Office in a Small City por Edward Hopper

Desdobramentos de um réveillon secreto

O mesmo fascínio de quem depara com a água cristalina ou o fio de inesperada luz entre as árvores.

1. Tornamos a nos conhecer na reunião que move a numerosa família à casa da matriarca, em sua cidade. Ali, os mais velhos apreciam clássicos do jazz e trilhas de cinema. Dessa vez, pareceu-me claro de sua parte, quando todos deixaram a sala rumo aos fogos e às festas previstas a céu aberto, e ela passou a ensaiar sua dança de olhos fechados, sob influência do disco esquecido – o ondulante movimento de ombros detido por meu impulso de prender-lhe um braço, prender-lhe os olhos frente à franqueza de quem podia antecipar o que ela própria ansiava por revelar-me, quando eu lhe disse: “Você não gosta dessa música!”.

2. Nenhuma lembrança do que havíamos sido na infância parecia apontar àquele outro momento em que nos encontrávamos sós sobre o grande tapete. Ela, tentando alcançar um objeto, dava-me de volta o mesmo fascínio de quem depara com a água cristalina ou o fio de inesperada luz entre as árvores: assim eu a surpreendi nua sob a saia cinza, embora não fosse ainda a primeira vez que nos alcançaríamos de todo – ou ao mesmo objeto.

3. Ela também recordava na escuridão: eu desde pequeno brincava como agora, a mão de olhos fechados percorrendo lentamente a superfície do lençol, identificando e aprisionando entre os dedos alguma impureza mínima, o átomo-grão do que quer que fosse e quase não existia, pelo menos não à disposição de nossos sentidos comuns, pois quando, mais tarde, acariciava sem pressa sua nudez, minha prima disse: “Você tem as mãos de um cego.”, e isso foi o que de mais belo ouvi de uma mulher.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

56. Meu gatinho Dedalus

55. Noite no jantar dançante – anterior

Lisette Maris começa aqui: 1. O demônio no fundo do quarto

Imagem: Wassily Kandinsky. Diversos círculos. 1926.

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Comentários

Uma resposta para “Desdobramentos de um réveillon secreto”

  1. Avatar de Arthur Ribas

    Grande Mestre.

    Não pude deixar de relembrar de uma crônica minha, bons tempos de memórias, digo, escritas!

    Abraço!

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