Office in a Small City por Edward Hopper

O segredo das conchas

Ela parece a ponto de chorar. Os lábios tremem sutilmente.
Os olhos se fixam no colega.

A minha amiga Amanda Lourenço

“Não tem importância se você vai rir de mim, não importa mesmo.”

“Ora, Ana, imagine…”

Ela remexe a bolsa. Busca uma coisa. Algo se prende, depois se solta, em meio a algum ruído de chaves ou qualquer outra quinquilharia metálica.

“Eu trouxe isso pra você. Olha. Eu trouxe essas conchinhas.”

Entrega-lhe um pequeno embrulho, papel muito colorido, inteiramente preenchido com minúsculos desenhos de motivos infantis. Ele o recebe, solta uma fitinha branca, abre o saquinho, já identificando o ruído minimamente rascante, o tique-titique do roçar agitado das conchinhas. Olha dentro.

“O que… O quê?”

“Conchas. Conchinhas.”

“Sim, estou vendo. Sim, conchas. Estou vendo, mas…”, paralisado.

“Foi a primeira vez que eu vi o mar. Eu tinha dez anos.”

Ele fica ainda mais inerte. Ana Lúcia, de maneira avulsa, inesperada e carinhosa, lhe entrega… um presente! E ainda diz isso, vejam só. Uma nuvem cresce em seus olhos, que não piscam, e quem passar por perto poderá suspeitar de uma estátua de cera. Se isso é uma surpresa, agora sim ele constata que não saberá mais como lidar com essa garota que, sem saber, o atormenta e o confunde. Agora sim, ele pensa ridiculamente. Só me faltava essa.

“Fui com a minha mãe, com uma amiga dela. E vi o mar. Pensei que eu nunca fosse ver uma coisa tão bonita e tão grande no resto da minha vida. E não vi mesmo. Eu ficava com os cabelos soltos… Ah… E cantava em voz alta pra que a minha voz se perdesse no vazio do vento, no ar enorme. Ela se perdia, a minha voz. Eu tinha dez anos. Ninguém parecia me ouvir, eu podia gritar à vontade. O mar era muito, muito grande. E quando as ondas se moviam, todas as outras se moviam também. O mar se move todo em conjunto. Quando um pouco de água se move, tudo, todo o resto se move também. O mar, além de grande, sempre se move. É impressionante, não é? Fala a verdade. Como pode existir uma coisa assim? Que se move sempre, sem ninguém… Como podia uma coisa assim tão grande caber na cabeça de uma menina tão pequena? No coração de uma menina tão pequena…”

A estátua dá sinais de vida.

“Puxa, Ana, eu… Eu… Essas conchinhas…”

“No último dia, eu peguei uma porção de conchinhas, uma porção. Todas pequenas. Cada uma era um pedaço de uma coisa maior, mas muito maior, aquele mar que me atravessava e quase me fazia ficar louca. Louca de não saber, de não saber sobre o mar. Essas são a metade de todas as conchinhas que eu peguei naquele dia, que eu guardo comigo. Fiquei com metade pra mim. E quero que você guarde pra sempre essa outra metade.” Fecha a mão sobre a mão dele, que por sua vez fecha o saquinho amarfanhado, com as conchinhas dentro. Isso tem o tom sinistro de um inventário, um legado de quem pretende partir, como antes de uma longa viagem se procede a certas cuidadosas instruções.

“Ana, mas… Puxa, não que eu não tenha gostado, não é isso. É que… Isso foi tão surpreendente, tão inesperado. Eu não podia imaginar.”

“Eu falei, antes de você abrir, que eram conchinhas.”

“Não, mas não é isso. Quero dizer, por que você me trouxe essas conchinhas, por que pensou em mim, por exemplo?”

“Porque você… É que… Porque você é puro. Você é puro, entende? Porque você é inteligente, culto. Até meio elegante. Porque os outros caras iam rir de mim, eu sei disso, tenho certeza. Por isso, entendeu?”

“Rir? Rir de você? Quem pode rir de uma coisa tão… bonita, tão… inspirada, tão… íntima?” E já vai se esgotando esse seu vocabulário de emergência. Sorte que ela não depende de nada disso para continuar.

“Eles. Todos eles. Menos você. Você não riu.”

Ela parece a ponto de chorar. Fecha-se um sorriso rápido, não propriamente um sorriso como os outros e sim um cacoete simulando algum espasmo de alegria. Os lábios tremem sutilmente. Os olhos se fixam no colega.

“Eles só querem o meu corpo, sabia?”, sua voz se altera, como se desafinasse. Uns mínimos fonemas se perdem, como se caíssem à parte de sua fala. “Me acham uma estúpida, uma besta, sabia?”, agora desafinando mais claramente, em direção ao pranto. “Aposto que já te falaram isso, já te falaram essas coisas de mim. Não é?”

“Não, imagine! Não, Ana. Não. Que isso, não fica assim. Você é tão…” – tão o quê?

“Vagabunda, uma vagabundinha, uma biscate, é assim que eles pensam. É isso que eles pensam de mim! Eles me consideram uma biscatinha burra, só isso.”

“Que absurdo, Ana! Ninguém diz isso de você, que isso!”

Ela não chora. Abre e fecha um sorriso. Continua tensa, instável. Como se vivesse uma confusão de expressões faciais e não se decidisse por nenhuma.

“O que você acha que vai acontecer comigo?”

“Como assim? O que vai…”

“Eles só me querem na cama, essa é a verdade. Não me dão valor nenhum, não valorizam mais nada do que eu sou, nada, nada. Não, eu não vou chorar. Não vou! Não vou, entendeu?! Eles não merecem isso. Não vou! Eles acham que eu não tenho sentimentos nem nada. Só pensam em me foder, só isso. Só em me foder, sabia?”

Danilo quase a interrompe, chega a erguer um pouco a mão, vai pedir que ela se cale, que não diga isso, desse jeito, um ato impensado dele, instintivo. Não faz nada. Agora ele apenas se detém, atropelado pela ausência de adjetivos, sinceros ou não, porque ele quer, é claro, sempre o melhor adjetivo, não um qualquer. Escrever é uma coisa. Dizer isso, ali, na frente dela, para ela, exige malabarismos de que ele não se sente muito capaz. Ela vira o rosto, respira rápida e profundamente, com isso parecendo refazer-se de suas próprias palavras, uma lágrima brilha por ali. Depois, disfarçadamente, olha para baixo. Fecha o zíper da bolsa. Fica observando os próprios pés, estendendo um deles um pouco à frente do outro, como se conferisse algum detalhe em seus sapatos.

“O que você acha que vai acontecer comigo? Comigo, com a minha vida…”

“Bom, eu… não sei. Mas para de pensar assim. Não vai acontecer nada. Quer dizer… Não sei. Olha, eu vou guardar com todo carinho, juro. Acho que esse é o tipo de coisa que só acontece uma vez na vida de alguém. E você… acaba de fazer acontecer na minha, Ana. Ana…”

Pare agora, ele se força. Pare imediatamente. Não vá pedi-la em casamento por causa desse golpe de pureza e súbita confiança, não vá cair de joelhos e pedi-la em casamento por causa dessas conchinhas rosadas, não, não vá pedi-la em casamento aí, na esplanada em frente à escadaria da escola, essa fachada imponente e ilusória da faculdade, com essas colunas falsas, esses diplomas fáceis, não se iluda, pare imediatamente. Ela não é a mulher de sua vida. Ela é a mulher de seus sonhos. É muito diferente.

“Ana, como pode alguém…”, e para mesmo.

Ela sorri, quase instantaneamente. Parece ter afugentado a perspectiva do pranto. Terá se controlado? Ou é seu natural transitar assim entre um surto emocional e outro? Sim, é aquele mesmo sorriso que se desfaz pouco depois, também instantaneamente. Mas Ana não diz nada. Ela gosta de ouvir, quando não quer dizer. Como se o deixasse se debatendo consigo mesmo, em busca de palavras e também de se corrigir, amargamente, se fosse o caso. O sorriso vai e volta. Diminui e se abre outra vez lindo, como se perguntasse: “E então, não vai me dizer mais nada?”. Ou talvez queira apenas observar a reação dele, esperando, claro, algo positivo e instrutivo que Danilo possa lhe passar. Talvez espere mesmo aprender alguma coisa com ele, que é o bom aluno, que é o culto, o inteligente, o esforçado. Mas ele não sabe ensinar. Não viveu o suficiente para ensinar nada. Há aí um desencontro de intenções, que não é mediado pela idade deles, praticamente a mesma, mas pelas diferenças impostas por sofrimentos de espécies diferentes.

“Ana, sabe… A gente podia conversar mais.”

Só isso?

“Um-hum. Podia sim.”

Depois de tudo? Depois de tanto? Esse momento raro, essas conchinhas trazidas de tão longe – e de tão fundo.

“A gente podia… conversar mais.”

“Um-hum. Certo. A gente conversa por aí. Nós estamos sempre por aqui mesmo, não é?”, e outra vez aquele sorriso largo, claro, irretocável: desconcertante.

Ele a considera de alto a baixo, num lapso de olhos, não consegue evitar – nasceu homem. Olha o corpo de Ana Lúcia, naturalmente. Um instante de memória o acusa de já haver se masturbado algumas vezes por ela, secreto e sedento, salivando deliciosamente. E ela dizendo que os outros só querem seu corpo, confiando nesse inteligente inofensivo. Então, o que está errado? Por que ele também a deseja inteira, na cama, ao fundo de uma magnífica noite de prazeres? Porque ele é só mais um patife, um canalha como os outros. (Um patife, um canalha… – palavras que emergem de uns seriados que costumava ver quando criança.) Será ele pior do que os outros, talvez? Sim, por desejar a mesma coisa que eles, porém mentindo a si mesmo, agindo como um personagem sensível, que não tocará a amada se não receber a devida autorização, entre flores ritualísticas, se isso por acaso não fizer parte de todo um sistema de carinhos e ternos sentimentos declarados. O amante na sacada. O cavaleiro da rosa. O… – ou é apenas mais um idiota que não consegue ousar. Sim, provavelmente isso.

“Eu preciso ir. Semana que vem é semana de provas. E a gente tem que… Bom, é isso. Tchau então…” Beijo no rosto. “A gente se vê.”

Tem nada! A gente tem nada! Ela não estuda para provas, ela não se importa com as provas, provas o cacete! Mas por que ele não pode ousar, por que não a chama, não insiste? Por que não a convida para qualquer coisa? Porque ela se negará, claro. Não quer nada com ele. Essa do embrulhinho com as conchas foi pior do que tudo: ela o vê como um pateta sensível, que escreve versos (isso, pelo menos, é verdade, isso dos versos, bem entendido), tão diferente dos outros, desses que já a provaram eroticamente, brutamente e (ele tem que admitir, doendo-lhe a alma) gostosamente. Ele não, que ele serve é para isso, para essas coisas afinal. Para quando ela for eventualmente assaltada por algum surto infantil, algum delírio entre momentos íntimos que não puder controlar nem dividir com aquele bando de… Sem palavras agora. Asfixiado em silêncio. Maldita vida. Maldita mulher, malditos homens… Vontade de matar todo mundo.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

18. Um dia, você abriu o jornal… – sequência

16. Tim-tim com suaves suspeitas – anterior

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Comentários

11 respostas para “O segredo das conchas”

  1. Avatar de Maris Ester Apdo de Souza
    Maris Ester Apdo de Souza

    Oi Perce
    Excelente material, assim como seus fãs estou acompanhando seu romance passo a passo. Aproveito para convidá-lo a participar do Concurso “Grandes Empresas na Literatura”, categoria Crônicas, pois acredito que vc tem um grande potencial para ser o ganhador… lembre-se que o vencedor ganha o livro publicado! Enquanto isso acompanho a trajetória de Danilo que nos aguça com sua aparente inocência. Grande abraço! Maris

  2. Avatar de Humberto

    Poxa, que interessante! agora que li os comentarios e vi que esse texto em específico faz parte de um romance. Legal, gostei da ideia, gostaria de ler o livro depois. Abraços

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Humberto
      Sobre esse texto das conchas, ele é parte do romance que estou publicando aos poucos, todo final de semana. Estes dois outros textos também são parte dele:

      Mas como isso começou?
      http://percepolegatto.wordpress.com/2011/02/05/mas-como-isso-comecou/

      Todos nós, de vez em quando…
      http://percepolegatto.wordpress.com/2011/02/12/todos-nos-de-vez-em-quando/

      O romance trata de um casal – Danilo, com seus quarenta anos, Liana, trinta e poucos anos. Eles acabaram de se conhecer, estão num motel “saboreando um período de encantamento de namorados, depois de uma trajetória de relacionamentos equivocados e mal sucedidos para cada um”. Muitos anos antes, uma ex-namorada de Danilo (Ana Lúcia) se suicidou e, conforme ele conta sobre isso à sua atual companheira, vai caindo em contradição a ponto de sugerir que foi ele quem a matou. Aos poucos, Liana vai ficando desconfiada e com medo dele. Começa então um jogo de gato-e-rato cheio de sutilezas, pois ele não tem certeza se ela está suspeitando dele ou não.

  3. Avatar de Humberto

    Grande Professor, outro texto interessantissimo. O engraçado é que parece o mesmo personagem do outro conto: “Como isso começou?”…rs
    Me identifiquei muito com os personagens, pq eles vão muito a fundo no universo masculino da adolescência, principalmente no que diz respeito aos meninos/homens que não têm facilidade em lidar com o sexo oposto, aqueles que são “perfeitos”, “certinhos”, mas que no final das contas só podem ser no máximo melhores amigos, acho que até mesmo por falta de ousadia, confiança…
    Enfim, acho que esse seu viés daria um bom romance…
    Abraço.

  4. Avatar de Marcos

    Gostoso acompanhar as surpresas do Danilo e o descobrimento dos sentimentos e pensamentos da Ana. Senti um gostinho ácido saboroso. Parabéns.

  5. Avatar de MARIA DE FÁTIMA MENDES DE ARAÚJO

    Nesta crônica, em alguns momentos Ana e Danilo não sabiam que palavras dizer… vou imitá-los e sintetizar meu comentário em apenas EXCELENTE!!! Parabéns.

  6. Avatar de Regiane Araujo

    o que mais Ana queria , além de entregar suas conchinhas para Danilo?
    e Danilo se tivesse tentado sera que não conseguiria alguma coisa?

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Aos poucos, você vai saber.
      Esses textos vão continuar a cada final de semana. Eles formam um romance que pretende driblar sua expectativa.

  7. Avatar de Adeiltoncalvisc
    Adeiltoncalvisc

    Adorei! Bem diferente, as vezes em nossas vidas em momentos de incertezas, o que fazer? entre pensamentos vagantes as vezes acertamos e as vezes erramos, mas muitas vezes nossas duvidas são treidoras e podem nos fazer perder um bem que poderiamos ganhar se não fosse medo de errar “shakespeare”. parabens pala cronica muito boa.

  8. Avatar de Hecton

    É uma inocência misturada com “descorberta” as sensações que personagens passam pra mim. Como se fossem um caderno em branco….sendo escrito pelas aventuras e sensações do momento.

    Está nos meus favoritos. 😉

    Abraços.

  9. Avatar de Jandyra Adami

    Adorei a crônica, bem diferente das que tenho lido. A inocência de Ana e a surpresa do rapaz, diante da surpresa que Ana lhe proporcionara, lembrando também que ele a desejava na cama, como os outros que ela citou
    Parabéns Janda

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