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Anões na interpretação de textos
O próprio poeta-personagem mostra-se assim, sinistro e avesso à esperança.
Roman Jakobson, um dos formalistas russos, pioneiro na análise estrutural da linguagem, procurava valores nos textos literários que pudessem justificá-los em si mesmos, independente de seu contexto histórico ou social. Tomando como modelo o poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, ele viu nessa obra sinais representativos desses valores, tanto sob uma perspectiva formal quanto semântica. Bom, mas o que é isso tudo?
O poema mantém como um refrão melancólico a fala de um corvo no final de algumas estrofes: “Nunca mais” – em inglês, nevermore. Jakobson notou que, desconsiderando-se o som das vogais, que na língua inglesa muitas vezes têm sons quase idênticos, a palavra never, escrita de trás para a frente, torna-se reven, uma forma muito aproximada de raven (corvo). Por causa de sua angústia e pessimismo, o corvo diz seu nome invertido. O próprio poeta-personagem (o chamado eu lírico) mostra-se assim, sinistro e avesso à esperança, daí sua identificação com a ave agourenta. O fato de o corvo ter entrado em seu gabinete de estudos e pousado sobre o busto de Minerva (Pallas, no original), deusa da sabedoria, faz supor que a intelectualidade e o conhecimento acumulado do narrador não podem ajudá-lo nessa hora, nem mesmo amenizar um imprevisto estado depressivo, que teria encontrado um momento bastante propício para manifestar-se.
Pode parecer bobagem apegar-se a detalhes assim, que podem não passar de proveitosas coincidências involuntárias. Mas trabalhos como esse foram o ponto de partida para a evolução da interpretação crítica, estendendo-se ao domínio de outras artes. Tais métodos e modelos de análise são hoje aplicados a inúmeros outros campos do conhecimento, tendo deixado seu foco de estudos original, a literatura, agora incluindo desde produções cinematográficas a elaboração de vitrines. Mesmo assim, muitas pessoas ainda insistem na ideia simplória de que o processo de interpretação de textos configura uma questão pessoal, ou seja: cada receptor vê, em uma mesma mensagem, o que quer e como quer, com isso emitindo sua palavra final.
Apenas lembrando que a palavra texto (de mesma origem de têxtil, insinuando trama, ideias entrelaçadas) não significa apenas o texto escrito. Um filme, por exemplo, é um texto visual e sonoro, uma unidade completa de comunicação.
Em nossa literatura, tomando-se como exemplo o romance Iracema, de José de Alencar, podemos observar que o personagem do conquistador português, Martim, traz em seu primeiro nome o deus da guerra entre os romanos, Marte. O nome de seu filho com Iracema, Moacir (que magoa, que faz sofrer, no tupi-guarani), mistura letras dos nomes dos pais, com exceção da vogal o, que em língua portuguesa serve como indicador do masculino. Podemos notar também que o nome da personagem-título pode ser um anagrama com a palavra América, desconsiderando-se o acento. Assim, sua conotação se amplia, se carrega de novas possibilidades interpretativas: além de ser descrita como a virgem dos lábios de mel, ela pode ser também as terras virgens da América.
São amostras bastante simples, que podem ser observadas por qualquer pessoa. Em princípio, soam como curiosidades, podendo posteriormente ser usadas como importantes indicadores no contexto da narrativa. Seja qual for nossa interpretação disso, ela deve ser confirmada no objeto de estudo – no caso, o texto. Ou não terá validade além de um palpite pessoal.
Certa vez, uma estudante comentou comigo que participava de um grupo de estudos em sua igreja, um grupo que reunia pessoas interessadas em interpretação de textos. Esse grupo, após a leitura crítica da mais conhecida versão do conto folclórico “Branca de Neve e os sete anões”, havia chegado à conclusão de que os anõezinhos representavam anjos que Deus teria enviado para auxiliar a jovem protagonista. Eu quase imediatamente lhe disse, numa atitude mais involuntária do que racional, que não, que não podia ser aquilo. Mas não sabia ao certo o motivo dessa minha reação – afinal, eu nem tinha coçado a cabeça. Era como se algo me dissesse, num flagrante, que faltava algo relevante a ser considerado. Em seguida, observei que os personagens dos anões não agiam como anjos, não se comportavam como anjos, não como os anjos da tradição religiosa, na qual cumprem a função de mensageiros ou de protetores. Os anões, que trabalhavam na extração de pedras preciosas, não funcionavam como mensageiros, de nenhuma parte a outra, da parte de quem quer que fosse. Esses homenzinhos, que supostamente poderiam proteger a princesinha perdida, em princípio rejeitaram sua presença. Foi preciso um consenso para que concordassem em auxiliá-la, aceitando a barganha, proposta por Branca de Neve, de cuidar da casa, dos afazeres domésticos, em troca de hospedagem por tempo ilimitado. Em todas as vezes em que a rainha aparecia disfarçada de boa velhinha para tentar assassinar Branca de Neve (na versão original dos Grimm, isso acontece pelo menos três vezes), os anões não estavam em casa. Nenhum deles se prontificou a ficar por ali, com aquela jovem indefesa, a tentar protegê-la, mesmo sabendo que ela se encontrava perigosamente ameaçada por sua perseguidora.1
Dias depois, lembrei-me de dizer a essa aluna que o texto deveria conter as evidências de nossas conclusões. Que todas as hipóteses levantadas por nós, leitores, deveriam apresentar sinais que as justificassem na obra em questão, evitando assim opiniões avulsas que nos afastariam do desfecho consensual. Mais uma vez, o legado de Jakobson caiu em terreno infértil: ela me respondeu, serena e educadamente, como era de seu feitio, que os anões eram de fato anjos, pois havia sido aquela a conclusão de seu grupo.
1 Na visão de Bruno Bettelheim, autor de A psicanálise dos contos de fadas, os anões representariam os hormônios do crescimento, trabalhando enquanto a personagem cresce e passa por sua adolescência, perdida na floresta, até encontrar seu caminho, ao tornar-se adulta. Por essa mesma perspectiva, a caverna contendo preciosidades representaria algo mais profundo, na dimensão do inconsciente, ou mesmo o órgão genital feminino.
(O tema desenvolvido acima integra a palestra Veja de novo: relações entre textos visuais e narrativos, apresentada recentemente.)
Leia mais sobre o tema: Não me venham falar da lua
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Comentários
13 respostas para “Anões na interpretação de textos”
gostei muito do texto.
é um assunto que me faz refletir.Acho muito interessante essas interpretações de contos. Não faz muito li um livro muito bom que se chama Fadas no Divã, psicanalítico, falando e interpretando contos do mundo inteiro. Recomendo!
AbraçosBem, eu não concordo que os anjos sejam mitologia religiosa, pois eles existem mesmo, mas não enxergo os anões como simbolizando anjos. Eles são anões, mesmo, e cada um com sua personalidade no filme de Walt Disney que deve ser a melhor versão da história.
Caro Miguel
Na primeira versão escrita de Branca de Neve (Schneewittchen), compilada pelos Irmãos Grimm e publicada no início do século 19, os anões não tinham personalidades distintas nem mesmo nomes, agiam como um grupo. Ub Iwerks, um dos mentores da Walt Disney Productions, propôs que se criassem características próprias para cada um deles com o objetivo de cativar as crianças, pois os anões seriam o elemento cômico da narrativa – não eram no conto original. Foi um desafio criar tais aparências, personalidades e vozes diferenciadas. Ao chegaram ao sétimo anão, estavam se esgotando as possibilidades de dublagens da forma como pretendiam, e a equipe decidiu que Dunga ficaria mudo.
A interpretação de Bettelheim se baseia no original do folclore alemão.
Também gosto muito da versão da Disney.
Minha nossa, Hecton, vou chorar. Se continuar assim, vou proibir os amigos de postarem comentários aqui.
De sua amizade, pelo menos, tenho certeza.
Abração.Me impressiono sempre com a inteligência desse homem chamado Perce Polegatto. Tê-lo como amigo só nos agrega conhecimento, além de nos deliciar com seus contos e histórias.
Em minha opnião a interpretação é algo inteiramente ligado ao conhecimento e convicções do leitor. Não é à toa que se pergarmos algumas linhas daquele livro…é daquele mesmo, e mostrar pra 10 pessoas que o seguem, podemos ter 10 interpretações diferentes. Não sei, parece que em grande parte dos casos temos inconsciente a vontade de “modificar a história” ou absorver de modo como gostamos.
Gostei do texto Perce, como sempre.
Um forte abraço!!Caro Perce, não permita que a sua modéstia e timidez ofusque a verdadeira luz que brilha na nossa escuridão, oxalá eu tivesse essa sua veia de escritor, por certo seria um Isaac Asimov, ou quem sabe um Gene Roddenberry brasileiro, isto sem jamais olvidar o grande mestre Carl Edward Sagan.
Bom, diante desses mestres, só me resta ser modesto mesmo.
Professor Perce, o conhecimento que existe inato na sua pessoa, faz nós nos sentirmos privilegiados em poder recebermos algumas réstias da sua iluminação, assim algumas das trevas da nossa ignorância, por certo, serão dissipadas.
Um abraço.Caro Weiner, não seja exagerado, e isso não é falsa modéstia minha não. Não há nenhum conhecimento inato numa pessoa, muito menos em mim, que tive de ler e estudar muito só para me atualizar como professor. O que você acabou de conhecer é só uma amostra de estudos da minha área, não são descobertas minhas. Mas, claro, todos nós podemos “ligar as antenas” e aplicar essas observações a outros textos.
Isso é que dá ser muito amigo, não é?
Abração.
Considero que por muitas vezes as interpretações psicanalíticas se fixam de forma muito intensa na questão da sexualidade. E hoje sabemos que a Psicanálise não traz para nós apenas significações de ordem sexual para os problemas/situações/conflitos humanos. Mas essa visão de Bruno Bettelheim me chama a atenção, acho coerente!
Abração!
RafaRafaela, um mesmo texto pode comportar mais de uma visão interpretativa. Mas, seja como for, essa visão deve ser confirmada no texto em questão, observando-se as atitudes dos personagens, o desenvolvimento da narrativa e seus resultados, além de outros sinais. É comum que os chamados contos de fadas sejam carregados de conotações sexuais, pois eles são uma espécie de preparação para a vida adulta e, em geral, seus heróis e heroínas são adolescentes ou pré-adolescentes, recém-saídos da infância, como no caso da Chapeuzinho Vermelho ou do Pinóquio.
Os índices envolvendo a sexualidade são bastante comuns nesse folclore todo. É surpreendente que a princesa Aurora, a bela adormecida, termine por espetar o dedo no esporão de uma roca (um engenho ritmado, um mecanismo de tempo), sugerindo que tenha perdido a virgindade, admirando-se com seu próprio sangue, mesmo após seus pais terem tentado evitar isso por dezesseis anos, seu tempo de vida, confinando-a numa torre tanto quanto puderam. A maldição da rainha má não era tão horrível como parecia. Afinal, não era a morte. Todos sobrevivem a essas iniciações.
Grande Pere,
Sempre fantástico!!!!
Grande Abraço.
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