Office in a Small City por Edward Hopper

Enquanto seu ônibus não vem

Eu também fingia estar vendo um fantasma, para contentá-la.
Você valia qualquer mentira, você e os seus batons com sabores
.

Regina tem os lábios finos mas tentadores. Com a mesma nitidez daquelas noites, o rosto dela aproxima-se para mais um delicioso beijo, sempre um delicioso beijo – o nariz pequeno, as maçãs do rosto, os cabelos curtos e loiros soltando pontas irregulares ao redor das orelhas, o contorno de seu rostinho quadrado desaparecendo conforme os olhos de Danilo finalmente se fecham, antes tentando adiar ao máximo a visão da proximidade dela, e então aquela boquinha firme, decidida a possuir a dele, primeiro com pequenos toques e pegadinhas leves, que não duram muito.

“Mmmmm… Saudade…”, ela fala, comprimindo as palavras enquanto conduz o beijo.

“Saudade? De ontem?”, ele faz o mesmo, quase rindo, sem se soltar dela.

“Am-ham… Um-hum… Am-ham…”, ela se diverte, sorrindo e beijando ao mesmo tempo.

O beijo cresce, servindo a reter os minutos que seguem, entre a distração e o desejo, derivados da repetição de uns mesmos movimentos: bocas, línguas e dentes pressionando-se, chupando-se, mordendo-se, uma atribuição especial dos hormônios, um prazer único, em si mesmo. Então, passada a pressa da consistência, experimentada à força, agora por mais tempo se demoram, degustando-se aos poucos, como flutuando numa corredeira calma, amansada pelo esvaziamento das correntes e das quedas mais furiosas. Assim, não precisam tomar fôlego. A respiração vai voltando ao normal. Só as bocas não se dispensam, mesmo escapando um pouco pelo rosto e pelo queixo, logo retomando suas melhores posições, seu prazer central.

“Linda. Que delícia.”

“Um-hum…”, ela adora elogios.

Regina o faz sonhar. Regina Célia… (Não, você não tem o direito de dizer o nome inteiro dela, não se entusiasme assim, contenha-se, esses primeiros nomes já são por demais sugestivos.) Regina o faz pensar de verdade em ficar com ela – ficar, por toda a vida. Com ela. Isso mesmo: pela vida toda. Leva batons com sabores, coco, framboesa, chocolate, e o convida a experimentá-los em seus lábios. Quem não quer ficar para sempre com uma garota assim? Acomodam-se no velho e confortável Chevette, depois das aulas noturnas, à espera do ônibus dela, um intermunicipal barulhento e poluente, vibrante como um animal irritado.

“Que puta fumaça!”, ele vira o rosto, aperta o nariz, enojado.

“E o que é que você quer que eu faça?”, ela ri.

“Essa sua cidade…”

“Ah, cala a boca!”

“Que ônibus desgraçado! Ninguém troca esse óleo, manda arrumar essa fumaceira?”

“Para com essa merda! Vai se foder!”

Parecia-lhe admirável e fascinante que, de uma menina tão simpática, de um rostinho tão lindo, de uma boquinha tão delicada, brotassem fácil palavrões como esses – e como outros. Mas isso já é preconceito, machismo dele.

Quando ele a beija continuamente, certifica-se de que não pode haver prazer maior do que esse, não, nada desse tipo, não pode ser, nada tão bom quanto isso, nada mesmo. Sexo e orgasmo são outras coisas, coisas diferentes. Nenhum outro prazer se compara a esse. Ele a amou e não soube declarar-se, que velha história. Ela é frívola, alegre, maliciosa, não parece querer acabar envolvida com um cara como ele por muito tempo. Mas está com ele. Fica com ele ao fim de todas as noites de aulas, sem se deixar rotular como sua namorada, nada além de uma carona, por acaso o seu caminho, meu caminho, então vamos, fazendo ver que podem ter bons momentos juntos, sem planos, sem acordos, enquanto estiver bom assim e enquanto esse ônibus horroroso dela não chega. “A gente pode parar quando quiser”, ela sorri satisfeita, livre. E inclina-se sobre ele, tornando a beijá-lo com gosto, com vontade – como pode ter lábios estreitos e tão gostosos? Beijos que parecem não ter fim, mas é claro que têm, e sempre terminam com pequenas mordidas nos cantos dos lábios. Ela o conduz a algo gradativamente mais ousado, que ele finge não perceber, limitando-se pelo receio de errar com ela, como sempre. Pensa em respeitá-la, em não tocar seus seios, por exemplo, e hoje sabe que, com isso, com essa ponderação toda, a deixa frustrada. E se frustra também, com essa nuvenzinha de remorso, arrependido de não tê-la tocado. E de não tê-la vivenciado de tantas outras maneiras, o que os beijos só fazem sugerir, sendo amostras de selvageria e carinho, quase como ilustrando alguma sequência de atos eróticos convencionais. O que uma mulher pode pensar disso? Se ela não perceber que se trata de um jovem ingênuo, sensível e idealista, apesar de suas pretensas estratégias adultas e de seu possante Chevette, concluirá que não tem poder para seduzir um homem. (Imagine, Regina, você: não seduzir um homem?!) Como em outras ocasiões semelhantes, é ela quem, na primeira vez, volta o rosto rapidamente para ele, que está de cabeça baixa no carro, indeciso, constrangido pela falta de assunto, algo próprio dele em qualquer situação como essa, e o beija salivando muito, com movimentos de mesmo ritmo, como ensaiados, como se ela lhe prendesse a boca por um instante e a tivesse presa à dela mesmo quando o liberta. Ele apenas vive excitado e gratificado com esse ritual mágico: os beijos encantadores de Regina.

O inimigo chega, impaciente e ruidoso: ela tem que ir. Um último beijo, prensado entre sorrisos.

“Mmmmm!”, dedo na boca, apenas um toque, batom. “Tchau, lindo. Se cuida.”

(Júnia também, o mesmo tom de voz, costumava despedir-se assim. Por que será que as mulheres sempre lhe diziam: “Se cuida.”?)

Depois de tanto tempo, uma vontade latente de reencontrá-la e abraçá-la com força: Regina, que saudade! Lembra que a gente ficava tanto tempo assim, se acariciando e se beijando, como dois bobos? Na verdade, o bobo era eu, só. Uma vez, lembra?, ficamos em frente àquele casarão abandonado, que hoje não existe mais, e você pensou ter visto uma luz lá dentro. Nós dois acreditávamos em coisas sobrenaturais, ficávamos muito curiosos com qualquer chance de uma aventura assim, mesmo que nos fizesse suar de pavor. Você me perguntava se eu tinha visto também. Não, eu não tinha visto nada, mas respondia que sim, que achava que sim, eu queria ter visto de verdade, mas não era nada, não tinha aparecido nada, não para mim. No fundo, o que eu queria era ir embora logo, não por medo, mas para que você não ficasse distraída com qualquer outra coisa e assim voltasse a me beijar intensamente, como a gente adorava fazer. Mas você queria ficar ali, tentando ver assombrações.

Mas não era isso o que mais nos atraía. Encantavam-nos os tons de azul. Cinza e tempestades. Paredes salitrosas de prédios antigos. Recortes arquitetônicos ocasionais, criando passagens inusitadas que coincidiam maravilhosamente com alguns de nossos pesadelos, lembra? Não queríamos mais nada com o passado. Sim, era você quem me ajudava a sepultar ossos de fases extintas.

O que mais eu lhe diria hoje? Tanta coisa, talvez, absurdamente, uma descrição de todos os sentimentos que vivi enquanto estivemos juntos, que necessidade estranha. Por diversas vezes eu disse a mim mesmo que você seria minha eterna namorada, que ficaríamos juntos para sempre, ah, mas que delícia essa sensação, você era linda e nunca deixou de ser, acredito seriamente nisso, que o tempo não passou para você, que você ainda é linda em algum lugar que eu não sei. Eu também fingia estar vendo um fantasma, para contentá-la. Você valia qualquer mentira, você e os seus batons com sabores. Tudo, até você ir embora no bojo daquele monstro decadente que rugia e bufava fumaça. Era a minha juventude, a minha ingenuidade. Meu jeito de ser amado, fingindo estar de acordo com todos. Minha juventude, Regina. Entende?

Uma vez, você me visitou num sonho. Eu achei que tinha vindo se despedir de mim nessa mesma noite em que você tinha morrido. Era a minha juventude – e a minha juventude acabou, Regina. A sua não, a sua nunca vai acabar, tenho certeza. Foi só um sonho, só isso. Depois fiquei sabendo que você não tinha morrido nada, inclusive havia se casado de novo, em sua cidade. É que eu associava ainda umas coisas místicas a certos sinais. Mas era eu quem interpretava os sinais, equivocadamente, como hoje sei. O mundo é natural, como não pode deixar de ser. Não há nada sobrenatural, como eu queria que houvesse. Não existem fantasmas nem duendes nem anjos, nós só insistíamos nisso, obstinados. Eu estava esperando um fantasma. Mas não havia fantasmas naquela casa, nem em nenhuma outra. Mesmo que você ficasse comigo, que ficássemos juntos numa mesma casa para sempre. Mesmo assim, não haveria fantasmas: você morreria, e eu também. Sua imagem me apareceu em sonho, não você. Você não morreu. Eu invento, relembro e às vezes choro enternecido, amando você de uma certa maneira – você ou talvez a sua lembrança. Mas não há fantasmas, a não ser os que eu mesmo invento. Inventava, não mais. Porque não há nada, Regina. Não há nada.

Mas os meus sentimentos existem. Você e eu estamos vivos, e isso é importante. Não, não sei por quê. Só penso que seja assim, que seja importante. Escrevo por isso, porque algo aconteceu. Porque algo está acontecendo. Escrevo porque a vida existe. (Mas o que, afinal, está acontecendo?) E você me fez amar seus beijos completos, intermináveis, que me excitavam e punham à prova toda a minha sólida filosofia idiota, pois são esses momentos de prazer intenso, que parecem ser o auge de tudo que vivemos até então, o que faz um homem cair de joelhos e dizer: casa comigo. Quero preservar essas sensações que não têm preço, que destroem palavras. Casa comigo, Regina. Você é maravilhosa! (Só esses beijos, hein, minha filha?) Casa comigo, acasala comigo. Meus genes querem fazer cópias com os seus, vamos povoar este mundo com prazeres.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

22. O bobo foi à festa – sequência

20. Os mocinhos da matriz – anterior

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Comentários

3 respostas para “Enquanto seu ônibus não vem”

  1. Avatar de Perce Polegatto

    Jady e Cynthia
    É muito bom ouvir isso, obrigado. Para quem escreve, é um desafio constante reproduzir, tão verdadeiramente quanto possível, imagens e sensações. As falas dos personagens são, na prática, impossíveis de serem transcritas fielmente, por isso só conseguimos aproximações. Expressões como “Am-ham… Um-hum…” contribuem para a ambientação, para a verossimilhança, mas é claro que não passam de tentativas. A rigor, a escrita só consegue reproduzir com perfeição a própria escrita.

  2. Avatar de Cyntia Ushizaka
    Cyntia Ushizaka

    Perfeito, Pere!
    Você descreve tudo perfeitamente!

  3. Avatar de Jady Alves

    Parabéns mais uma vez. Belo e sensivel como tudo que você escreve… Estou aqui saboreando cada linha e cada beijo retribuido imaginando que beijar é bommmm… É muito bom, devanear… Idem. beijos e carinhos

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