Office in a Small City por Edward Hopper

A foto deles dos Beatles

Temos uma ideia, temos um sonho. Somos diferentes dos mais velhos.
Não cultivamos sua visão de mundo, seu patriotismo agressivo, suas crenças falidas.

“Uma foto, pessoal. Fica assim, na mureta, olha pra cá.”

Estão na praia, outra viagem de negócios, um grupo de funcionários no mesmo hotel barato, agora um tempinho livre. Danilo deseja secretamente que só apareçam eles quatro na foto, ele, Valdinei, Verne e Souto, que se bata logo essa foto antes que o Luís Carlos e o Rodrigo voltem, cheguem, apareçam, que sejam só os quatro, como os Beatles, uma das inspirações de todos eles, que gostam de música, além de finanças. Esse número lhe parece bom. Quatro pontos cardeais, quatro estações do ano… Se pudesse, escolheria os fotografados, como na escalação de um time. Se estivesse em um sonho, diria, sem demora: “Façam como eu digo. Ajudem-me a ser um Beatle.”. Mas os outros dois fariam palhaçadas e caretas, mostrariam a língua na foto, eles não pensam em nada, não se importam com o resultado da imagem, tudo é estúpido para eles, tudo para agora, nada para o depois, não têm a sintonia e o equilíbrio de seus três amigos, não percebem nada além de sua rotina idiota, sem sensibilidade, sem filosofia, enfim, uns animais. Luís Carlos não chega a tempo, só sai na foto seguinte, e faz mesmo idiotices, chifrinhos atrás da cabeça de um deles como se isso fosse a coisa mais criativa e espetacular do mundo. Rodrigo está se lixando para isso tudo, nem chega perto, não quer sair em porra de foto nenhuma, abre outra latinha, está apreciando longamente umas meninas meio nuas ali perto.

Dias depois, sobre essa mesma foto amargurada, Danilo dirá a Valdinei, num dos chopes de quinta-feira:

“Sabe, Val? Vê se me entende. Esses caras não têm sensibilidade, não são como nós. Você escreveu aquele poema do flautista e eu escrevi…”

De cores diversas.”

“Sim, mas não é o meu predileto, você sabe. Eu acho que a vida tem que ser melhorada, tem que ser algo mais estética, não com essas fotos em bando, num churrasco, numa praia, todo mundo rindo com a latinha de cerveja na mão, como se dissessem: vejam como sou feliz, bebo mesmo, churrascão! Mas não pensam nas vacas.”

“Que vacas?”

“As vacas mortas para o churrasco.”

“Ah…”

“Não pensam que essa foto vai pro lixo um dia, não vai significar mais nada no futuro. Quando falei de nós quatro, você, eu, o Souto e o Verne, era porque nós temos mais ou menos a mesma idade, porque a foto iria parecer, por exemplo… (fingiu que hesitava) uma daquelas fotos dos Beatles, sabe, que são tão boas, aquelas posições se harmonizando no espaço entre as margens, as expressões, os sorrisos, os cabelos, tudo em sintonia, passando alguma outra coisa como: temos uma ideia, temos um sonho. E estamos unidos, somos diferentes dos mais velhos. Não cultivamos sua visão de mundo, seu patriotismo agressivo, suas crenças falidas. Temos coisas importantes e belas a fazer. E não gostamos de churrascos.”

“Nossa!”, reage Valdinei abrindo um pouco mais os olhos. “Brilhante! Eu já pensei muito umas coisas assim, mas não sei dizer, só penso. Entendi mesmo, acho legal. Essa foto poderia ter ficado mesmo muito boa, você tem razão. E o Luís Carlos que se foda!”, abrindo uma risada em soluços, sua marca registrada.

Que maldade. Luís Carlos excluído, porque não combina com a harmonia sonhada. Porque não tem cabelos como os deles. E assim, vão todos se justificando por tudo, sempre inocentes. Os Beatles também concordaram em expulsar um ou outro baterista, tudo em nome da estética, da arte, da posteridade, do sucesso. E porque, mesmo parecendo rebeldes, obedeciam ao empresário, seu patrão. Queremos ser como o americano (Presley), declaravam pretensiosos. Queremos ser os palhaços do mundo. Querem ser todas as coisas. Fazer tudo. Participar de filmes, virar bonecos no museu de cera. Medalha da rainha, discos de ouro, Cadillac, sabedoria do Oriente, roupas coloridas, cabelos e barbas, Lúcia no céu com diamantes, viagens transcendentes e também a boa saúde. Tudo de que você precisa é amor. Depois de tanto sexo? Muito obrigado por avisar. Faixa de segurança, a eternidade – já que não conseguimos deter o tempo nos anos 1960, não é mesmo? No fim, entre as ruínas da revolução, Lennon dispara um torpedo: “Minha gente! O sonho acabou.”. Quê?! Como assim? Eu ainda estou aqui, mal comecei alguma coisa, mal comecei a minha vida. Qual sonho acabou? Não o meu. Eu nem sabia sobre o dele, aliás.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

24. Um único tiro – sequência

22. O bobo foi à festa – anterior

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Comentários

2 respostas para “A foto deles dos Beatles”

  1. Avatar de Bruno

    Comecei a ouvir outros álbuns dos Beatles há pouco tempo, veio a calhar – adoro Dear Prudence – do white…, me tocou

  2. Avatar de Victor Marques
    Victor Marques

    Pere, aproveitando o post eu gostaria de agradecer o senhor por ter me emprestado aquele cd dos beatles, sem ele eu não estaria ouvindo tooodos os dias agora haha.
    Abraços.

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