Office in a Small City por Edward Hopper

Estudo com cristais. Lis (4/13)

Respiro o ar de sua casa antiga. Bibliotecas sem uso, saletas mal iluminadas, algum espelho…
Argentários e arcas de cedro – com que fósseis e segredos?

Da primeira vez, quando dormimos juntos (nossos encontros têm sido escassos, à sorte de oportunidades), Lis perdeu o sono antes de mim. O beijo umedecido, emergindo das trevas, tornava lábios o pântano e a névoa que me entorpeciam, trazia-me de volta à vigília, ao que eu era e me sentia sendo, à vida possível. Na faixa que ainda me retinha entre a inconsciência e a memória, via-me na véspera, à entrada da casa: o jardim e suas trevas, a campainha sob a gárgula, hera sobre as pilastras, uma escolta de plantas e palmas que o vento sem lua fazia oscilar, o caminho de pedras informes até a porta pesada de relevos, essa que me franqueava Lis, seu sorriso de encontro. Outra vez a camiseta branca, o detalhe à altura do seio, tênis e jeans, o que normalmente veste para ir à escola, e uma maquiagem talvez ostensiva, própria aos olhos azuis, aos cabelos finos, lisos, e a disfarçar o rosto quase infantil. Dormindo, revela alterações na frequência de sua respiração. Os mais jovens sofrem alterações mais rápidas. Palpitações. Pulsações.

Sons e sonhos esvanecendo-se, abro os olhos. Ainda um braço de noite antes que assome, filtrada entre cortinas creme, a claridade fresca e imperiosa de outra manhã tão inconcebível quanto a primeira, no despertar nebuloso do mundo, bem antes da longa saga reptiliana (fecho os olhos, um rumor espanta os pterodáctilos, grandes carnívoros enterram dentes afiados no pescoço de suas presas), bem antes, quando não éramos eu nem Lis. Eu e Lis. Parte de seu corpo sobre mim. Fios de cabelo afagam-me o rosto, descem à boca e ao queixo. Lis morde-me de leve a garganta. Dispersam os pterodáctilos.

Respiro o ar de sua casa antiga. Ar de estarmos confinados no último quarto, junto aos balcões de vista aos pátios internos, ar de estarem seus pais em viagem, de saber ao redor um labirinto de cômodos que excede nossa necessidade de espaço e sugere em seu bojo inúmeras antessalas, galerias e bibliotecas sem uso, saletas mal iluminadas, algum espelho, escadas assimétricas entre claraboias, conduzindo a sótãos poentos e esquecidas lucarnas, saguões onde se conservam dunquerques, consolos e faianças centenárias, jogos de cristal veneziano, argentários e arcas de cedro – com que fósseis e segredos?

Lis é apenas uma prisioneira, nada disso a reflete. Os relógios altos, de quadrantes esmaecidos, cujas pancadas espalham cobre e ferrugem pelos corredores, talvez marcassem a morte de cada antepassado. Mas giram em falso tentando acompanhar sua hora de mulher. Seu tempo é outro, Lis, de crisálidas.

A banheira arcaica, de ângulos arredondados e pés de leão, não parece adequada às brincadeiras de Lis, às fantasias que ali tantas vezes confessa haver sonhado. É pesada, austera. Contrasta com a nudez de ela estar de pé, minando gotas e trilhas que brilham como cristais avulsos ao percorrerem sua pele verticalmente, apenas ofuscados pela delicada pulseira da qual não se separa. Cabelos lisos grudando-se ao pescoço, o corpo frágil embora altivo, seios quase sumidos, retraídos pelo mesmo frio que lhe arrepia os mamilos, uma fragilidade de aparências, de braços compridos, alguma flacidez disfarçada por sua postura e sua juventude. A espuma que redesenha suas formas, enquanto desliza desde os ombros, empresta-lhe alças, tiras e cordas, por vezes uma peça inteira que logo se esvanece. Lis toca o ninho de espuma que se aloja por um instante sobre seu púbis, pinta-me a ponta do nariz com o dedo, sinal de gratidão pelo banho que lhe proporciono demoradamente, uma de suas fantasias mais comuns. Junta os cabelos com as mãos, torce-os a um lado do corpo, a corda líquida bifurca-se num seio, perde-se nos flancos. Em troca, peço que não se enxugue, e voltamos ao quarto. Deitado de costas, recebo o calor de suas pernas dobradas, abertas, Lis sentada sobre meu ventre, a morna umidade da flor que me abocanha e me envolve rápida, deliciosamente, restando às mãos o frescor de suas coxas e cintura, a pele molhada, as penugens, seios ainda mais tímidos que aqueço entre os dedos. Alcanço também os tornozelos, prendo e solto-lhe os pulsos, num deles a fina pulseira, passo entre as nádegas tateando delicadas reentrâncias que também são ela. Lis violada outra vez, antes da aurora.

Lembra, Lis? Foi assim sua primeira vez – também nossa primeira vez –, sobre o grande tapete da sala, de motivos rousseaunianos, antes uma floresta obscura, mas de cores ardentes. Houve sangue. Em seu rosto agitado, confundiram-se, perderam-se o riso e o pranto. A lágrima de dor. A baba de prazer. Ouso confessar, Lis, que desejaria retê-la para sempre naquele momento de orgasmo e delírio, contra todos os relógios, todos eles, inclusive os que sobrevivem a nós.

“Sabe que horas são?”

As cortinas clareiam. Amanhece, ainda sem pássaros. O rosto de Lis reflete essa luz. Cedo ou tarde, onde se enquadra a fuga da noite? Enfim, por que ceder às convenções? Subverter certos caminhos é procurá-los de outra maneira. Lis, vamos, abra as cortinas. Nem tanto o sol, alguma luz é o bastante. Mesmo as mansardas podem ser violadas sem que sejam arrombadas suas portas. Em qualquer jardim escuro, podem ocorrer flores brancas e azuis, aí está você. Pois o tempo retido entre as heras e as grandes árvores não passa de um prolongamento, uma insistência, dilui-se sutilmente como cada momento nosso e acaba um dia esfarinhando-se como um bando de aves a distância, alçando um largo voo invisível, como em direção à bruma e à noite, como se foram os pterodáctilos.

“Quer outro banho?”

“Não. Quero ficar suja de você.”

Abraça-me, deita-se sobre mim.

“Lis, tenho vontade de reviver tudo. Ver você pela primeira vez, conhecê-la de novo. Seu beijo. Sua nudez.”

“E sobre o nosso plano?”

“Se você ainda tem coragem…”

“Você tem vergonha de dizer que me ama.”

“Não tenho.”

“Meu sobrenome, minha origem. Isso incomoda você, eu sei.”

Nada me dizem os sobrenomes, Lis. Um de seus familiares talvez me acuse de não me preocupar com o futuro (não vivemos no futuro), sequer dar alguma atenção aos jogos da cobiça e da sobrevivência, suas consequências crástinas. Crástinas, eu disse? Mal me importa a noite de hoje. Mas prende-me com irresistível intensidade o que sobe de seus flancos, como antes do banho que a refresca, Lis, o cheiro novo e incivilizado de sua bocetinha.

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

Estudo com cristais 5. A menina dourada – próximo

Estudo com cristais 3. Cristal quase um relógio – anterior

Lis aparece em: 28. Carta com sarcófagos

Imagem: Gustav Klimt. Bosque de faias. 1902.

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Comentários

3 respostas para “Estudo com cristais. Lis (4/13)”

  1. Avatar de Danilo Diniz

    Fica difícil colocar minhas simples palavras para comentar um texto desse, mas sinto que devo deixar minha opnião, pois fiquei profundamente entretido com as nuances e a sensualidade com que se desenrola o conto. Parabéns Perce.

  2. Avatar de Maris Ester Souza
    Maris Ester Souza

    Querido Perce

    Reler seu conto é sempre um prazer…a cada leitura a sensação de primeira vez, de novas descobertas…sua escrita nos faz menos pudicos e conscientes de que o escritor pode romper barreiras sem o pudor do cotidiano…
    Tenho acompanhado sua escrita e recomendado, pois ela nos remete não a um mundo de sonhos, mas de muita realidade! Grande abraço! Maris Ester

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Sim, Maris, a literatura pode ser libertadora. A vida é real. Nossos desejos são reais. Legítimos. Obrigado pelas palavras, você está em sintonia com a proposta (sempre subversiva) da arte.

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