Office in a Small City por Edward Hopper

Café com neblina imprevista

O caminho para o trabalho, os dias úteis, calendário.
Supõe-se a agulha de um disco gigantesco, percorrendo as mesmas faixas conhecidas, o mundo à frente.

Piet Mondrian. Composição em azul, cinzento e rosa.1913

Mesma rua, algumas quadras, quem diria. Quem diria? Estela: “Ora, somos vizinhos de serviço”, ela dissera. Sim, de coincidências também se nutre a história. E por que não? Dona Norma herdara o prédio de um parente que não a conhecia, e Bruno, por um instante mais, outro menos, estaria vivo. “Você também trabalha no centro? Mas que coincidência!” – uma caretinha involuntária ao recordar isso. Franze a testa, sorrisinho de boca fechada, ele a está imitando em silêncio, meio cantarolado, não tanto com sarcasmo, mas tem vontade de fazer isso, por dentro, mesmo que com alguma afeição. A repugnância pode ser doce.

“Olha o bilhete pra hoje! Bilhete pra hoje! Pra hoje!”

Hoje? Tem certeza? Por que esse mesmo vendedor não enriquece com a loteria? Porque depende, como todos, de extraordinárias (argh!) coincidências. Até ela, uma garota inteligente…

“Até ela…”, deixou escapar enquanto caminhava. Como se já a conhecesse. É fácil, para ele, distorcer tudo.

Coincidências acontecem, claro, mas Júlio rejeita a maneira como as pessoas se referem a elas, sinais místicos que direcionam a realidade, a vida humana, algo assim. Quase toda a colmeia trabalha no centro, portanto… Desprezou a tempo suas ridículas estatísticas fantasiosas, sempre exageradas a seu favor. Decidira passar pelo café, ainda incrédulo. Manhã sob neblina. Sei como são essas coisas. Não vou encontrá-la. Também não me importa muito encontrá-la ou não. Verdade, não mesmo. Nada disso poderá nos salvar. Atravessou o canteiro, por pouco escapando de um motorista impaciente, veículo de despachos, autorizado. “Filha da puta…”, grunhiu em voz baixa. (“Filha da puta!”, gritou o motorista, com efeito Doppler.) Quase me atropela. Quando penso em morrer, não é por sua causa, seu… Pensa que está autorizado a tudo?

Passar pelo café, galeria transversal, lembra? Não, Júlio. Esqueça isso. Você sempre se arrepende. Encontros, amenidades. As mesmas perguntas, as mesmas previsíveis inquirições cotidianas com que se deflagram as convivências, as mesmas pequenas mentiras. Depois, trocarão exemplos edificantes de pessoas conhecidas, de como superaram dificuldades, dívidas, divórcios e dores de dente. Vamos, não seja tão implacável, não misture as coisas. Ela vai querer, naturalmente, que você se defina. Que me defina? Vá lá: um escriturário com mania de perfeição. Também exaurido. Hoje avesso à simetria dos calendários e às equações algébricas. Hoje atraído pelo café de esquina que o fará desviar-se do caminho mais curto, o menos oblíquo, que o leva inevitavelmente ao trabalho, como o ranço bem assimilado das religiões põe os cidadãos a andar em linha reta pelas ruas. O caminho para o trabalho, os dias úteis, calendário. Supõe-se a agulha de um disco gigantesco, percorrendo as mesmas faixas conhecidas, o mundo à frente. O caminho seguro é o caminho dos mortos, não é assim? Quanto a Júlio, nunca houve a marcha em direção aos céus ou à eternidade. Tudo o que podia encontrar estava disperso pelo mundo e à sua volta – só era preciso, às vezes, mover-se em círculos. Vencer a neblina. Não era o homem um produto da natureza sobre si mesma? E talvez fosse a consciência o resultado de um universo desejoso de conhecer-se, de interpretar-se por meio de alguma forma, de algum instrumento de busca semelhante a Júlio, como por meio de qualquer ser pensante, descontando-se algum exagero, entenda-se. Era preciso atirar-se à frente do espelho. Pensar numa questão já pensada. Rever os mesmos fósseis. Dizer outra vez. Ainda que tudo parecesse gasto. O disco crepitando sob a agulha ordinária, reconhecendo sulcos, como a própria comparação com a vitrola antiquada, a faixa das ruas e o ruído da agulha. Júlio estava vivo. Gasto. Um homem cinzento por toda parte, por ruas demasiado conhecidas. Sob a neblina. Percorrendo seus sulcos.

“Oi! Então, finalmente me encontrou. Como vai?”

“Mais ou menos. E você?”

Por que não a encontraria? Acomodou-se na banqueta.

“Bem melhor que você, ao que parece. Caiu da cama?”

“Eu mesmo me derrubei.”

“Daí o mais-ou-menos?”

“Estamos sempre mais ou menos. Sempre mais ou menos em alguma coisa. Sempre mais ou menos em tudo. Mesmo que o país estivesse em ordem, o que nunca foi o caso. Você fuma?”

“Não. Por quê?”

“Fósforos. Isqueiro.”

“Não tenho”, ela achando engraçado que ele continuasse vasculhando os bolsos, mesmo sem esperanças.

“Um isqueiro, por favor”, ele ao balconista.

“Isqueiro?”, o rapaz estranhando.

“Vamos, homem. Não temos a noite toda.”

Não podia negar que passara toda a semana pensando em desviar-se de suas ruas. Por fim, tornava real o convite de Estela. “Costumo passar por lá antes do expediente, por que não vai tomar um café comigo algum dia?” “Algum dia, com certeza. Obrigado por tudo.” O que já poderia ter acontecido, não fosse sua conhecida hesitação, um feixe de firmes decisões mal amarradas, especialmente em se tratando de conhecer uma pessoa nova. Para ele, nenhuma pessoa era nova. Ao contrário, pareciam repetir-se cansativamente. Eram todos mais ou menos iguais aos outros, mais ou menos iguais aos seus pais e aos seus amigos, exceto quando se diferenciavam de seu meio, o que não lhes permitia escapar à semelhança com outros dos seus, também diferenciados de seus respectivos meios. Nenhuma pessoa é nova, mas por que seria? Sabia que se dispersavam pelo mundo outros como ele, e também buscavam a arte, a religião ou acabavam numa clínica de repouso, como se bastassem palavras assim suaves e sugestivas, repouso, clínica, é só lembrar que, até algumas décadas atrás, metia-se o pensador num tratamento de choque ou sob um chuveiro gelado, felizmente disso ele havia escapado a tempo, não é mesmo? Noite das Vitaminas, banho gelado… Bem, bem. Não de todo. Quanto aos banhos gelados… Fechou e abriu os olhos, queria parar de pensar estupidamente em tudo. Pois não concluíra há pouco que era preciso revisitar as mesmas ideias, dizer tudo outra vez? Pediu um café para acompanhá-la. Pão de queijo. Dois desses grandes. Olhou ao redor.

“Não era assim há algum tempo”, intrigado, em dúvida. “Pintaram as paredes, acho.”

“Você conhecia este lugar?”

“Não com você.”

Estela riu, envaidecida. Júlio lhe sorriu e encerrou o sorriso muito rapidamente, tendo o cuidado de não parecer um canastrão galanteador. Imaginou que ela, mesmo usando cabelos curtos, se penteasse com gestos muito bonitos, movida pela distração e pela disciplina. Quase via essa imagem. Que coisa. Você não está bem, rapaz.

“Estela, você já leu Marcel Proust? Bastava que a senhora Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a avenida fosse outra.”

“Quem pediu café?”

“Não, não li. Que avenida? Quem era essa?”

“A avenida por onde ela sempre vinha. A tal senhora Swann… Obrigado. Está vendo? Basta que ele sirva a alguém café, em vez de leite, para que este lugar seja outro.”

Estela passou-lhe o açúcar.

“Acha que eu preciso de açúcar?”

“Não sei. Não sei não.”

“Ah, eu adoro essas coisas, sabe?”

“Que coisas?”

“Literatura.”

“Ah…”, ela um pouco abatida.

Bem, vamos ao café. Um primeiro delicioso gole para começar o dia, a droga do dia.

“Que falta de educação a minha não ter perguntado daquela vez sobre o seu trabalho.”

“Você estava péssimo! Você estava de um jeito…”

“Sei, sei. O que você faz?”

“Trabalho num departamento do Instituto Municipal de Meteorologia.”

“Sério? Você pode prever tempestades? Talvez possa me ajudar.”

“Sou apenas uma funcionária”, ela rindo. “Fazemos gráficos, estatísticas. Prestamos serviços à televisão, a universidades…”

“Você sabia sobre essa neblina?”

“Não. Estamos juntos nessa.”

Ovo cozido! Olha o ovo aqui!

“Mesmo que se anotassem num calendário todos os dias de cerração durante cem anos”, ele muito sábio, “seria sempre uma loteria prevê-los.”

“Não é assim que funciona, você sabe.”

“John Dalton”, ele muito culto, “manteve um caderno com observações diárias sobre as variações climáticas durante cinquenta e sete anos. Já ouviu falar nele?”

“Já. Deve ter sido o único maníaco a fazer uma coisa dessas.”

“Benjamin Franklin também guardava, sob o travesseiro, um diário do tempo.”

“Outro. Muito bem. Você os admira?”

“Não”, isso no mesmo tom, sem nenhuma rispidez, nenhuma agressividade.

Olha o pingado… Pin-ga-do!

“Não admiro ninguém.”

Esperava que Estela lhe dissesse, como sempre lhe diziam nessas horas: “Não precisa falar assim!”. Mas ela, simplesmente:

“É, hoje a neblina está muito densa mesmo”, olhando para fora, através dos vidros. “É raro isso, assim. Não se pode ver muito à frente, olha só…”

Maravilhosa. Especial. Não, espere um pouco, você mal a conhece, não caia em suas próprias ciladas, é sempre você quem inventa tudo, já sabe.

“Não. Como sempre. Não se pode ver muito. E quando se dissipa, outra espécie de nitidez nos cega.”

Estela parecia estar gostando do café, saboreava o momento, o pão de queijo. A neblina, lá fora.

“Eu tinha razão. Você é mesmo inofensivo.”

Tudo bem. Inofensivo. Tem razão. Mudar de assunto. Antes que ela o confunda com um poeta.

“Sabe, Estela? Um vizinho meu dizia que nunca se encontrou nada. E ele era um tipo que…”

“E você continua procurando.”

“Quem disse que eu continuo procurando?”

“Você não disse.”

Leite… Leitinho quentinho…

Júlio passou o dedo lentamente pelo lábio inferior, enquanto pensava. Estela de frente, ele sem perceber esquadrinhava seu rosto com minúcia.

“É verdade, talvez haja algo que eu queira”, os olhos dele detidos nos lábios dela, sem que ela o visse. “É fácil dizer que não sei o que seja, todos dizem isso. Acho que estou em busca de respostas que perdi. Que eu mesmo perdi. E que tantos outros não se importam em saber. Porque não são eu.”

Vontade de desenhar sobre o rosto de Estela, com o dedo, o que já era ela. Não se meta nisso. Ela já disse que tem um noivo, lembra? Que tal apenas conversar, não é bom? É bom. Uma manhã como as outras, rotina, melhor do que nada, não é? Fora essa neblina que… E ela hoje está menos agressiva, porque naquele dia…

“Que foi que você está me olhando?”, Estela sempre atenta.

Ei, não vamos começar tudo de novo. Distraído, não é?

“Você também está me olhando.”

Estela desviou os olhos. Havia diferenças de tom na cor de seu rosto. A cor da pele. Como seria nas mãos de Cézanne? Ou Matisse… Não exageremos. Redon se deteria em seus lábios, que o batom tornava esmaecidos como em um negativo de películas. De tanto envolver-se com a pintura, tornara-se ela também uma personagem das telas. Ou Júlio, querendo vê-la assim. Lembrou-se de Treze e das variações de luz e sombra características, que talvez só ele percebesse, incidindo sobre ela. Pensou também em Vanda, que fora um dia sua personagem iluminada por Gauguin. “Uma vez… Tive uma namorada…”, quase disse. Baixou os olhos ao café.

“Esse meu vizinho…”, com a estranha timidez de quem começa um discurso e ainda não tem as palavras. “… era um homem lúcido. Que os outros achavam estranho. Quanto a mim, considerava no mínimo curiosa sua relação com a arte, não sendo ele artista ou exatamente ligado a… Não importa. Ele buscava algo acima das pessoas comuns e até acima dos artistas. E poucos percebiam isso, mesmo que ele o dissesse. Mas ele nunca dizia.”

“Bom, o que ele dizia, por exemplo?”

“Eu me lembro que… que a obra de um verdadeiro feiticeiro era bela e terrível. Falando sobre música, sabe? Mozart, Paul Dukas… Que tal?”

“Interessante. Não sei se já ouvi isso. Talvez.”

“Você… é uma dessas raras pessoas que ele gostaria de conhecer.”

Estela retomou a naturalidade, sorriu.

“Ele? Am-ham… Quem sabe eu possa conhecê-lo um dia.”

“Não pode.”

“Não?”

“Ele morreu.”

“De quem é o pão com manteiga? Pão com manteiga… De quem… Mas que saco!”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

92. Lapsos de cegueira e lucidez – sequência

90. Cinzento por toda parte – anterior

Imagem: Piet Mondrian. Composição em azul, cinzento e rosa. 1913.

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