Office in a Small City por Edward Hopper

Um puta abraço, os dois

Dava (e devia) a si mesmo a resposta que bem entendesse.
Era um guerreiro por sua conta agora.

16.06.2009. Dezesseis de junho de dois mil e nove. Pensando em inglês: June, the sixteenth, two thousand and nine. Bonito, não? Mas não importaria se fosse feio. Não vamos perder tempo somando e dividindo números, não é um truque. Não é uma charada, uma cifra, um código. Se quiséssemos, poderíamos fazer qualquer associação, sempre se acaba encontrando uma. Mas não levemos a sério. Não leva a nada. Não vale nada. A data é apenas verdadeira. Nenhum significado numérico. Foi só porque, nesse dia, algo começou. Nesse dia, aconteceu.

Levanta a capa de sua antiga máquina de escrever, anos sem uso, nem serviria mais para nada, claro. Claro que não. Porque agora… Agora as teclas enchem seus ouvidos, a vertigem faz desfilar páginas arrancadas do cilindro com felicidade, os textos prontos, os estampidos sequenciais de uma metralhadora louca, sobrepostos no tempo, registrando com fúria amostras de sua confusão e de seus ideais perdidos para sempre, mesmo que em meio a qualquer delírio reencontrasse mil vezes, entre rotinas e acasos, mil vezes as mesmas pessoas conhecidas, e elas mil vezes lhe perguntassem, por hábito ou por maldade: então, continua escrevendo? Não teria coragem de dizer que não desistira, que decidira não se render, que outra vez, revendo o teclado imperfeito, as linhas tornavam a decolar sobre trilhos, entre toques velocíssimos, freneticamente ousados, contínuos, sem trégua, a metralhadora em meio à guerra, uma guerra especial e secreta, a batalha que nunca cessava, compensando todas as vezes em que pensara que poderia viver sem isso, voltar ao mundo dos outros, onde ninguém escrevia nada, apenas passava, onde lhe perguntavam sempre se ainda estava escrevendo, enquanto envelheciam, esperando uma resposta que ele nunca dera, porque também aprendera com eles a mentir. Dava (e devia) a si mesmo a resposta que bem entendesse. Era um guerreiro por sua conta agora.

“Parei. Me cansava.”

“É porque você não tinha vocação”, uma dessas pessoas, disfarçando um ar satisfeito, como aliviada, ele não entende por quê.

“É, essas coisas (escrever) não são para nós mesmo”, outra, aparentando o mesmo alívio, colocando-o em pé de igualdade com ela, que nunca escreve nada menos dispensável e chato do que um ou outro poema falando em brisas vindas do mar.

Isso mesmo. É preciso admitir. Uma coisa ou outra. É preciso admitir alguma coisa. Ou não tem vocação ou é muito para você, enfim, é preciso contentar os outros. Deixá-los pensando o que melhor lhes couber, o que lhes trouxer algum alívio, preservando-lhes o ego de algum desgaste, mantendo-o em segurança entre o café da manhã e o jantar, com apoio da família, claro, mas nunca sob ameaça, menos ainda pela constatação, de algum sinal, ainda que incipiente, de talento alheio. É assim que se vive, não venha com essa de dizer tudo o que há em seu coração – lembre-se: a sua vida não é um livro aberto, não é! Os padres perderam o poder, e a Idade Média, que era doce, se acabou. E esses que hoje o observam cautelosos são aqueles que não puderam avançar, que não podem avançar, são os guardiões dos valores inventados, representantes de tradições apodrecidas, percebeu?

“Todos nós passamos por isso quando jovens, não é? Depois, compreendemos que o mais importante é o trabalho, a família…”

Todos nós? Todos nós quem? Passamos por isso o quê? Vontade de escrever romances? Mas ele não conhece ninguém que faça isso que ele faz. Não conhece ninguém querendo escrever romances. Como podem ser tão comuns? Todos quem? Como podem estar por aí, em toda parte, se ele nunca vê alguém como ele, interessado assim em escrever?

“Eu também escrevi muita coisa na minha juventude, compreende? Mas depois joguei tudo fora. Fui promovido, mudei de cidade, me casei, a vida mudou… Mas, se precisar, escrevo tudo de novo.”

Se precisar? Sério, escreveria tudo de novo? Em que estilo? Servindo-se de que linguagem, de que técnicas? Não vê que o tempo passou? Quem vai precisar disso? Será que vamos ter de lhe implorar, por favor, que escreva tudo de novo? Ah, não! Não nos deixe assim, frustrados. A literatura precisa muito de todo esse lixo emocional que você, entre arroubos de modéstia, houve por bem extraviar, em nome da maturidade, do bom exemplo e da família.

Danilo percebe, com o tempo, que o que essas pessoas pretendem dizer, de verdade, é: “Ah, que bom que desistiu! Não queria mesmo que competisse comigo.”; “Fico muito feliz em saber. Se eu não posso, com toda a minha formação, meus títulos e minha cultura, por que você acha que pode?”; “Quem você pensa que é, seu interiorano de classe baixa, mal letrado? Vou comentar isso com a minha esposa, tenho certeza de que ela concordará comigo e me apoiará. Você desconhece o poder da família, seu rebeldezinho sem religião. Você vai ver, eu tenho o apoio de todos. Espero que você se foda com toda essa sua literatura de merda.”.

Merda são eles. Só escrevem chatices, não têm uma ideia que preste, não demonstram criatividade nem originalidade, só a repetição de formalismos e estilos bem cuidados, próprios a agradar ao meio acadêmico, próprios, principalmente, a se agradarem uns aos outros, e se sentem letrados e cultos (alguns são mesmo), pois foram se tornando mais qualificados, mais eruditos, mais ferozes, e no fim só produzem textos pedantes, arcaicos e virtuosos, limitados e bem-pensantes, que podem ser guardados na biblioteca do arcebispo, entre sorrisos serenos e olhares pios, com aquele humor sempre sem graça, livros para toda a família, exemplos de vida, emoções previsíveis, confissões solitárias sem o menor atrevimento, sem o menor sinal de ousadia, uma historieta atrás da outra, um tédio enjoativo e detestável. Danilo, portanto, em seu limite: um jovem e pretensioso escritor de vanguarda, cansado de conviver com essa gente medíocre, egocêntrica, religiosa, com autoestima inversamente proporcional ao seu verdadeiro talento, cansado de conviver com essa gente hipócrita, essa gente chata, esses maldosos enrustidos, que minam sua incerta esperança na humanidade. Então, reencontra Verne.

“Cara, inacreditável ver você!”

“Dan, não é possível!”

Um puta abraço, os dois. Felizes de verdade.

“Pensei que tivesse morrido…”, Danilo entusiasmado.

“Não ainda. Muito tempo mesmo, hein?”, Verne e sua barba loira, seus cabelos quase brancos de tão claros, sua tranquilidade, seu ritmo próprio, a meiguice que só piora com o tempo. Mais alto e mais robusto que Danilo, quem o visse de longe pensaria em um forte guerreiro escandinavo. Depois, trocando uma palavra e um sorriso com ele, estaria de frente a um viking suave, como num sonho os vilões se redimem.

O que têm feito da vida, notícias dos caras, Morghini não anda bem, hipertensão, diabetes; Souto se separou, dois filhos, um casal; Valdinei viajando por todo o país, cargo importante na capital, vive de avião pra cima e pra baixo, sim, nunca subestimaram a capacidade dele, seria mesmo o bem-sucedido entre nós, tínhamos certeza de que ele acabaria assim. E eles dois? E nós dois?

“Estou sozinho de novo”, Verne sorri, tranquilo. “E você?”

“Também. Sozinho de novo.”

Riem, cúmplices. Sim, merece um copo de alguma coisa, vamos sentar por aí.

“Sozinho, mas… Eu conheci uma pessoa por esses dias. Uma advogada. E acho que nós estamos meio… Não sei, mas pode dar certo, eu gostei dela. Se chama Liana.”

“Ah, que bom. Acho que vou precisar de uma advogada, estou numa enrascada mesmo. Fui fiador de um parente, sabe? E o cara…”

Verne: mais cedo ou mais tarde, alguém sempre se aproveita de sua ingenuidade, por que não dizer de sua bondade? Pobre Verne, um anjo deslocado em uma sociedade de gananciosos sem alma.

“E então, está escrevendo?”

Com Verne, é diferente. Ele pergunta com interesse, com amizade, com reais boas intenções. Não, não escreve não, anda cansado de tudo, esses editores são um bando de oportunistas idiotas, não sabem porra alguma de literatura, só querem publicar livros de autoajuda, biografias de ricos sortudos e putinhas do mundo da mídia, nada do que eu escrevo nunca serve pra eles, uma merda total.

“Mas olha, isso não importa”, diz Verne, surpreendentemente amadurecido. “Isso não importa, isso não é você. Escrever era você, era o seu diferencial. Só você era o escritor da turma, só você gostava disso, só você fazia isso.”

“Ser o escritor da turma não parece ser uma grande coisa, não acha?”

“Eu sei, mas… Por que não gosta mais?”

“Não, não é que eu não goste…”

“Então, não é nada. Não é nada, ora. Puxa, Danilo, isso era o que fazia você contar pra gente aquelas histórias todas. Aquela do rapaz com a flauta de osso; aquela do inocente humilde que foi julgado no Céu e que deixou os anjos com ciúmes; aquela da filha do hospedeiro e do rebelde, o casal de fantasmas que se encontrava em segredo nas noites de lua… Nossa, era tanta coisa linda, tanta coisa tocante, mágica, eu lembro disso, tenho certeza que todos nós conseguimos lembrar de todas elas, não dá pra esquecer.”

“Essas histórias não eram minhas, você sabe. Eu nunca disse que eram.”

“Não, não, eu sei, mas era o que inspirava você o tempo todo. Você lia montes e montes dessas histórias e tinha uma porção de ideias, escrevia histórias novas…”

Para Verne, precisa contar. Publicou um livro sim: uns contos ingênuos, de escrita esmerada, elaboração cuidadosa, bem-intencionados, cheios de ternura e carências emocionais, enfim, um desastre. Não gosta mais dele, não pretende reescrevê-lo nem nada, pretende é queimá-lo todo, exemplar por exemplar, destruí-lo para sempre, se possível, torná-lo cinzas amargas e irrecuperáveis. Desde então, tem escrito coisas melhores, lido autores melhores, escreveu outro livro de contos, de muito melhor qualidade, diferente do primeiro, e os rascunhos de um romance com as questões e as crises de um jovem sensível e pensante (uma combinação fatal), romance praticamente pronto, só que ele não quer mais receber cartas de recusa das editoras, quer ter uma vida normal, sem frustrações acumuladas, uma vida como a de outras tantas e tantas pessoas que circulam por toda parte, que não se incomodam com literatura, que estão se lixando para os sonhos falidos dele, se ele quis um dia ser um contador de histórias ou um romancista ou um vereador ou um traficante, tanto faz.

“Uma pena. Porque eu lembro que isso… Isso era você, pra nós.”

É preciso dar alguma atenção à verdadeira pergunta de Verne, seu amigo real. Talvez valesse a pena voltar a escrever, já que não tem mesmo obrigação nenhuma de publicar. Por que não aproveitar o anonimato – e o esquecimento e o fracasso – para ser livre? E em vez de escrever: eles se reencontraram e se uniram num forte abraço emocionado, esses dois sinceros amigos de outrora, pode escrever: um puta abraço, os dois.

(Se não vão publicar mesmo, então fodam-se. E vida longa aos meus sinceros amigos de outrora.)

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

27. Apodrecendo ao seu lado – sequência

25. Invisíveis no intervalo – anterior

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Comentários

Uma resposta para “Um puta abraço, os dois”

  1. Avatar de Weiner Assis Gonçalves
    Weiner Assis Gonçalves

    Quem é rei nunca perde a majestade, portanto, não reclama, você é o cara.

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