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Todos nós, de vez em quando…
Eles querem a informação, têm que manter você viva, enquanto interessar…
Cris e seus periquitos australianos. Eram dos pais dela, melhor dizendo. Ela morava com eles – com os pais e com os periquitos. Havia um grande viveiro na área externa do apartamento, que tinha o privilégio de ser no térreo. Cris convidou Danilo e mais uma colega a estudar inglês em sua casa nessa tarde, além de traduzir umas letras de músicas porque queriam – no fim, é só o que fazem, isso das letras das músicas.
Os periquitos, idênticos a não ser pelas cores, azul, amarelo, branco, observam os jovens humanos de certa maneira, propõem uma mesma ideia, movem-se com os mesmos gestos de asas, estão todos soltos ali, pelo chão e instalados em diversas alturas, sobre engradados, xaxins de muro e pequenas jardineiras, o viveiro aberto.
“Eles não fogem, Cris?”, pergunta Danilo, neutro e sem graça, ainda segurando o caderno e um livro, até a caneta na mesma mão, desajeitado.
“Estão acostumados.”
Ela se aproxima de um branquinho, brinca com ele. Outro se afasta de Cris com uns pulinhos rápidos, empoleira-se em uma grade ornamental, perto de um vaso enorme. Ao fim da tarde, voltam todos ao viveiro, por sua própria conta, ela tranca a portinhola, pronto, outra vez protegidos.
“Já voaram até aquela laje ali, olha. Mas voltaram. Não é, meus queridos?”
Danilo a observa enquanto ela lhe mostra os caminhos do apartamento. Nem precisava, é bem fácil, mas o que vale a pena é esse jeitinho dela: Cris é tão bonitinha, talvez esteja apenas se mostrando um pouco mais, orgulhosa de seu viveiro, alguma projeção de si mesma, além das divisões e passagens óbvias entre os cômodos.
Chega de conhecer a casa. Vamos para a sala, estudar. Os pais de Cris, com os quais ela tem uma ligação afetiva muito forte, aos quais costuma sempre se referir, dos quais sente orgulho e pelos quais demonstra profunda gratidão por tudo o que lhe proporcionam, não estão em casa.
“Viajaram, não lembra que te falei? Voltam amanhã.”
“Não.”
“A Patrícia não vem. Ligou agora mesmo, disse que não ia dar. Depois a gente passa alguma coisa pra ela, tudo bem?”
Quando Cris liga o aparelho de som, um belo três em um de linhas retas, umas luzinhas verde-semáforo, em escadinha, se acendem numa sequência rápida, ativando-se a primeira delas, ao alto, vermelho-rubi: pronto, a rádio está automaticamente sintonizada, as duas caixas acústicas imponentes, escuras e austeras, reverberando, uma em cada canto da sala – como é rápido isso aí, não dá pra contar até três e já se ouve música, após um mínimo estampido seco, só quando se aperta o botão power, é a energia elétrica, os alto-falantes reagindo.
Quando a nossa mãe acordartodos os filhos a verão,
todos os filhos saberão…
“Isso é bonito, não?”
“O quê? Ah, a música?”
“A música, é. Tudo fica mais bonito quando tem um significado. Olha só. A nossa mãe. Nossa pátria. Quando seus filhos se conscientizarem…”
Ela, uma risadinha rápida: “Você consegue ver isso tudo, é?”.
“Não é difícil, Cris. A ditadura ainda não acabou totalmente, se é que vai acabar. Mas parece que sim. Tomara que sim.”
“Não ligo muito pra essas coisas, sabe? A ditadura não é tão ruim assim.”
Ele estranha isso, estreita os olhos instintivamente, nunca tinha ouvido alguém dizer que a ditadura não era ruim. Seria interessante perguntar por quê. Pois parecia, em consenso comum, que não haveria de restar absolutamente nada de bom do período ditatorial que definhava, nem sob o ponto de vista humano, nem sob o ponto de vista econômico, nem sob quaisquer, que se imaginassem, outros pontos de vista. Mas não é o dia nem a hora para isso. Muito menos a pessoa.
“Deve estar acontecendo com a gente o mesmo que condiciona esses periquitos. Estamos acostumados.”
“Não ligo muito pra isso. Não gosto de ficar pensando em tudo, é muita coisa.”
“Não sabemos mais voar. Voltamos sempre pra onde a gente estava antes, sem reagir.”
Ela não quer saber dessa conversa, é visível. Danilo percebe, ao menos, que está puxando algo fora de propósito ali, mas não se sente confortável em saber que sua geração não luta nem lutará como a anterior, uns jovens que até há poucos anos enfrentavam opressores violentos, abrindo mão de seu conforto, arriscando a vida. Leu recentemente o depoimento de uma ex-guerrilheira, presa e torturada, agora anistiada, que considera a ditadura militar a responsável por matar, nos jovens, a vontade de fazer política.
“A nossa geração… Será que conseguiram nos matar ou… nós nos deixamos morrer? Estamos acostumados… Mas isso não deve ser bom.”
“Não ligo pra política, sabe? A vida já é muito complicada. Não aconteceu nada com a gente, não é? Nós estamos bem, não estamos?”
“Nós? Quer dizer, o país?”
“Nós dois. Não aconteceu nada com a gente. E nós dois estamos bem, não é? Vamos lá, quer uma caneta? Ah, já tem? Qual vamos ouvir primeiro?”
Sentam-se, ao lado do toca-discos, em um sofazinho estreito, confortável, meio fundo, quase apertado para duas pessoas. A rádio acaba de mudar a música, agora entra Angélica, do Chico Buarque – os censores não a proibiram porque não tinham capacidade de enxergar uma segunda interpretação, ou ao quê, ou a quem claramente se referia. Danilo sente orgulho dessas pequenas vitórias, a engenhosidade de certos artistas e articulistas que conseguem ludibriar os broncos do poder. Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar… Que coisa triste. Muito, muito triste mesmo.
“Cris. Você… já pensou em se matar?”
“Ai, credo! Claro que não. Eu amo meus pais.”
Cris controla o aparelho, esticando o braço e torcendo a cintura, torcendo-se toda. A blusinha sobe um pouco. A calça jeans, justa, a desenha ao máximo. Descalça – ela havia soltado as sandálias sobre o carpete, perto da porta, ao entrar.
“Não, mas… Não é isso. Fico pensando em como aqueles estudantes presos aguentam as torturas. Você sabe que tem torturas, não sabe?”
“Um-hum. Sei.” Escolhe um disco, os cabelos caem de lado conforme ela se curva e se estende.
“Não sei como eles aguentam. Quer dizer… Alguns não aguentam. Acho que eu me mataria.”
“É, eu também…”, faz ela sem se afetar, apenas retórica, contando, com a ponta do dedo, as faixas do disco.
“Mas eles não deixam. Você está presa. Não consegue se matar. Eles querem a informação, têm que manter você viva, enquanto interessar…”
“Essa aqui, você conhece? Duvido que tira inteira, quero ver.”
Discos previamente selecionados, parece ser. Baladas dos Beatles são mais fáceis, And I love her, Yesterday, pouca coisa, dá pra pegar tudo. Kate Bush é um desafio, que coisa, ela pronuncia mal, será? Elton John, umas sim, umas não: Skyline pigeon ele canta devagar, vamos lá, resultados promissores aí, mas essa Goodbye yellow brick road dá o que fazer: howl, plough, penthouse… É que nos falta vocabulário, não é? Deve ser. Wise men say… Olha que traiçoeira essa, lenta mas difícil: We all fall in love sometimes. Linda, não? Linda. É sim. Pena que ninguém faz nada assim por aqui, só na Inglaterra. Eles não fazem pensando em nós, só na gente da língua deles, é claro. Por que não seria? Não vamos passar a limpo? Não, ela quer trocar o disco, quer mostrar outra, esta aqui, olha. A agulha chiando sutilmente antes do primeiro instrumento, suave e carinhoso: James Taylor.
“Conhece essa?”
Her town too. Não muito. Ficam tão próximos, cada vez que essa colega se volta, que um simples movimento de cabeça faz tocarem alguns fios soltos dos cabelos dela na face e no pescoço dele.
“Mais ou menos.”
“Gostaria de conhecer melhor?” Malícia, quase um sorriso, rosto inclinado, olhando de baixo para cima, que bonitinha.
“Ah, sim…”, ele nervoso, no fundo desejando que nada aconteça. Está triste, é isso.
Não sabia que ela estaria sozinha, não viera pensando em nada, a não ser estudar, nada diferente do esperado. A colega que faltou em cima da hora (teria sido armado?), mais amiga dela do que dele. De novo ao caderno, anota o que pode, não é difícil essa aí também, só exige atenção. Cris vai buscar outra coca com gelo.
“Vou pôr de novo”, ela se estica, braço da agulha, mira a faixa: Taylor outra vez. “Deixa eu ver o que você escreveu…” Avança um pouco à frente de Danilo, lendo no caderno, próxima demais, seu rosto quase tocando o dele, o que já fazem, com cócegas, aquelas finas penugens que prenunciam os cabelos ao lado da orelha dela. Cris murmura qualquer coisa, lendo ou não em voz baixa, mmm… mmm-hmm… Ele afasta o texto, rápido, tirando-o de sua frente, rindo do susto dela, e lhe dá com o caderno na cabeça, carinhosamente (“Para de ronronar, lê direito.”), é um espiral de capa dura, ilustrado com umas manchas aleatórias que eles chamavam psicodélicas.
“Ai, que susto, quase caiu minha coca”, ela ri.
“Desculpe…”
“Desculpo se me responder.”
“Fala.”
“Por que você não gosta de mim?”
“Eu… o quê? Não gosto de você? Mas quem disse…?”
“Quero saber por que você não gosta de mim.”
“Que isso? Mas como não? Cris, de onde você… Eu já disse que…”
“Não disse nada. Você está aqui comigo e não disse nada. Por que não me beijou ainda?”
“O quê?!”
“Você ouviu.”
Danilo mudo, nem consegue piscar os olhos. Cris o olha de frente, tão bonitinha quanto antes, quase sorrindo e esperando. Na verdade, ela é bem bonita, sim.
“Cris…”, ele quase sorri, fazendo não com a cabeça, como se dissesse: “Não me leve a mal, colega. Não é com você.”.
Mas apenas simula um gesto, ela o abraça, carinhosa. Ficam assim por um tempo, respirando no ombro e na orelha um do outro, afagos caninos nos cabelos. It used to be her town… Sem se soltarem, vão deslizando os rostos um no outro, beijando muito levemente pequenas porções de pele e cabelos, então os queixos, por fim as bocas. It used to be my town too… Isso se estende por algumas faixas, o disco vai até o fim.
“Você é linda”, ele se entrega.
“Você acha?”, Cris muito meiga.
“Você é. Você sabe que é. Que tal? Foi bom?”
“Nada mau”, Cris realizada. Dócil. “Está sendo…”
Como é bom poder não frustrar alguém. Repetem-se na memória dele as palavras dessa colega após o beijo, nada mau, as palavras e o sorriso, a delícia dessa boca gelada de coca-cola, pelo menos no começo, tudo sustentado em silêncio, apesar das canções todas flutuando na sala. O toca-discos roda esta e aquela outra, porque todos os músicos nos dizem a mesma coisa. Tudo sempre converge a um mesmo desejo que se repete e se renova. Ao fim da tarde, vão juntos até a porta, abraçados, agarrados e quase se beijando o tempo todo. Passam pela área aberta, os periquitos australianos já estão se recolhendo, era verdade, eles voltavam porque queriam. Sim, vamos nos ver. Por que não? Também gosto de você (tão bonitinha…). We all fall in love sometimes.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
29. Alan nos deixa – sequência
27. Apodrecendo ao seu lado – anterior
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Comentários
3 respostas para “Todos nós, de vez em quando…”
Maris
E isso denota a sua sensibilidade também, porque o leitor é a parte que falta ao escritor, que reage ou não à sua tentativa de expressar situações que alguma vez o atingiram (ou mesmo inventadas, supondo que o atingiriam se fossem reais) com o que ele julga ser a melhor maneira, a melhor linguagem, dentro de seus limites como intermediário entre o mundo das ideias e a dimensão das palavras.Maravilhoso texto Perce, delicado, objetivo! Faz com que nos voltemos a uma época inocente, sem os medos de hoje, um tempo onde éramos puros ao vivenciarmos emoções.Hoje tudo passa e poucos guradam na memória um momento tão especial quanto curtir Elton Jonn, ir a uma brincadeira, curtir um simples passeio e vivenciar bons momentos com amigos… A maneira com que descreveu os periquitos denota sensibilidade! Um abraço!
Realmente a década de setenta foi muito legal. Skyline Pigeon eu cantei em Pelotas em um boteco – mais bêbado que um gambá (as drunk as a Lord, como dizem os ingleses!). Foi uma época em que éramos mais inocentes – inocentes; não imbecis! A música para nós teve um significado maior do que tem para esses jovencitos de hoje. Tinham mais conteúdo do que o que se faz hoje em dia (que eu não tenho coragem de chamar de música!). Acredito que fomos felizes e privilegiados porque vivemos em uma época onde as pessoas eram mais criativas – podiam voar towards the dreams we’ve left far behind. Hoje, elas querem se sentir atoladinhas… Que Deus nos acuda!
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