo dos continentes ao norte e no extremo das terras ao sul, agora é inverno onde este mesmo jovem percebe uma brisa suave nos cabelos finos, porém não sente frio e apesar do corrosivo sol tropical e das poderosas estiagens que ressecam os rios e os lagos e forçam ao êxodo numerosos grupos de pessoas, em diversas faixas sob o poder do alto verão, está de pé, como acariciado por uma réstia de sol ameno que se filtra por entre dois paredões de concreto.

Não se mencionem os intrincados e indiretos fios da trama que conduz homens e mulheres à contração de núpcias conflituosas, nem se mencionem os caprichos e paranoias dos amantes que promovem escândalos, entre anônimos e celebridades, todos se deslocando entre inclassificáveis relações sucessivas, que alimentam as seções de entretenimento e as colunas policiais, mas mencione-se que este rapaz e esta moça, que há pouco se entenderam como namorados, se encontram por fim nesta praça silenciosa, ambos atravessados por um constrangido sorriso, quando se dizem, quase ao mesmo tempo: “Oi.”.

Incontáveis são as sutilezas que envolvem a sexualidade humana, não menos que as grosserias, os desejos inconfessáveis, as taras dissimuladas, as distorções e excentricidades, os tabus subvertidos, as violações à força, a infidelidade camuflada em velhas arcas de família, por vezes deflagrando episódios de paixão doentia, obsessões incuráveis e crimes violentos, porém só um leve rubor altera a face destes jovens hesitantes, enquanto trocam um beijo rápido.

Deixaram memória as frases de homens e mulheres brilhantes, através de todos os séculos, entre os aforismos remanescentes dos antigos gregos, repassando as pérolas guardadas em almanaques, as citações extraídas de gloriosos clássicos, assinados por autores ditos geniais ou polêmicos, no corpo de pesados volumes de coletâneas e tratados filosóficos de grande porte, e talvez deixem também seu rastro umas mais recentes ironias avulsas, divulgadas entre especialistas do pensamento em mais de uma área, que estremecem a opinião pública, em diversas partes e momentos do mundo, mas tudo indica que logo haverá de esquecer-se o que este rapaz e o que esta moça encontraram escrito dias atrás, em bilhetes trocados: “Te amo.”.

À parte o planeta, ainda em caótica ebulição, gerando os agrupamentos microscópicos, desde as colônias de organismos marinhos às deslumbrantes medusas arqueozoicas, à parte também as vegetações ancestrais que, ao se alastrarem, formaram as úmidas florestas primevas, cenário para a saga dos sáurios gigantescos, desde a fabulosa expansão do Cambriano à formidável megafauna do Triássico, à parte terem, os pequenos lêmures, por um extraordinário acaso, sobrevivido aos cataclismos devastadores e às drásticas variações climáticas, à parte as agruras por que passaram os caçadores do Pleistoceno, estes jovens sorriem.

Algarismos significam ouro, enquanto cifras e códigos transitam com inconcebível agilidade, deslocando-se entre as conexões que atrelam as economias aos termômetros das bolsas de valores, fortunas arriscam-se a avolumar-se entre prodígios, tanto como outras acabam por diluir-se tragicamente, transtornando as relações políticas, por vezes esgotando processos diplomáticos e deflagrando conflitos armados, o valor de um golpe militar traduzindo-se em valores monetários, a ideia roubada representando novos patrimônios, há muito o mundo enriqueceu e se descreve em dígitos, porém este rapaz de dedos inábeis, manuseando no bolso o dinheiro contado para o lanche, deixa que lhe escape uma moeda.

“Vamos”, dizem eles sem notar que, ao primeiro passo, destroem um formigueiro.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

1. Sua canção de enganar – anterior

3. Inconsistência dos retratos – posterior

Leia mais contos: Sete anos em Manhattan

Imagem: Moeda de ouro dinamarquesa. 1783.

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Comentários

Uma resposta para “A moeda de milhões”

  1. Avatar de Weiner Assis Gonçalves
    Weiner Assis Gonçalves

    O que dizer? Nada fará jus a esse admirável criador e escritor de contos, é essa a principal razão de seus primeiros lugares. Continua a nos brindar com eles, são momentos que nem notamos passar, de tão absorvidos que ficamos. Parabéns.

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