Office in a Small City por Edward Hopper

Não diga! Eu também…

Essa garota estranha, nesse apartamento bonito, preparou essa poção diabólica com boas intenções, talvez mesmo com carinho.
Ela adivinha pensamentos também. Um perigo.

“Desculpe, qual é mesmo o seu nome?”

“Estela. E o seu?”

Sim, o que ele merecia. Consagrando e consolidando seu caos de motivos siderais. O meu? Júlio. Muito bem. Fácil.

“Estela, me diga”, segurando aquela xícara enorme com as duas mãos. “Você costuma trazer estranhos para a sua casa?”

“Não. Mas vi que você era inofensivo.”

Sirene da polícia, a certa distância. Provavelmente a alguns quarteirões dali, lá embaixo. Júlio pensou que fosse por causa dele. Por causa do que ela disse. Por causa de… – não, não consegue raciocinar, é evidente, é um esforço enorme raciocinar agora.

“Obrigado. Aceito a ironia. Não me importo.”

Au! E com dor de cabeça, hein? Parece ainda pior. Sentia-se menos que inofensivo, um trapo. Caso de rendição rápida.

“Este apartamento é seu?”

“Não, mas não pago aluguel. O apartamento é do meu noivo. Do pai dele, aliás.”

Ah, sim. Noivo. Ainda existem essas coisas. Bom lembrar. Melhor ainda. Ajuda a definir uma porção de coisas.

“Ah, do seu noivo. E ele por acaso sabe que…”

“Não. E mesmo que soubesse…”

Não, melhor nem pensar. Ele não quer mesmo conhecer gente nova, está cansado de tudo, cansado desses vinte e poucos anos de vida – se bem que só alguns dos últimos foram realmente horríveis. Tem vergonha de dizer isso aos outros. Imagine: um jovem (um jovem!) cansado de viver. Lembra daquela senhora que você viu no supermercado outro dia, toda feliz, escolhendo frutas e frios, acordando cedo e até dirigindo um carro? Que lição de vida, que energia, que exemplo, que… dor de cabeça! Vamos, homem, continue bebendo. Essa garota estranha, nesse apartamento bonito, preparou essa poção diabólica com boas intenções, talvez mesmo com carinho.

“Está melhor, com o chá?”

Ela adivinha pensamentos também. Um perigo.

“Estou sim”, mentiu educadamente. “Muito obrigado pelo carinho.”

Não. Não! Não era para dizer isso! Não assim. Não era para… Sem problema, ela nem se incomodou. Nem ouviu direito, ao que parece. Sorri enquanto fala, olhe só para ela. Tranquila, segura. Uma referência.

“Faço esse chá para as minhas amigas também, quando elas perdem o controle. É ótimo.”

“Ótimo”, Júlio repetiu, sem graça. Pelo menos, ele conseguia não demonstrar interesse naquilo tudo, naquela situação vergonhosa ou naquela garota discreta, apenas curiosidade. Afinal, estava em um lugar novo, luz do sol pelos vidros, após uma noite deprimente e um vexame de que mal se lembrava. Olhou por um instante, entre a luz forte da manhã, o rosto dela, seus cabelos curtos. Não quer saber de nenhuma brecha, de nenhuma oportunidade com mulheres, já estava claramente decidido quanto a isso, muito menos com essa aí, bem à sua frente, que parece… parece… agressiva. Ela apenas o ajudou em um momento difícil, só isso. Coincidência.(Momento difícil, muito bem, vamos deixar assim, para evitar-se a autopunição com piores palavras.) E agressiva porque… porque afinal… porque parecia ser mais inteligente do que ele. Ah, então é assim que você escolhe as palavras, não é? Belos critérios. Não baseados em como pensa, mas em como se sente. Em como confusamente se sente. Que covardia.

“Seu noivo… Ele estava com você ontem?”

“Não, ele está em viagem. Umas amigas que me ajudaram. Ele deve chegar amanhã ou depois, nunca se sabe com certeza. É muito ocupado, muito dedicado, vive para o trabalho, sabe? Gerencia uma rede de seguradoras.”

Noivo em viagem, nunca se sabe… Não seja adolescente, ninguém tem tanta sorte, já estava decidido, lembra? Decidido? Sim, a não ficar vendo fantasmas. Oportunidades, coincidências, falsas conclusões. Nada de novas ciladas.

“Parece coisa de novela. Tudo bem, vá lá… Oh, minha maldita cabeça, como dói… Pronto, está passando. Menos pior, acho. Deve ser um emprego e tanto.”

“Aceito a ironia. As seguradoras são da família. Ele é um dos herdeiros.”

Ela não agride, não se altera. Apenas toca com o florete, pura esgrima. Noivo, herdeiro, seguradoras. Deve ser algum tipo de trote: uma câmera oculta na tela de Klee, no olho daquele passarinho esquisito, está gravando cenas da próxima novela das oito, é isso. Que horror.

“Talvez ele esteja correndo também em busca de mais luz, à maneira dele”, Júlio mais à vontade, filosófico.

“Talvez. E você?”

Muito elegante. Renda-se, bobo. Relaxe. Você está acabado, não aguenta essa parada. Certo, eu me rendo.

“Não sei mais.”

Último gole. Bravamente. Deixe que ela o esmague. Você é o arrogante provocador, ela está apenas se defendendo. E mostrando que não vai cair, sequer se abalar, com golpes de seu pobre sarcasmo, veja, é como se ela estivesse com o florete em riste, sorrindo da impotência do adversário, pronta para revidar qualquer novo movimento.

“Suas amigas ajudaram, você disse. Que coisa… Juro que não me lembro de nada.”

“Você não conseguia nos dizer seu endereço. Nem isso.”

“Meu endereço?”

“E se agarrou a uma delas. Não queria soltar, deu o que fazer.”

“Oh… Pode rir. Juro que não lembro.”

“Você a chamava pelo nome, não sei como.”

“O quê? Pelo nome? Que nome?”

“Vanda.”

“Oh, minha cabeça! Não é possível, não pode ser…”

“Não, tudo bem. Foi apenas engraçado. Só isso.”

“Não pode ser. Como era ela? Onde mora?”

“Ninguém se incomodou, fique tranquilo.”

“De onde você a conhece? Me diga.”

“A Vanda? Mal conheço. É amiga… de uma prima… do meu noivo”, dedo desenhando arcos sequenciais no ar. “Elas raramente vêm para a capital.”

“Virgem Santa… Se eu contar, ninguém vai acreditar.”

“Então, não conte.”

“Justo eu, que detesto coincidências. Minha cabeça…”

“O quê?”

Sua cabeça realmente doía. Doía, efetivamente – como diziam os antigos. Fechava os olhos, queria ver os ciprestes, as noites urbanas, qualquer coisa menos o rosto de Vanda, sabia agora, uma anã-branca irresistivelmente intensa.

“Acho estúpidos todos os que se impressionam com coincidências. Fazem dessas ninharias motivo de grande espanto ou felicidade.”

“Você pareceu impressionado.”

“É uma outra história, acredite. Quando alguém diz conhecer outro que também mora numa metrópole, ouve-se sempre: não diga, que coincidência! Ora, milhões de pessoas moram numa cidade dessas. Uns estúpidos. Ou quando se diz: não diga, eu também trabalho no centro, que coincidência! Quase toda a humanidade trabalha no centro, é o que parece.”

“Você também?”

“Infelizmente.”

“Não diga! Eu também, mas que coincidência!”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

90. Cinzento por toda parte – sequência

88. O azul-âmbar do dia seguinte – anterior

Imagem: Edward Hopper. Sala à beira-mar. 1951.

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Comentários

2 respostas para “Não diga! Eu também…”

  1. Avatar de Weiner Assis Gonçalves
    Weiner Assis Gonçalves

    Que ótimo, Contos, Dia comum, páginas de entretenimentos que nos conduz aqueles momentos que vivenciamos em nossa mente. Seus relatos são de mestre, mestre que sabe relatar a cena da sua imaginação, mestre sabe usar o seu dom, e o faz com perfeição. Um forte abraço deste seu fã.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro Weiner
      Se você está se envolvendo com esses textos com algum prazer, isso me gratifica muito como autor.
      Penso (sempre pensei) que a literatura deve ser prazerosa, por isso tento manter o interesse dos leitores trazendo-os de volta para o mesmo lugar de onde não saíram: o cotidiano. O dia comum. A aventura do dia comum.
      Para que não se tornem, os textos, um relato qualquer, é preciso pontuá-los com algum questionamento, sem tentar disfarçar as falhas recorrentes dos personagens (que somos nós) e também cuidar da estética da linguagem, encontrar essa dosagem que não os deixe cair no vulgar e que não romantize desnecessariamente a vida real.
      Acredito que grande parte do que os estudantes, em geral, consideram “chato” na literatura é por falta de linguagens adequadas a certos contextos.

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